[LIVROS] Sem gentileza: Futhi Ntshingila é a guardiã da memória das mulheres sul-africanas

[LIVROS] Sem gentileza: Futhi Ntshingila é a guardiã da memória das mulheres sul-africanas

Quando se menciona a tradição literária da África do Sul é comum que leitores e leitoras pensem imediatamente em dois grandes figurões das letras daquele país: Nadine Gordimer (já falecida) e J. M. Coetzee, que ganharam o Prêmio Nobel de Literatura, respectivamente em 1991 e 2003. Ambos brancos, Gordimer e Coetzee, cada um à sua maneira, se notabilizaram por retratar a sociedade racista e violenta imposta pelos colonizadores, cujo símbolo é o regime de apartheid que vigorou no país oficialmente de 1948 a 1994. 

A visão de alguém que conheceu o sistema de perto e de dentro, como uma pessoa negra, desdobrando-se para sobreviver e criando estratégias para não sucumbir diante da violência, da pobreza e da discriminação, no entanto, não pôde ser alcançada por nenhum dos dois. Este é, portanto, um dos diferenciais de escritores como a jovem Futhi Ntshingila, nascida em 1974 em uma família da etnia zulu, e autora de Sem gentileza, lançado no Brasil em 2016 pela Editora Dublinense. Este é o segundo livro da autora, mas o primeiro publicado por aqui.

A vivência de uma mulher negra que se coloca como guardiã da memória das mulheres de seu país – como mencionado – é um dos diferenciais. O outro é a recusa de Ntshingila de cair na fórmula fácil que marca muitos dos relatos, ficcionais ou não, e geralmente eurocêntricos, a respeito da África do Sul e também do continente africano, incorrendo no que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama de “O perigo da história única”: o de colocar a população sul-africana como passiva, imobilizada, sugestionável e dependente da caridade e da salvação de outros.

Não que não haja sofrimento, humilhação e discriminação no cotidiano de suas personagens – certamente há, afinal, não se pode apagar do dia para a noite séculos de colonização, racismo, misoginia e pauperização. Mas a história narrada em terceira pessoa em Sem gentileza, que foca na vida de mãe e filha, Zola e Mvelo – durante e após o fim do apartheid – é complexa, cheia de nuances, marcada por momentos de raiva, desespero e solidão e também de emancipação, autonomia e afeto.

A escritora utiliza a história de Zola, que está morrendo da epidemia de AIDS que assola o país (inclusive as crianças), e de Mvelo, que aos 14 anos cuida sozinha da mãe, para falar de forma concisa e nem por isso menos aprofundada sobre discriminação racial, valores familiares, religiosidade e ancestralidade, desigualdade no acesso à saúde, solidão da mulher negra, violência sexual, maternidade precoce e a vida nos grandes aglomerados urbanos sul-africanos.

Sem gentileza
Futhi Ntshingila. Imagem: Reprodução.

Violência sexual contra meninas

Um tema que está muito presente em Sem gentileza é a vulnerabilidade das meninas – seja no campo ou na cidade – e também a responsabilidade que é imposta a elas para que se cuidem e não sejam violentadas sexualmente. O pano de fundo é o tenebroso índice de estupros que assola o país, que por vezes parece anestesiado diante deste cenário.

A culpabilização e o ostracismo social estão presentes desde muito cedo na vida das que “se perderam” – uma condição que acompanha as que foram estupradas por líderes religiosos, pelos companheiros de suas mães, por chefes ou por homens contaminados pelo vírus HIV que acreditam que fazer sexo [na verdade, elas são estupradas] com uma menina virgem irá curá-los da doença.

Em poucas palavras, narrando um fato muito comum em seus país, a autora traz à tona a complexidade das estratégias desesperadas utilizadas pelas mulheres mais velhas para preservar as meninas dos ataques dos “tios”, os homens mais velhos que muitas vezes são próximos das vítimas e integrantes de suas famílias: os testes de virgindade.

Leia também:
>> [LIVROS] Jarid Arraes: A heroína negra da literatura
>> [RESENHA] Hibisco Roxo: A colonização da Nigéria no primeiro romance de Chimamanda Ngozi Adiche
>> [LIVROS] Americanah: A complexidade das discussões de raça e gênero através da obra de Chimamanda Ngozi

Com eles, as mulheres buscam saber se alguma menina foi violada e também mandar um recado aos “tios”. O objetivo é dizer que elas estão de olho e alertas, e que se os mesmos atacarem alguma garota, mais cedo ou mais tarde serão descobertos por meio dos exames e então punidos.

Por mais bem intencionados que sejam, os testes também geram consequências terríveis para as meninas: marcam para sempre as que já não são virgens, que sofrem julgamentos da comunidade e se tornam indignas de um casamento; e também as virgens, que se tornam presa fácil dos homens infectados com HIV em busca de “cura”.

Sem gentileza
Protesto na Cidade do Cabo contra o estupro de meninas virgens como forma de curar a AIDS. Imagem: reprodução.

