Manara, Cho e os homens pelo direito de objetificarem as mulheres

Manara, Cho e os homens pelo direito de objetificarem as mulheres

Vocês se lembram da polêmica capa de Milo Manara para a mensal da Mulher Aranha a convite da Marvel Comics, não é? Em uma pose humanamente impossível, que pecava muito na anatomia, a ilustração tinha o único propósito de erotizar a personagem, o que, na época, gerou revolta nas redes sociais. A The Hawkeye Initiative – tumblr gringo que faz sátiras de ilustrações oficiais de HQs substituindo as mulheres pelo Gavião Arqueiro, de forma a expor as diferenças que existem na representação de homens e mulheres pelos artistas – até fez uma brincadeira com o desenho de Manara.

Pouco tempo depois, as críticas ao desenho de Manara deram a luz a uma aberração raivosa chamado Frank Cho. Cho, desenhista da Marvel e da DC, tomou as dores do “mestre” e começou a sua própria cruzada pessoal contra os “Guerrilheiros da Justiça Social“, contra a “censura“, contra os “moralistas da arte” e as “feministas, que nem mesmo compram os quadrinhos, só querem mandar em como os artistas devem se expressar, mas como não movimentam a indústria devem ser ignoradas“. Cho fez uma boa grana “protestando” com a venda de desenhos de diversas personagens femininas, como Arlequina e Spider-Gwen, nos mesmos moldes hiperssexualizados de Manara.

A verdade é que Frank Cho passou muito tempo tentando chamar a atenção para sua cruzada “anti-censura” (mesmo que nenhuma vezinha sequer seus desenhos tenham sido censurados) e pelo direito de objetificar as mulheres. Mesmo depois de tudo isso, no último dia 31 de Outubro, Manara e Cho foram convidados de um festival de artes e games na Itália, para ministrar uma palestra sobre o quê? Arte e Mulheres (não, você não leu errado, dissemos ARTE E MULHERES). Basicamente, era um painel sobre como desenhar mulheres. Na ocasião, Manara aproveitou para presenteou Cho com essa peça erótica digna de material para punheta.

Desenho original em aquarela de Manara para Frank Cho. Reparem que, apesar de usar um uniforme, a personagem exibe até o seu ânus.

O que surpreende no desenho de Manara não é o fato de um homem ter desenhado uma mulher imaginária para contemplar seus sonhos molhados, até porque homens tem feito isso por décadas e é tão novidade quanto o Flash criando uma linha de tempo alternativa. O que intriga é que, aparentemente, tanto Cho quanto Manara acham que estão sendo muito transgressores em suas ações em prol da manutenção do status quo.

Diversas décadas de produção de quadrinhos dentro de um Clube do Bolinha, onde homens detinham as funções de criação na indústria e visavam o consumidor masculino, significou em termos de representação feminina uma ampla disseminação de caricaturas nas quais o corpo da mulher é usado para prender o olhar e ser objeto de desejo masculino. A discrepância de tratamento entre homens e mulheres nessa mídia é tão significativa que foi abordada por Gail Simone em Mulheres nos Refrigeradores. O blog faz uma lista de todas as vezes em que super-heroínas ou perderam seus poderes, ou foram estupradas, ou cortadas e enfiadas dentro de refrigeradores, e olha só, em sua última atualização, a lista já contava com mais de 100 nomes de super-heroínas mutiladas.

A piada interna entre Manara e Cho não é nem mesmo a primeira – e, infelizmente, não será a última – em que mulheres são debochadas por artistas homens quando apontam desconforto com a forma como são retratadas em suas obras. Trina Robbins falou em entrevista que era constantemente ridicularizada porque aparentemente ela “não tinha senso de humor” para entender que não, é claro que não, os trampos dos caras não são misóginos, são só uma piada. Ou, como diria Robert Crumb, “não se ofendam meninas, é só um quadrinho”.

Por quê é tão sedutor reduzir as mulheres a um objeto cênico? Por quê Manara e Cho acham que estão mudando o mundo ao reduzir as mulheres à sua fantasia sexual particular? Ou melhor: por quê é tão difícil para os homens criar personagens mulheres que independem de sua atração sexual por elas?

Primeiro, é importante salientar que toda representação artística não é isenta de influência do mundo externo. A arte é gerada sob um contexto político, social e histórico e o seu produto massificado está intrinsecamente conectado com a visão que projetamos sobre nós mesmos e o outro. Isso porque muitas formas de arte funcionam como um espelho, no qual nós projetamos a nós mesmos; estamos falando de imersão. E se o quadrinho é feito por um homem, visando o consumo de outro homem, não podemos esperar que uma mulher tenha o mesmo nível de identificação com aquela obra/personagem, não é mesmo? Enquanto o personagem homem é uma projeção do ego do masculino, a personagem feminina não é mais do que um objeto dele.

Laura Mulvey fez um trabalho lindão com “Prazer Visual e Cinema Narrativo”, ao associar a tese da escopofilia de Freud às artes visuais. Escopofilia é o prazer de olhar. Ao praticar a escopofilia, o sujeito transfere o prazer ao observar o outro; tem a ver com um instinto erótico de construção do ego. Ao desenhar uma mulher em uma página em branco, o artista homem muitas vezes exerce dessa escopofilia: a mulher só é importante porque ela é o fio condutor do herói, ela está ali para excitar alguém (1- o personagem, 2- o espectador/leitor/observador), é ela quem desperta sensações, quem inspira, quem faz o personagem agir de certo modo. A “mulher propriamente dita não tem importância”. A existência de uma mulher fora desses padrões é uma ameaça. O homem identifica a mulher que foge do domínio de seu olhar como uma castração. Ele perde o seu poder. Ele está diante de algo que independente de seu ego.

A revolta que beira ao infantil de Manara e de Frank Cho não é nada revolucionária. Homens têm objetificado, contorcionado, mutilado e estuprado mulheres para dentro de seus padrões impossíveis por séculos, moldando-as para seu prazer pessoal tanto quanto para satisfazer os desejos de outros homens (e destaco aqui que Frank Cho fez questão de salientar que a platéia do painel – vamos combinar, majoritariamente masculina – foi à loucura com o presente de Manara). O choro de Manara e Cho não é um manifesto contra a “censura” ou o “puritanismo” na arte – até porque a arte de nenhum deles foi censurada. Manara e Cho estão lutando pela manutenção de um status quo que os favorece porque é sobre eles. E, por eles, eu quero dizer homens. O que eles estão fazendo é o último grito de desespero de quem sabe que está perdendo o seu lugar como dono do mundo. De quem sabe que as mulheres estão, continuamente, tomando de volta o direito sobre o seu próprio corpo, e tomando de conta de espaços misóginos que durante décadas excluíram a nossa existência para algo além da punheta alheia. Então, eles tentam ridicularizar. Mas atitudes como essas não vão parar o avanço das artistas e das leitoras ao redor do mundo.

Quem aí quer se inspirar na The Hawkeye Initiative e começar uma Manara/Cho Initiative?

Primeiro e segundo desenhos de Ana Luiza Koehler, último de Cris Camargo

(ps: se você juntar as primeiras sílabas de Manara e Cho vira macho; a merda já estava predestinada)

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Renata Nolasco é ilustradora e quadrinista - assina seus trabalhos como Atóxico. Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, gosta de Neil Gaiman, ficção científica, pizza, quadrinhos independentes e The Authority. Queria ser a Jenny Sparks.
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