Mulheres amam terror: por que os caras ainda se surpreendem tanto?

Mulheres amam terror: por que os caras ainda se surpreendem tanto?

À medida que It: A Coisa, a adaptação do clássico do terror de Stephen King, dominou as bilheterias nas primeiras semanas de seu lançamento, os números da PostTrak mostraram que o comparecimento nos cinemas foi quase completamente dividido entre os gêneros, com 51% dos compradores dos ingressos sendo homens e 49% mulheres. Foi algo notável para mim, já que confirmou algo sobre o qual estamos falando há muito tempo: as mulheres gostam de filmes de terror. Na verdade, de forma geral, tendemos a gostar mais deles que os homens, então deixe de lado todos os seus estereótipos sobre namoradas sendo relutantemente arrastadas para o cinema e escondendo o rosto entre as mãos durante todas as cenas.

Há uma incrível citação do Bela Lugosi que eu sempre amei e que cito constantemente quando a questão sobre as mulheres e nosso amor por esse gênero, é levantada: “São as mulheres que amam o terror. Elas o devoram. Se alimentam dele. E são nutridas por ele. Se estremecem e se abraçam e gritam — e voltam por mais.” 

Parece um pouco de autopromoção vinda do próprio Drácula, mas é uma frase emblemática sobre algo que tem sido verdadeiro desde o surgimento do terror. Os filmes de terror vêm com uma garantia para o público — confie em nós e vamos assustá-lo e emocioná-lo por algumas horas.

Um slasher sujo, um clássico conto de uma casa mal-assombrada ou um festival visceral de gore nos dão a última dosagem de adrenalina. Faz seu coração pular, suas mãos tremerem, seu cérebro questionar tudo o que está acontecendo. O romance nos dá o final feliz, mas é o terror que nos oferece a mais pura emoção visceral.

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Garota Sombria Caminha Pela Noite (2014)

De um ponto de vista puramente estatístico, não é de se admirar que as mulheres se encontrem no terror. Embora, na questão de paridade de gênero, o cinema, em geral, tem uma tendência em diminuir a representação das mulheres, o terror tem sido uma exceção. Um estudo recente realizado pelo Google e pelo Instituto Geena Davis utilizou uma tecnologia para reconhecer os padrões de gênero, o tempo de exibição e tempo de fala em grandes filmes. Enquanto os resultados revelaram que os homens são vistos e ouvidos duas vezes mais do que as mulheres, o contrário só acontecia no terror. As mulheres detiveram 53% em tempo de tela e 47% do tempo com falas. Em comparação, as mulheres obtiveram apenas 45% em tempo de tela nos romances, um gênero que deveria ser apenas para nós.

Clássicos recentes como Corrente do Mal (It Follows, 2014), A Bruxa (The Witch, 2015) e O Babadook (The Babadook, 2014) colocaram as mulheres na frente e no centro da aclamação crítica e comercial, embora, historicamente traga, inevitavelmente, sentimentos mistos para as mulheres. Para cada garota gritante, seminua e encharcada de sangue enquanto corre do assassino enlouquecido, há uma Ellen Ripley lutando contra os maiores seres maléficos ou um vilão bem vestido; se entregando ao caos. Navegar nesse campo sendo uma mulher pode ser difícil, mas, como observado por LinnieSarah Helpern do The Horror Honeys, em sua publicação oficial para o Belladonna Magazine:

“Eu acho que, no final do dia, as mulheres se tornaram muito hábeis em determinar quais os filmes de terror estão, de certa forma, homenageando o legado do gênero e quais são inerentemente misóginos. Muitos filmes, especialmente os recentes, são bastante nefastos com os seus tons anti-mulheres, mas aquelas de nós que cresceram no gênero podem localizar os desse tipo a uma milha de distância. A razão pela qual continuamos voltando, apesar de filmes como esses, é pelas joias escondidas, de alguns, surpreendentemente competentes, blockbusters e dos milagrosos filmes independentes, que nos lembram o porquê o terror é tão importante. Seja um filme como Mãe! (Mother!) ou Corra! (Get Out), sabemos que sempre vale a pena percorrer o lixo.”

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A Bruxa (2015)

Historicamente, o terror ofereceu muito às mulheres como uma saída criativa. Mary Shelley pode ser creditada como a primeira escritora de ficção científica com Frankenstein, mas o seu clássico romance, também capta, perfeitamente, a mania febril do horror corporal e os medos de suas próprias criações. As mulheres eram grandes amantes do boom gótico nos anos 1700, tanto que Jane Austen escreveu um livro inteiro zombando da moda. Como bem observado por Helpern, as mulheres estão comprando os ingressos para o cinema de terror desde os primórdios do filme mudo.

Alice Guy-Blaché, a primeira diretora de filmes ficcionais, também fez o que poderia ser chamado de primeiro filme de terror, um conto de fadas estranhamente inquietante chamado A Fada do Repolho (La Fée aux Choux), que não é muito diferente de um filme de um del Toro (Guillermo del Toro) ou de um Gilliam (Terry Gilliam).

Mesmo em filmes dirigidos por homens, o cinema de terror sempre faz um uso forte das mulheres: o que seria dos icônicos monstros da Universal Studios sem a Noiva de Frankenstein, ou qualquer adaptação do Drácula sem a tenacidade e a bravura de Mina Harker? Mesmo em um filme tão infamemente sombrio como O Massacre da Serra Elétrica, é uma mulher que faz o Leatherface de bobo e escapa, rindo dele enquanto o caminhão o ultrapassa.

