O Livro do Juízo Final: viagem no tempo e a posição histórica da mulher

O Livro do Juízo Final: viagem no tempo e a posição histórica da mulher

Connie Willis é uma escritora de ficção científica e fantasia, vencedora de diversos prêmios nos Estados Unidos. Entre sete prêmios Nebula e onze prêmios Hugo, fez sucesso em um ramo literário que costuma negligenciar o trabalho feminino. E, ainda assim, é pouco reconhecida Brasil. O Livro do Juízo Final, publicado em 1992, é o primeiro livro da autora a ser traduzido e publicado no Brasil. O livro foi lançado no país este ano pela editora Suma das Letras.

A autora revela, em sua obra, que mulheres são capazes, sim, de escrever histórias ricas em detalhes, dotadas de enredo fantástico e científico bem construído e sem uma dose de romance. O problema, desse modo, encontra-se na publicação e na recepção pelo público das autoras do gênero.

O Livro do Juízo Final

Uma mulher viajando no tempo

O Livro do Juízo Final  é o primeiro livro de uma série que mescla história e ficção científica através da temática de viagem no tempo. Em 2054, a população foi reduzida consideravelmente pela Pandemia. Após o trágico período da humanidade, doenças tornaram-se raras devido ao avanço da medicina. Mas uma infecção misteriosa começa a se espalhar por Oxford. E, coincidentemente, uma aluna foi mandada ao passado com ela.

Kivrin Engle é uma jovem historiadora que deseja pesquisar sobre a Idade Média. Através do projeto Medieval, é enviada em uma viagem no tempo. Mesmo que seu orientador, Dunworthy, seja contrário ao feito, Kivrin está confiante de que encontrará algo magnífico. E pensa que o maior perigo, a Peste Negra ou doença Azul, está ainda longe de ocorrer.

Logo que chega à Idade Média, Kivrin percebe que algo está errado. Uma doença a deixa debilitada, tendo de ser resgatada por misteriosos – e perigosos – homens. O problema é que Kivrin precisa saber o local exato de seu resgate para poder retornar depois das festividades do período. Precisa, assim, não somente se mesclar aos contemporâneos, como se aproximar dos seus resgatadores para que eles a guiem no caminho para casa.

Em 2054, os contemps precisam enfrentar outros perigos. O responsável pelo controle da viagem de Kivrin, adoece, deixando os demais membros da equipe sem informações sobre o sucesso da viagem. Pouco depois, uma doença começa a se espalhar. Assim, Dunworthy e seus colegas precisam descobrir como lidar com essa doença que desafia a medicina moderna, bem como verificar se Kivrin realmente chegou a 1320 – e em qual estado de saúde ela chegou.

Protagonismo feminino

O livro é narrado em terceira pessoa, majoritariamente, e intercala passagens da Idade Média e da atualidade da história. Quando na Idade Média, o foco é a trajetória de Kivrin. Já na atualidade, o foco é na trajetória de Dunworthy. Apresenta, ainda, partes do registro de Kivrin sobre sua experiência na Idade Média, os quais são narrados em primeira pessoa. Desse modo, é possível conhecer melhor a perspectiva da protagonista e suas vivências.

As partes na atualidade são interessantes. Transmitem a agonia vivida pelos personagens. Trata-se de uma corrida contra o tempo não só para descobrir a cura da misteriosa doença, mas também para descobrir o que houve com Kivrin. Dunworthy age para denunciar a negligência de sua equipe para com o projeto. Concomitantemente, age para contornar a situação de forma prática. Ele possui um zelo especial por sua aluna e não se cansa de tentar provar que algo está errado com ela.

Apesar disso, não é retratado como o herói a salvar uma mulher em perigo. Sim, Kivrin está num período repleto de perigos desconhecidos por ela. Dunworthy é o único a atuar no presente para possibilitar o retorno. É como um pai preocupado com sua filha, mas que não pode lutar por ela. Kivrin é a mulher no comando de sua vida e demonstra capacidade suficiente de lidar com os problemas que aparecem à sua frente. Os problemas enfrentados por ela não são poucos, tampouco são fáceis. E isto torna a parte de Kivrin, de longe, a melhor.

A humanidade através dos tempos

Connie Willis consegue narrar bem dois períodos distintos. Talvez a narrativa de um futuro – presente no enredo – seja um pouco estranha aos olhos dos indivíduos de 2017. Afinal, 25 anos separam a publicação original da publicação brasileira. Ainda assim, consegue desenvolver razoavelmente questões de ciência, religião, tecnologia e política – cabe destacar as menções aos impactos de uma comunidade europeia, tendo em vista a fundação da União Europeia em 1993. E, de certo modo, compara as perspectivas do presente e do futuro quanto a esses temas.

A autora aborda, de forma leve, os rumos tomados pela humanidade na ideia de desenvolvimento. Muitas vezes, os seres humanos acreditam que o desenvolvimento tecnológico e científico é a única resposta para as crises. Todavia, novas crises surgem sob diferentes aspectos. Não obstante, a essência da humanidade enquanto formada de indivíduos dotados de consciência e sentimentos, permanece. Do mesmo modo, apesar de todos os avanços, permanece a violência contra a mulher.

