[LIVROS] Reze pelas mulheres roubadas: Um relato sobre o terror misógino que acomete o México

[LIVROS] Reze pelas mulheres roubadas: Um relato sobre o terror misógino que acomete o México

Uma vida vivida com medo e à espera do pior, em que um buraco cavado na terra é a “estratégia” usada pelas mães para evitar que suas filhas virem escravas sexuais. Essa é a rotina de mulheres que (sobre)vivem numa pequena localidade do estado mexicano de Guerrero, entre as cidades de Chilpancingo e Acapulco, um dos locais mais perigosos para se viver dentro de um país que é mundialmente conhecido por seus feminicídios. A histórica contada em Reze pelas mulheres roubadas pela escritora estadunidense (e de ascendência mexicana) Jennifer Clement foca na vida da pequena Ladydi García Martinez, que é pré-adolescente quando a narrativa se inicia.

Ladydi vive numa montanha onde, ela nos revela, não há homens. Ou estes imigraram para os Estados Unidos ou se afogaram/foram alvejados enquanto cruzavam a fronteira (atravessando desertos ou rios) ou então estão mortos/presos porque se envolveram com o narcotráfico.

As mulheres e meninas que restaram sobrevivem como podem, por meio de trabalhos precários e algum dinheiro enviado pelos homens que estão nos EUA (algo muito raro), e em contante estado de terror. Os narcotraficantes que vivem na região sabem que ali vivem apenas mulheres e suas meninas. De repente, despontam na estrada desértica com seus carros de luxo e armados até os dentes e sequestram as meninas, com o objetivo de vendê-las para outros traficantes como escravas sexuais.

O destino final de muitas das vítimas do tráfico sexual, quando já foram usadas e abusadas incontáveis vezes, é o feminicídio, o ato extremo de um continuum de violência que se apresenta desde o dia em que uma menina vem ao mundo. Como afirma Clement em uma entrevista ao Estadão, tendo como base o que ouviu das próprias mulheres: “Uma mulher pode ser vendida várias vezes por dia e para diferentes donos ,enquanto um saco plástico com droga só é vendido uma vez”.

Reze pelas mulheres roubadas
Mulher vestida como uma caveira (catrina) protesta contra o feminicídio na Cidade do México. Imagem: Reprodução

Para escapar dessa sina, da qual praticamente 99.9% das meninas jamais retornará viva, as mães bolam estratégias como enfiar as filhas em buracos quando os carros se aproximam. Quando elas nascem, anunciam à comunidade que, felizmente, naquela casa nasceu um menino. Pintam os dentes das filhas com canetas pilot e graxa, as impedem de usar vestidos e chegam a quebrar seus dentes para que fiquem feias.

Intersecções entre gênero, etnia e classe

Além da violência machista, as mulheres sofrem também com a pobreza, com a discriminação por serem mexicanas de pele escura e com um clima impiedoso. O lugar é quente e abafado, cheio de iguanas, escorpiões venenosos, formigas gigantes e moscas que se alimentam do sangue e das lágrimas das mulheres. Nas florestas ao redor escondem-se campos de maconha e de papoula (base da cocaína) que são a origem de muitos dos pesadelos do México.

O medo da violência faz com que quase não haja professores e médicos na localidade. Os primeiros só aceitam trabalhar ali como forma de cumprirem logo com as exigências governamentais de trabalho social como requisito para a formação, e o segundos só aparecem de vez em quando para realizar cirurgias, sempre escoltados pelo Exército.

Reze pelas mulheres roubadas
A autora, Jennifer Clement. Imagem: Reprodução

Além da violência dos indivíduos do sexo masculino, a violência institucional, cometida pelo Estado (também monopolizado por homens), também é assombrosa. Embora caiba ao Exército encontrar e destruir as plantações, a corrupção leva a melhor: os helicópteros que deveriam derramar paraquat, um herbicida, sobre os pés de maconha e de papoula têm o hábito de fazer isso sobre a cidade, em cima das casas, das lojas e dos próprios habitantes, sem se importarem com o fato de que o líquido pode causar doenças, defeitos congênitos em bebês e até a morte.

O contraste entre a pobreza da montanha e as mansões de Acapulco também chocam. É nestas casas que muitas das mulheres arranjam emprego — este, inclusive, é o destino tanto Ladydi quanto de sua mãe. Muitas das mansões são de propriedade dos narcotraficantes, que possuem gostos bizarros e nenhum apreço pelo povo que sofre logo ao lado, inclusive dentro de sua própria casa. Os gostos sanguinários de um deles, inclusive, é o que, em parte, levará Ladydi à cadeia e contribuirá para aumentar o peso das acusações contra ela.

Afeto entre mulheres

Apesar de ser um livro extremamente doloroso e angustiante, “Reze pelas meninas roubadas” é também um livro cheio de afeto, de solidariedade feminina, de resiliência e até mesmo marcado por uma veia cômica. A amizade entre Ladydi e suas amigas Paula, Maria e Estefani é um dos aspectos mais belos da narrativa — ainda mais quando Ladydi descobre que sua ligação com Maria é mais profunda do que ela imaginavam.

A luta das mães para que suas filhas não sejam roubadas é emocionante — são mulheres traídas, desprezadas e abandonadas pelos maridos. Um contamina a esposa com o HIV e ainda a acusa de infidelidade, abandonando-a. O outro engravida a vizinha e amiga da esposa e, quando vai embora de vez para os EUA, deixa de mandar dinheiro à primeira família e só ampara a segunda. Um terceiro abandona a família após a filha nascer com uma deficiência.

