Charlie Kaufman é um dos mais influentes roteiristas vivos em Hollywood. Entre seus trabalhos, estão pérolas cultuadas como “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Sinédoque, Nova Iorque”, “Adaptação” e “Quero Ser John Malkovich”.
Em meio às fantasias dantescas das grandes produções, Kaufman vai na direção oposta, concentrando suas histórias no indivíduo e suas idiossincrasias. Não em um indivíduo marcante ou heroico, pelo contrário. Um indivíduo quase sempre em posição de impasse e descrença, de dúvidas e até mesmo, de frustração. Mas o que poderia parecer um esforço tedioso ou mesmo patético, nas mãos dele torna-se único, interessante e até mesmo fantástico. Talvez seja esse, inclusive, um dos seus maiores méritos: conseguir produzir histórias profundamente cativantes partindo de uma fonte que aos demais pareceria seca e improfícua. E é dessa mesma forma que ele realiza seu mais recente filme: “Anomalisa”.
[Contém spoiler]
Uma das primeiras coisas que é possível sentir, já de cara, quando estamos diante de uma obra de Kaufman é o estranhamento. Continuamente, ele fala de um sujeito à margem, deslocado por alguma questão. Normalmente, na direção de arte de seus projetos isso é frequentemente referenciado nas roupas muito grandes ou amarfanhadas, nos cabelos sem corte ou despenteados de suas personagens. Em Anomalisa, esse desconforto chega a níveis estruturais. Talvez porque o mundo esteja já com muitas pessoas descrentes ou desesperançosas a ponto de isso não ser mais denotativo num indivíduo retratado pelo cinema convencional, como Kaufman gosta de abordar, a escolha pelo suporte dessa estória teve papel importante como caracterização.
Anomalisa é uma animação em stop-motion. Esse recurso, tantas vezes usado para retratar estórias de forma fabulosa, em Anomalisa serve para potencializar o deslocamento, o desconforto a que a estória remete. O quadro que se nos apresenta é de um homem de meia idade, o mais contemporâneo e real possível, porém, contido num boneco e em movimentos que não parecem do tempo real (porque obviamente denota o meio em que é feito).
Michael Stone, o protagonista do filme, passa por situações reais e completamente plausíveis no cenário atual, ele está numa viagem de negócios, pois vai palestrar em uma cidade sobre seus livros. Sai do voo, pega um táxi, chega ao hotel. Apesar de seu fastio declarado em gestos e até mesmo no desenho de suas expressões, ironicamente, Michael Stone é um palestrante motivacional. Claramente ele está em crise. Tudo nos conta isso.
Mas há algo ainda mais inquietante: fora a sua própria voz (interpretada pelo ator David Thewis), todas as outras pessoas, sem exceção, tem a mesma voz (a do ator Tom Noonan). Ou seja, o mundo externo a Michael Stone é um uníssono que não lhe chega a causar nenhuma impressão digna de nota. Até que ele encontra duas mulheres no hall do hotel em que ele mesmo está, e que ali se encontram justamente porque vieram assistir a palestra que ele daria na cidade.
Uma das mulheres tem a mesma voz que todos têm. A outra, uma mulher tímida, simples e absurdamente comum, que tem até uma cicatriz que a faz, preocupadamente, manter o cabelo tampando um pouco do rosto, tem uma voz dissonante (interpretada por Jennifer Jason Leigh). Ela se chama Lisa. Ironicamente, Lisa é atendente de Telemarketing. E é essa mulher pela qual, sem entender exatamente por que, Michael fica absolutamente hipnotizado. Ele então a convida para seu quarto, onde passam a noite juntos. No dia seguinte, um pouco menos enlevado por Lisa, ele começa a fixar-se em alguns aspectos dela para os quais não tinha atentado antes. E aí, num jogo de cena e som, Kaufman nos apresenta uma possível razão pela qual Michael está em constante frustração com o outro.
No início da animação, quando Michael chega na cidade, ele vai se encontrar com uma mulher com quem aparenta ter tido uma relação. Ela, como ele, não entende porque eles se desentenderam, porque não deu certo entre eles. Ela, como ele, ficou por anos remoendo sem compreender, escrevendo-lhe várias cartas por isso. Voltando para sua casa, Lisa também escreve uma carta a Michael. Ele continua sem entender ao lê-la. Mas o que vemos é que apesar de tudo ser o mesmo para Michael, Lisa se transformou e permanece com sua voz.
Kaufman não é romântico o suficiente para esse ser um fim, mas é um aceno de que algo pode ser definido de uma forma diferente, inclusive diferente do que ele mesmo vê e espera ao criar suas histórias. Uma minúscula distopia em que a revolução seja, na menor das hipóteses, ser o que não se espera que seja, agindo não da forma ideal, mas da forma mais simples e natural possível.