“‘Será que não havia uma só pessoa de bem na Idade Média?’, perguntara Kivrin, e é claro que havia. Rapazes com canivetes ou com mapas de metrô sempre existiriam em todas as épocas. O mesmo valia para mulheres conduzindo crianças e para as sras. Gaddson e os srs. Latimer. E os srs. Gilchrist.”

As mulheres na história

Por meio dessa comparação implícita, Connie Willis desenvolve diferentes perspectivas sobre o papel da mulher. Em 2054, constrói personagens femininas responsáveis por descobertas arqueológicas, medicinais, tecnológicas e históricas. Essas personagens se destacam em meio aos personagens masculinos. Já na Idade Média, o mesmo não pode ser feito, em razão das condições sociais. Assim, a autora aborda outras questões sobre o papel da mulher.

Quando Kivrin chega ao passado, é acolhida pela família de Eliwys, uma jovem mulher que esconde um segredo sobre sua saída de Bath. Neste meio, Kivrin convive com a sogra de Eliwys, uma mulher religiosa que atribui tudo a Deus e ao Diabo, e suas duas filhas, Agnes e Rosemund, meninas que, aos seus modos, parecem saídas de contos de fada. A autora, inclusive, coloca elementos na narrativa que remetem aos contos da Chapeuzinho Vermelho e da Branca de Neve.

O machismo perpetuado na história

Kivrin é nitidamente mais apega a Agne, com quem constrói uma relação emocionante. Apesar da forte afeição, entretanto, Rosemund é melhor abordada. Rosemund possui apenas 12 anos. Pelos olhos daquela sociedade, às vezes, é considerada uma criança; às vezes, é considerada uma mulher. Mesmo com a pouca idade, foi prometida em casamento a um homem de 50 anos, que não se nega a agir “indecorosamente” com a menina.

A aversão de Rosemund ao noivo é clara. Ele, porém, insiste em assediá-la, por toques e palavras, autorizado culturalmente. A diferença entre uma história que se utiliza destes artifícios como entretenimento machista daquelas que se utilizam para problematização consiste justamente no repúdio dentro da própria narrativa. E a autora não se nega a narrar algumas ocorrências, mas sempre de modo a evidenciar a violência, seja através do posicionamento de Rosemund ou da manifestação de Kivrin.

Connie Willis realiza, ainda, comparação entre o tratamento conferido a meninos e meninas. Enquanto, na Idade Média, uma menina de 12 anos é tratada como uma mulher adulta pronta para satisfazer as vontades masculinas, um menino de 12 anos, no futuro, é tratado como uma criança merecedora de presentes de Natal e mais atenção dos pais.

Pode ser que alguns digam que o adequado seria uma comparação entre crianças do mesmo gênero. De fato, aparecem meninos na Idade Média que não viviam a mesma realidade dos meninos de 2054. Estavam sujeitos a doenças e tratamentos diferenciados. Todavia, nenhum deles era sexualizado desde a infância. E mesmo no ano de 2017 do mundo real, ainda existem meninas que são obrigadas a casar aos 12 anos – o Brasil é o 4º país no ranking de casamento infantil – e que são sexualizadas pela sociedade.

O Livro do Juízo Final

A riqueza de discussões

Enfim, O Livro do Juízo Final é um livro rico. É possível que a autora desenvolvesse melhor alguns personagens e deixasse de lado algumas caricaturas clichês. Ou que desenvolvesse de forma mais profunda alguns pontos da história, embora ela seja circular.

No entanto, apresenta detalhes importantes sobre a Idade Média e discussões bastante interessantes. Apresenta, sobretudo, uma protagonista forte e que foge aos estereótipos. A história é construída sobre um enredo que foge da previsibilidade no que concerne ao rumo dos personagens e dos fatos. A trajetória de Kivrin  em meio a um mundo ameaçado pela Peste entretém, e seu relacionamento com Agnes, Rosemund e o padre Roche emocionam. Por fim, é um livro leve e capaz de suscitar reflexões imprescindíveis a qualquer momento da história humana.

O Livro do Juízo Final, primeiro da série sobre historiadores de Oxford intitulada Oxford Time Travel, é seguido de To Say Nothing Of The Dog, Blackout e All Clear, ainda não publicados no Brasil.

“- Havia uma donzela […]
– … que vivia pertinho de uma grande floresta […]. ‘Nunca entre na floresta sozinha’, dizia o pai dela…
– Mas ela não dava atenção […].
– Não, não dava. O pai amava e se preocupava com a filha, mas ela não dava atenção.
– O que havia na floresta? […]
[…] Degoladores e ladrões, pensou ela. E homens velhos e lúbricos e suas irmãs megeras. E amantes proibidos. E maridos. E juízes.
– Todo tipo de coisas perigosas.”


O Livro do Juízo FinalO Livro do Juízo Final

Autora: Connie Willis

576 páginas

Editora Suma das Letras

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Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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