Não há sentimentalismo nem apelação na denúncia feita por Clement. A mãe de Ladydi, Rita, é um ser humano complexo. É alcoólatra, viciada em documentários históricos da NatGeo, cleptomaníaca e mesquinha em suas relações interpessoais, mas também uma mãe que luta pela filha com unhas e dentes quando entende que sua proteção é essencial e necessária.

Reze pelas mulheres roubadas
Cruzes cor de rosa se tornaram o símbolo dos casos de feminicídio no México. Imagem: Reprodução

Situações vividas entre as mulheres que em outros lugares do mundo seriam vistas como comezinhas e até supérfluas adquirem um tom poético de resistência, como no caso das visitas das mulheres e suas filhas ao salão de beleza “A Ilusão”, de propriedade de Ruth, encontrada no lixo quando bebê.

Dentro do salão, por algumas horas, as mulheres pintam as unhas, escovam o cabelo e colocam maquiagem, para, ao final, retirarem o esmalte e o batom e desmancharem o penteado, já que a vida lá fora é cruel e cabe às mulheres não “provocarem” os homens com sua beleza. Muitas mulheres procuram Ruth não para que ela embeleze as filhas, mas para que as deixe feias, tanto que Ruth afirma que aquele não é um salão de beleza, mas de “feiura”.

A melhor coisa que você pode fazer no México é ser uma menina feia. Meu nome é Ladydi Garcia Martínez e tenho pele morena, olhos castanhos, cabelo castanho e crespo e pareço com todo mundo que conheço. Quando eu era pequena, minha mãe me vestia de menino e me chamava de Menino. Contei a todo mundo que tive um menino, ela disse. Se fosse uma menina, eu seria roubada. Se os traficantes de drogas ficassem sabendo que havia uma menina bonita por perto, eles invadiriam nossas terras em Escalades e a levariam. Na televisão, eu via meninas se enfeitando, penteando os cabelos e fazendo tranças com laços cor-de-rosa ou usando maquiagem, mas isso nunca aconteceu em minha casa. Talvez eu tenha que quebrar os seus dentes, minha mãe dizia. Quando cresci, passei a esfregar um lápis marcador preto ou amarelo nos dentes para que parecessem podres. Não há nada mais nojento do que uma boca suja, mamãe dizia. Foi a mãe de Paula quem teve a ideia de cavar os buracos. Ela morava em frente a nós e tinha uma casinha própria e uma plantação de papaias. Minha mãe dizia que o estado de Guerrero estava se transformando numa coelheira, com meninas se escondendo por toda parte. Assim que alguém ouvia o barulho de um SUV se aproximando, ou via ao longe um, dois ou três pontinhos pretos, todas as meninas corriam para os buracos. (Reze pelas mulheres roubadas, p. 9-10).

Leia aqui o primeiro capítulo do livro

Delicadeza no trato da violência sexual

Para compor a história de Ladydi e suas amigas, Clement passou dez anos entrevistando dezenas de mulheres mexicanas vítimas da violência para compor o livro, mistura de ficção com prosa jornalística/documental. A obra, inclusive, foi possível por meio de uma bolsa ganha pela autora, o National Endowment for the Arts (NEA) Fellowship in Fiction, com o apoio do Sistema Nacional de Criadores de Arte (FONCA) do México. É um trabalho árduo do ponto de vista de apuração que, embora trate de um tema dificílimo e doloroso, o faz de forma responsável e delicada.

O tema da violência sexual está presente a todo instante, mas a autora dispensa descrições pormenorizadas de estupros ou de rituais sádicos cometidos pelos traficantes. Sua intenção não é chocar o leitor ou a leitora, afinal, que tipo de empatia poderia resultar do simples choque provocado pelo sensacionalismo?

Reze pelas mulheres roubadas
Imagem: Reprodução

Todas nós sabemos como é um estupro — a literatura e a mídia, ao longo do tempo, se encarregaram de jogar na nossa cara ou descrever demoradamente diversas cenas a respeito deste crime. O medo constante que sentimos ao andar nas ruas e as notícias policialescas de jornal não nos deixam esquecer o horror desse crime nem por um instante.

Jennifer Clement, por outro lado, não está interessada nisso — na linguagem gráfica, nas descrições que beiram o sadismo de muitos narradores (em geral homens) e na exploração do sofrimento pelo sofrimento. O que ela mostra é como a violência afeta o cotidiano das vítimas e as impede de viver com dignidade, como forma de gerar empatia e engajamento no tema.

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A forma pela qual é narrado o que ocorre com Paula — tanto o seu “roubo” quanto o cativeiro em si e como sua vida é suspensa após a violência— mostram toda a delicadeza da escrita de Clement e o respeito pela história de milhares de mulheres mexicanas, vivas ou mortas, cujas vidas foram atravessadas por violências e privações de direitos terríveis.

Em um momento em que, felizmente, falamos cada vez mais sobre a violência sexual e o feminicídio, “Reze pelas mulheres roubadas” é um poderoso instrumento de conscientização e sensibilização a respeito do que ocorre no México — que vem logo atrás do Brasil no infame ranking dos países que mais matam mulheres. Nós estamos em 5.º lugar, e os mexicanos, em 6.º.

Uma vez que lutamos até mesmo para visibilizar e legitimar o termo feminicídio, ter a nosso favor uma Literatura que se importa com o sofrimento das mulheres e sua libertação das garras da violência é algo para se comemorar. Há pouco tempo não era assim. Que ela seja, portanto, um instrumento potente de humanização das mulheres por meio das palavras.

Para saber mais:


Reze pelas mulheres roubadasReze pelas mulheres roubadas

Autora: Jennifer Clement

Editora Rocco

237 páginas

Ano: 2015

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