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O Massacre da Serra Elétrica (1974)

Como qualquer bom gênero, o terror é a porta através da qual podemos entrar e explorar nossos maiores medos e fazer as perguntas mais difíceis. Nós usamos o romance para, seguramente, nos interrogar sobre os pontos de vista do nosso mundo sobre o amor, e o horror é como mergulhamos na morte; mas ele pode ser explorado ainda mais. Muitas coisas que lidamos diariamente, durante a vida, são bastante horríveis quando paramos para pensar: a luta perpétua contra a misoginia, o despertar do patriarcado, a menstruação e as lutas sobre o controle reprodutivo, questões sobre relacionamentos, sexo e casamento, os medos da maternidade e as armadilhas sufocantes da feminilidade imposta pela sociedade.

Falar sobre qualquer um desses problemas em público pode ser quase impossível, pois o julgamento e o desprezo podem encerrar o discurso antes mesmo dele começar. As mulheres ainda devem lidar com a ideia de que discutir sobre menstruação, parto ou oposição à maternidade é considerado grosseiro ou vulgar.

Não é de se admirar que o terror se tornou nossa nova janela das realidades do nosso mundo, embora esteja sendo através de uma lente mais visceral. O que é O Bebê de Rosemary, se não uma intensa exploração dos medos da maternidade compulsória? Ou Mulheres Perfeitas (The Stepford Wives) e sua confirmação do pesadelo da submissão que uma sociedade sexista exige das mulheres? Corrente do Mal (It Follows) pode conter uma das críticas mais ferrenhas à cultura do estupro, do que qualquer outro filme tenha feito nas últimas décadas.

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Raw (2016)

O machismo exige que as mulheres ignorem seus próprios medos e dores ao mesmo tempo que os reforçam. Nos dizem para termos medo do desejo sexual e tratarmos a menstruação como algo sujo, mas devemos ver o difícil e, muitas vezes, agonizante processo de parto como um belo presente da natureza. Fazem piada com os temores do casamento como se fossem uma coisa do passado, enquanto ainda nos empurram para modelos constritivos de condutas próprias de uma mulher casada.

É cansativo passarmos por tudo isso, e é o terror que nos lembra que está tudo bem ter medo. Sim, a gravidez é como ter um parasita se alimentando do seu corpo antes de ser expulso violentamente do seu interior. A ideia de prometer a sua vida a um homem e, em seguida, ele tomar o seu nome, não é enervante? Não é divertido ver o que acontece quando as piores ideias da sociedade sobre as mulheres são subvertidas ou confirmadas?

Tantos homens, mesmo os mais iluminados, ainda veem as mulheres como flores murchas que passivamente aceitam tudo que é jogado contra elas e se escondem atrás de seus dedos quando as cenas assustadoras acontecem. Helpern observa que homens e mulheres não são tão diferentes quando se trata de terror:

“No final do dia, as razões pelas quais as mulheres adoram o terror provavelmente não são tão diferentes das razões pelas quais os homens adoram. Mas os caminhos e os motivos que apreciamos podem ser muito diferentes. As mulheres geralmente apreciam a beleza do sangue e o poder que uma mulher encontra na vingança. O terror, inevitavelmente, oferece experiências diferentes para todos, mas há anos que o fandom de terror vem favorecendo as mulheres”.

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O Babadook (2014)

Terror é a porta para as mulheres explorarem o que não podem controlar. Denise Gossett, diretora e fundadora da Shriekfest, explica:

“Eu acho que as mulheres adoram o terror muitas vezes pelas mesmas razões que os homens adoram … nós gostamos de ter medo, nós gostamos de ver situações horríveis, mas sabemos que estamos seguras. É a mesma razão pela qual as pessoas não podem deixar de encarar um acidente de carro … não é que desejamos que alguém fique ferido ou morto, é só que é fascinante … a morte não é algo que experimentamos e, se já, não lembramos disso, então, isso nos atrai de certa forma“.

American Mary (2012)

Ser uma mulher na cultura pop é sempre uma luta diária, que é reconhecer que o que você mais ama nem sempre tratará bem o seu gênero. Certamente é uma verdade sobre o terror, mas basicamente pode ser aplicado a qualquer gênero ou campo de seu interesse. O terror pode ser cruel para nós, mas também é um caldeirão perfeito de ideias, emoções e desafios que mantêm as mulheres retornando repetidas vezes.

Agora, há mulheres incríveis que usam o terror para obter os resultados mais emocionantes, de Karyn Kusama à Jennifer Kent para as Irmãs Soska e Julia Ducournau, e parece não haver nenhum risco de que isso pare. Não deveria impressionar ninguém que o terror seja uma das maiores ferramentas das mulheres para lidar com o peso do mundo. Todo mundo gosta de ter medo — mas para nós, há uma força especial que é encontrada na experiência visceral do medo, da violência, e em poder revidar.

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Tradução livre de Camila Novaes, do texto: “WOMEN LOVE HORROR: WHY DOES THIS STILL SURPRISE SO MANY DUDES?”, publicado originalmente em Medium.

Autora convidadaCamila Novaes tem 23 anos e sempre viveu em um triângulo amoroso com a Literatura e o Cinema. Escolheu a primeira e está se graduando em Português e Literatura na UERJ, porém vive um relacionamento aberto que sempre inclui o Cinema. Nerd, feminista, canceriana com ascendente em Leão e lua em Sagitário (God Help the Girl!). Em Hogwarts é Sonserina sim, Sonserina sim, mas promete que não é uma bruxa das trevas (pelo menos não muito)! Escreve para o site Beco Literário

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