“Mvelo foi às sessões de teste de virgindade com clareza no pensamento. Estava fazendo aquilo principalmente por Zola e, mesmo assim, sentia que era dona de si. E como muitas garotas de sua idade, estava curiosa para ver o que e como era o teste. Descobriu que havia bos testadoras, que estavam preocupadas com o abuso infantil disseminado e que enxergavam o teste como a forma tradicional de resolver o problema. Outras, no entanto, estavam embriagadas com o poder e a atenção que recebiam da mídia. Correspondentes estrangeiros e tarados endinheirados amontoavam-se com câmeras para um circo carnal repleto de garotas imaculadas abrindo as pernas.

Jornalistas genuínos tomavam cuidado para não tirar vantagem, enquanto os voyeurs, babando, utilizavam lentes de longo alcance para focalizar o alvo com precisão, assim como fazem durante Umkhosi Wohlanga, a dança dos juncos, onde jovens princesas Zulus seminuas presenteiam juncos ao rei Zulu. Para o teste, mulheres idosas formavam filas com as garotas de manhã cedo, normalmente perto de um rio. Elas deitavam-se em fila, cada uma acompanhada de uma examinadora, e abriam as pernas. Com dois dedos de cada mão, a examinadora forçava a abertura dos lábios de suas vaginas, procurando por um “olho”; a vagina de uma virgem é fechada, como um botão de uma flor, que lembra um olho. Ao encontrar o olho,  examinadora erguia-se, posicionada no vão entre as pernas da virgem, e assentia positivamente às outras. Haveria então muitos uivos de alegria das vovós. Elas recebiam certificados por escrito e eram marcadas com um ponto em suas testas, indicando que ainda eram puras.

Na favela de Mvelo, ela ficou conhecida omo “a virgem”. Presa fácil. Como uma zebra correndo em meio às gazelas: marcada.” (Sem gentileza, p. 76-77)

Pouco tempo depois do último teste, Mvelo é estuprada por um pastor, abandona o sonho de ser cantora e sua vida muda por completo. A descrição crua da violência sofrida, ao mesmo tempo em que é um retrato cuidadoso de uma realidade infelizmente tão comum, é um ponto forte da narrativa.

Sem gentileza
Teste de virgindade em comunidade zulu.  Imagem: reprodução.

Identidade, sororidade e celebração da mulher negra

As redes de apoio e solidariedade entre as mulheres negras é outro aspecto marcante na obra, e nisso se observa um diálogo entre Ntshingila e a moçambicana Paulina Chiziane, que também se dedicou a falar das contraditórias e afetuosas relações entre mulheres em seu país, principalmente quando elas aparentam disputar o mesmo homem.

Nada é tão simples de se definir e enquadrar, como é a relação entre Zola e Nonceba, outra personagem marcante de Sem gentileza. Embora o casamento de Zola tenha acabado quando seu companheiro conhece Nonceba, ambas mantém uma relação silenciosa de respeito mútuo e se unem para cuidar de Mvelo, cada uma à sua maneira.

Leia também:
>> [QUADRINHOS] As muitas mulheres africanas em “Aya de Yopougon”
>> [LIVROS] O Ódio que Você Semeia: As consequências que recaem sobre nós
>> [MÚSICA] 50 canções para conhecer As Mulheres Negras no Rock!

Aliás, a personagem de Nonceba é uma interessante metáfora a respeito da identidade da mulher negra na África ou na Diáspora, onde se misturam temas que vão da religiosidade (inclusive mesclando noções de bruxaria e saberes femininos tradicionais) e da ancestralidade, ao colorismo e à maternidade, num contexto de violência, ontem e hoje.

Noções de masculinidade também são discutidas em Sem gentileza – no caso, a masculinidade e suas intersecções com as questões de classe e de raça – por meio da figura de Sipho, advogado e padrasto de Mvelo, responsável por infectar Zola e outras mulheres com o vírus HIV. Sipho é carinhoso com a família e uma boa figura paterna para Mvelo, mas é também um homem machista, egoísta e irresponsável frente aos sentimentos e à saúde das mulheres com quem se envolve – o que permite uma reflexão a respeito de como homens admirados e sociáveis podem cometer violências muitas vezes sutis que vão minando as mulheres ao seu redor.

Sem gentileza é um livro curto – 158 páginas –, possui poucos diálogos e para alguns a linguagem pode parecer concisa demais. Até mesmo a história pode parecer se desenrolar de forma muito rápida. Porém, essa se torna uma qualidade da obra, já que o objetivo da autora é, ao mesmo tempo, retirar meninas como Mvelo da invisibilidade, e também evitar descrições prolongadas, grandes digressões ou análises muito pormenorizadas que acabem por retirar a força narrativa de uma história que fala por si só.


Sem gentilezaSem gentileza

Autora: Futhi Ntshingila

Editora: Dublinense

158 páginas

Ano: 2016

Compre aqui!

Comprando através do link acima, você ajuda a manter o Delirium Nerd no ar, além de ganhar nossa eterna gratidão por apreciar e apoiar o nosso trabalho! 

Escrito por:

286 Textos

Site sobre cultura e entretenimento com foco em produções feitas e protagonizadas por mulheres.
Veja todos os textos
Follow Me :