Twin Peaks, David Lynch e a exploração do corpo feminino

Twin Peaks, David Lynch e a exploração do corpo feminino

Após 25 anos de espera, Twin Peaks está de volta com Lynch expandindo, a cada novo episódio, as fronteiras do mistério e da bizarrice. Tentar compreender as manifestações simbólicas desse diretor, na maioria das vezes, é uma tarefa difícil ou até mesmo impossível. E é aí que reside a beleza de suas obras: o universo lynchiano não é organizado de forma lógica e cronológica, suas narrativas trazem representações espaço-temporais singulares, são histórias que não oferecem respostas espontâneas e objetivas, mas interpretações polissêmicas, abertas.

Apesar de a trama da série ser construída com base na violência contra a mulher, esperava-se que ao menos a construção das personagens femininas tomassem um certo protagonismo, sendo representadas para um fim diferente do que a usual exploração do corpo feminino e a sua fetichização narrativa. Lynch, infelizmente, segue o caminho habitual, vemos a imagem predominante das mulheres em Twin Peaks como acessórios, vítimas, serventes.

O texto contém spoilers da Parte 14, da 3ª temporada de Twin Peaks

A nova temporada de Twin Peaks é, claramente, diferente das temporadas anteriores. A partir da antiga trama envolvendo Laura Palmer, Lynch e Frost conseguiram atualizar a série para um olhar contemporâneo através do desenvolvimento de arcos narrativos que, aparentemente, pareciam secundários.

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Assim, o personagem de Hawk, Gordon Cole, Major Briggs e até mesmo Andy tomam espaços maiores na história, fazendo parte de alguns dos mais importantes conflitos apresentados na série. Além de atualizar o lugar dos personagens, também é possível perceber uma nova dinâmica espacial, Twin Peaks agora não se restringe a pequena cidade homônima, o que traz um ar renovado e uma percepção de expansão da própria proposta da narrativa: as dualidades representadas – o bem e o mal, a inocência e a culpa – estão agora em todos os lugares.

No entanto, mesmo que Twin Peaks progrida nestes aspectos, a representatividade das mulheres na história permanece sob uma perspectiva retrógrada e rígida que hoje, diferentemente dos anos 90, não tem mais espaço.

É importante ressaltar a importância de Twin Peaks e sua influência no desenvolvimento das séries televisivas que a seguiram. Mais importante que sua abordagem temática, já que a série se tornou uma referência no seu gênero, foi sua contribuição em termos de linguagem audiovisual. 

David Lynch revolucionou a forma de fazer TV adicionando um pensar cinematográfico pouco explorado nesse meio anteriormente. Na época que foi lançada, a série foi adequada para restrições indicativas da televisão, sendo assim, na primeira temporada não vemos a nudez e a violência explícita que a temporada atual usa e abusa.

Os problemas decorrentes dessa mudança são sérios, mas parecem ser ignorados pela crítica. Talvez por receio em criticar um nome tão importante quanto o de Lynch, ou por entender que há uma explicação na narrativa para a exposição exaustiva do corpo feminino.

O fato é que é necessário problematizar a respeito disso, hoje ainda mais do que nunca, pois estamos tratando de representatividade em uma obra que tomou grandes dimensões. Que tipo de mensagem é transmitida ao público ao vermos cenas violentas que envolvem mulheres nuas ou seminuas, não uma, não duas, mas várias vezes?

Por que as mulheres são mortas brutalmente e sem roupa e os homens não? Por que explorar uma sensualidade estereotipada em uma detetive do FBI? Por que há uma cena só para mostrar ela andando e outros dois detetives apenas assistindo ela caminhar?

Por que, de todos detetives do FBI, a detetive “sensual” é a única que serve cafezinho para a equipe? Ao mesmo tempo, nota-se que as personagens femininas nas obras de Lynch são sempre muito interessantes e complexas, mas as formas como elas são exploradas no enredo acabam sempre tomando o mesmo rumo. São mulheres que carregam fortes cargas dramáticas, vivenciam barbáries, no entanto, suas representações são reduzidas a formas básicas de fetichização.

Twin Peaks 03×14 (Reprodução)

Na “Parte 14”, recentemente lançada, assistimos a uma cena com Sarah Palmer que contrapõe essa passividade por vezes adotada na postura das mulheres em Twin Peaks. Ao ser incomodada por um homem aleatório no balcão de um bar, Sarah pede educadamente para que ele se retire, o homem insiste e começa a xingá-la, Sarah, então, “abre” seu rosto (assim como Laura o fez no início da temporada), revelando um ser que parece morar dentro da personagem.

O ser, que possui voz masculina, diz “do you really want to fuck with this?” e, em um golpe, corta o pescoço do homem. Se Sarah tem ou não conhecimento do ocorrido, ver, finalmente, uma mulher fazendo algo deste tipo em Twin Peaks parece revigorante.

Ainda esperamos que a moda pegue e as mulheres comecem a ter um espaço de maior protagonismo na série, seja desvendando mistérios ou cortando jugulares. Mas o mais importante é admitir que, apesar de ser um marco para as séries televisivas, Twin Peaks e outras obras de Lynch carregam problemas profundos de representatividade feminina, ignorar este fato é o mesmo que apoiá-lo e propagá-lo.

É preciso reconhecer a genialidade do autor, mas não isentá-lo de certas responsabilidades sociais, principalmente quando dentro de meios como a televisão e a Internet.

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Publicitária, mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, feminista, apaixonada por arte e vivendo um caso particular de amor com o cinema.
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