Aline Vieira: feminismo, música experimental e “faça-você-mesmo”

Aline Vieira: feminismo, música experimental e “faça-você-mesmo”

Aline, assim não dá”, disse Eliseu Vieira à sua filha, que estava ensaiando para um de seus diversos projetos musicais — projetos estes que costumam flertar com o noise, a música ambiente e o rock industrial. “Eu escuto isso há 30 anos todos os dias”. “Eu fiquei meio impressionada, pois meu pai relacionou o som que eu fazia com o ambiente de trabalho dele”, conta a garota. “É muito louco como o barulho pode ter diferentes significados para diferentes pessoas. Algumas o detestam, outras se sentem atraídas por ele”.

O pai de Aline Vieira — curitibana que além de fazer música experimental arrisca-se no design gráfico e na fotografia analógica e, ao lado de Gustavo Paim, gerencia o selo Meia-vida — trabalha com manutenção de máquinas industriais desde muito novo. A relação entre os dois, segundo Aline, sempre foi bastante conflituosa. “Ele é muito machista”, diz. “Eu estou sempre reagindo ao patriarcado, pois o vi se manifestar de maneira muito forte na minha família”.

Aline Vieira conheceu Gustavo no final de 2011. Ambos frequentavam os mesmos eventos e tinham muitos amigos em comum, quando um deles decidiu chamá-los para formar uma banda. Gustavo tocava baixo e Aline, bateria. “Ela se chamava Desgosto e não deu muito certo, mas ao menos serviu para nos aproximar”, conta. “A gente descobriu certa afinidade musical, então tivemos algumas ideias e resolvemos fazer música juntos. Começamos a tocar no início de 2012 e decidimos fazer um selo em abril do mesmo ano”.

Aline Vieira

O nome “Meia-vida” foi inspirado em “Half Life”, música do Swans, e, de acordo com Aline, engloba diferentes sentidos. “‘Meia-vida’ tem relação com o decaimento exponencial e com a radioatividade, com coisas que contaminam. Esse decaimento exponencial resulta em um desgaste da matéria — essa ideia pode ser associada à música experimental, pois tem ligação com a repetição”, explica. “A meia-vida é algo que nunca acaba nos elementos, ela é infinita — isso também acaba trazendo uma ideia de resistência. A ideia de ‘meia-vida’ abarca nossos ideias do punk e a nossa estética visual e sonora”.

Ainda sobre o selo, Aline Vieira declara: “As coisas são muito equilibradas no Meia-vida. Mas se eu tivesse feito o selo sozinha, é lógico que seria tudo diferente e muito mais difícil”, confessa. “Toda mulher sabe que tem que fazer o triplo para receber o reconhecimento equivalente ao que os homens recebem. Eles não são julgados por não saberem tocar e se enfiarem nos projetos — todo mundo achava lindo que o Sid Vicious não sabia tocar. Mas nós mulheres somos julgadas até por nós mesmas, pois nos cobramos muito”.

Além de gerenciar o Meia-Vida, realizar a curadoria do festival Perturbe e tocar com Gustavo no Cama Desfeita, Aline investe seu tempo em numerosos projetos solo. “Excria Reverbera, meu primeiro projeto, tem muita repetição e reverb, é um nome meio mágico — “ex” é um prefixo para “exterior” e “excria” é um neologismo, significa ‘criação que vem de fora’. Nele, eu tentava fazer um som que passasse essa ideia”. Excria Reverbera tem uma sonoridade eletrônica que dialoga com o drone e o dark ambient e, com este projeto, a curitibana lançou um álbum homônimo.

Flores Feias tem uma estética marginal, a flor tem relação com a feminilidade e é um órgão sexual”. Com o Flores Feias, projeto de industrial e darkwave em que Aline Vieira experimenta densos timbres de guitarra, a garota lançou o álbum “F .˙. F”, com uma tiragem de 31 cópias físicas em k7. “Já o Corpo Código Aberto tinha muita relação com a performance, cada apresentação era bem conceitual. E tem a Antiline, que é um projeto mais barulhento e flerta com o industrial. Ele não é tão pessoal, eu uso uma máscara, tem toda uma persona — é como se não fosse eu”. Ela conta que, por muito tempo, conseguiu manter o mistério de quem era a Antiline. “A maioria das pessoas não sabia que era eu”.

Aline Vieira

DN: Como você começou a fazer música?

Eu ainda estou aprendendo a fazer. Eu brincava com um tecladinho e com um violão quando era adolescente — eu ganhei esse tecladinho quando fiz 16 anos, foi inclusive o teclado que eu usei para me apresentar no Cama Desfeita. Foi quando eu comecei a fazer som de verdade. Eu também aprendi a tocar bateria de brincadeira, eu toco de um jeito bem tosco, mas eu não me importo com isso.

