Cenas Londrinas: Virginia Woolf e a visão feminina de Londres

Cenas Londrinas: Virginia Woolf e a visão feminina de Londres

Cenas Londrinas, livro publicado pela editora José Olympio, reúne seis crônicas de autoria de Virginia Woolf, nas quais a escritora descreve a Londres da década de 30. A escrita realista marca os textos no que constitui, conforme o autor do prefácio, uma escrita masculina de Virgnia Woolf. Todavia, o adjetivo masculino é atribuído pelo fato de os textos serem mais atraentes ao público masculino, em questão de estereótipos. E apesar de compreensível a utilização do termo, jamais se poderia dizer que a escrita de Cenas Londrinas é menos feminina que a dos demais textos da escritora. Virgina Woolf consegue se colocar ali em sua complexidade e autoria, como mulher, cronista e narradora.

As cinco primeiras crônicas, todas escritas separadamente e reunidas após a morte da escritora em um livro, assemelham-se enquanto descrições de Londres destituídas de personagens. Narram o cenário, sua história, seu tempo presente e passado, as modificações locais que também afetaram a vida dos habitantes.

E na história, presentes estão também os nomes que passaram, célebres escritores, artistas absorvidos pela vida local em casas dominadas por suas lembranças. A memória construída por Virginia Woolf é o objeto do livro, que apenas em sua última crônica se propõe a narrar a vida social através de personagens fictícios.

Tudo começa pelo mar. Em As Docas de Londres, Virginia Woolf descreve o capitalismo londrino através do símbolo da troca, o navio. O intercâmbio de mercadorias: o ponto de chegada e o ponto de partida. O movimento que marca a cena. A economia que alterou a paisagem, construindo uma cidade voltada para o que se tornaria o império do capital. E o que ela não diz, mas os que possuem a mínima noção de história verificarão: a base do imperialismo. Londres, em suas mudanças do que um dia fora uma cidade agrária, para o ponto de encontro da troca econômica.

“Lá nas docas veem-se as coisas em sua crueza, seu volume, sua enormidade. Aqui, em Oxford Street, elas se mostram refinadas em transformadas.”

O que vem pelo mar adentra a cidade. Passa por um processo de refinamento. O que era caixa em depósito torna-se exposição. A visão genérica da economia de mercado: a venda. Não somente o cenário mudou; mudaram as pessoas.

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A civilização se transformou, mascarada, então, por trajes planejados. E os corpos trajados se escondem na multidão. Entre luzes e pessoas, sensações distintas se constituem num fluxo, tal como um rio artificial. A corrente é margeada por palácios modernos pertencentes a uma nova aristocracia, mas que exibem a fluidez do seu tempo, a luta constante, a exibição por vaidade.

“O encanto da Londres moderna é ser construída para não durar, é ser construída para passar […]. Não construímos para nossos descendentes, que podem viver nas nuvens ou na terra, mas para nós mesmos e nossa necessidade. Derrubamos e construímos enquanto esperamos ser derrubados e reconstruídos.”

No cenário Londrino, as Casas de grandes homens fazem história. E também os grandes homens são feitos por elas. As casas são o símbolo na medida em que representam o contexto de nomes eternizados.  O autor escreve a obra, mas que quem escreve o autor? Antes de o autor se tornar a casa, a casa tornou-se o autor, pois quem seria Keats ou Shakespeare fora do cenário em que foram colocados para atuar? E depois de completa a obra, seus nomes passaram a pertencer ao palco. E ao passar pelas casas, ruas e colinas em que estiveram, os demais são levados a evocar sua memória.

Cenas Londrinas

E de lembranças é feita celebração da morte, ornada por duradouras estruturas. A crença na morte materializada em Abadias e Catedrais. Virginia questiona o que torna os mortos dos locais célebres em seres especiais para que sejam separados do restante da humanidade.

Alguns deles, ainda que mortos, testemunhas de importantes fatos no pós-vida. Outros deles, repousados em locais cuja morte foi retirada do cenário, numa transmutação de funcionalidade, em locais nos quais a morte resta em silêncio, adormecida e em paz diante do ocultamento do que se construiu em cima.

E de um modo geral, todos são testemunhas da história que se constrói sobre o túmulo de outra. Esta é a Câmara dos Comuns retrata os segredos e as estátuas da política. O poder em mãos grandiosas que, sob um olhar atento, adquirem o mesmo tamanho das mãos comuns. O grande contorno, porém, advém das estátuas imóveis, colocadas para exibir e amedrontar, tornando especiais aqueles que antes eram iguais. Criadas pela aristocracia, não foram derrubadas pela democracia. E Virginia questiona se um dia o homem, pequeno, conseguirá se combinar ao lugar, grande.

“Em cima de tal material de humanidade sobrevém o selo de uma máquina enorme. E a própria máquina e o homem sobre quem desce o selo da máquina são ambos comuns, indistintos, impessoais.”

Depois de viajar pela Londres de sua época, a autora faz o Retrato de uma Londrina, única crônica com personagem fictício. Através de Mrs. Crowe e de suas visitas, Virginia discorre sobre as pessoas colocadas no cenário londrino.

As convenções, os papéis a serem exercidos, as interações sem intimidade, os segredos que correm aos ouvidos de Mrs. Crowe, que observa a vida londrina, principalmente, de sua casa, onde sua empregada Maria abre a porta aos mais diversos indivíduos. Até o dia em que ela morre; mas a vida de Londres continua a caminhar mesmo sem o seu olhar, o que talvez seja uma reflexão acerca da própria vida de Virginia Woolf.

O livro é curto, de leitura fácil e rápida, mas não é um livro para uma única e desatenta leitura. A primeira impressão pode não levar a grandes reflexões sobre a escrita de Virginia Woolf. Contudo, o que aparenta no primeiro contato ser apenas uma descrição de Londres da década de 30 revela em análise posterior uma grande discussão sobre a sociedade de modo geral e as modificações no tempo, o contraste entre a Londres da qual Virginia Woolf provavelmente ouviu falar, a Londres que de fato conheceu e amou e a Londres que ela não conheceria.


Cenas LondrinasCenas Londrinas

Autora: Virginia Woolf

96 páginas

Editora José Olympio /  Editora Record

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Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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