DN: Que diferenças você pontuaria entre sua produção em bandas e sua produção solo? Quando você percebe que está na hora de criar um novo projeto?

Meus projetos solos são muito mais íntimos, eu trago ideias relacionadas ao que estou sentindo. Eu gosto de coisas mais calmas e meus projetos solos seguem um pouco essa tendência — é o estado em que eu me sinto confortável para tocar sozinha. Eu já improvisei com muitos amigos que também tocam, geralmente é a partir dessas improvisações que surgem as ideias de bandas. Eu sempre penso em novos projetos e estou me segurando para não fazer mais coisa do que já faço. Sempre fico na dúvida se crio um novo projeto ou faço um som diferente em um projeto já existente — as duas coisas são legais. Em geral, quando crio um projeto novo é porque estou pensando em um novo conceito.

DN: Como você conheceu o “faça-você-mesmo”?

Eu comecei ouvindo punk rock quando era garotinha, sempre fui interessada em conhecer coisas diferentes e pesquisava sobre música desde muito cedo. Eu fui conhecendo muitas coisas ao longo do tempo que foram acrescentando à minha pesquisa. O “faça-você-mesmo” é uma política para quem gosta de pesquisar música e quer se sentir parte de um movimento — é uma forma muito autônoma de criação e hoje em dia faz muito sentido falar em autonomia. Costumam falar em independência, mas um artista de Curitiba, o Goto, uma vez falou comigo e com o Gustavo sobre uma leitura que ele fez do Herzog — ele falou de “auto-dependência”, de ser dependente de si mesmo nessa movimentação. Criar e ter essa auto-dependência é algo bastante político.

Aline Vieira

DN: Você já teve alguma experiência em estúdio? Como você aprendeu a gravar sozinha e de onde surgiu essa vontade?

Só em estúdios bem pequenos e em home studios. Eu comecei fazendo gravações lo-fi, com microfone de computador. Depois eu melhorei minhas técnicas e comecei a pesquisar sobre gravação analógica, passei a usar microfones melhores e a gravar com fita k7. A gravação é uma parte muito importante do processo de criação musical. Tudo o que eu sei, eu aprendi fazendo. Fazendo junto com meus amigos, com o Gustavo, pesquisando e criando a minha própria forma de produzir e gravando da maneira que dá. Eu vejo muita mina com medo de tocar e gravar, dizendo “ah, eu não sei tocar”. Mas isso não existe. Você constrói a sua própria maneira de saber — você precisa pensar nesses processos intuitivamente até desenvolver seu próprio método de criação e de produção. O que eu quero dizer é que a gente só aprende a fazer quando faz. A gente aprende errando, tendo dúvidas, pesquisando. Indo atrás de informação. Tem tanta, sabe? Ninguém tem que ter medo de fazer música, ou medo de errar. A música experimental surge para que o músico aprenda a lidar com o erro, o erro é o ponto de partida para que se crie uma linguagem própria.

DN: Concordamos plenamente. Mas você não tem mais medo de errar?

Quê isso, caralho, eu tenho muito medo de errar! [risos] Eu falo de erros que surgem como acidentes, falo de aprender a lidar com o caos. De gostar de ser errante, de saber gozar da fluidez e não ter compromisso com o que é correto. De ser subversivo — isso é pura criação. O “certo” é uma coisa muito racionalista, as coisas vão muito além disso.

DN: E “certo” e “errado” quase sempre são construções sociais. Os conceitos de “acerto” e “erro” não são concretos, definitivos.

Exatamente. E não dá para se limitar a construções sociais.

Aline Vieira

DN: Vocês usam muitos processos analógicos no Meia-vida, tanto em relação ao som, com a fita k7, quanto em relação à imagem, com a xerox e o filme 35mm. De onde surgiu o interesse por eles?

Esse interesse tem muita relação com o desgaste da matéria que compõe o conceito de “meia-vida”. O k7 e o filme se degradam com o tempo, e essa degradação altera a estética do produto. A gente sempre tira xerox das coisas, e muita xerox da xerox da xerox. Nós já chegamos a tirar 70 xerox da mesma imagem para ver como ela ficava. Mas isso foi ideia do Gustavo, ele é um megalomaníaco. Essa ideia de alteração também é bem presente no Meia-vida — a gente altera as coisas, a nós mesmos, os ambientes, a cidade. A gente cria, movimenta, influencia, muita coisa acontece. Nesses últimos cinco anos de selo, eu percebi que muita coisa mudou.

DN: Você passa a impressão de ser uma pessoa que gosta de ler. O que você está lendo agora?

“Ruído Branco”. É um romance. E “Deleuze Hermético”, eu gosto muito de filosofia.

Ouça os projetos de Aline Vieira e do Meia-vida em: https://meiavida.bandcamp.com/

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Estudante de Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Apaixonada por música, documentários, artes visuais, quadrinhos e publicações independentes. Fascinada por contracultura e gente maluca.
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