Ruína y Leveza: uma viagem para se encontrar

Ruína y Leveza: uma viagem para se encontrar

Ruína y leveza talvez seja um dos livros mais melancólicos escritos em 2015, em partes porque não encontramos um livro repleto de ações, onde mil acontecimentos são descritos em 1 parágrafo, e em partes porque é um livro repleto de memórias. A história contada é de Sara, para Sara e por Sara.

Sara é uma jovem que trabalha com publicidade, e assim como muitas pessoas encontra-se confusa e sozinha diante da vida adulta. Oscilando entre trabalho, bares e encontros casuais, Sara percebe que aos poucos vai ficando cada dia mais depressiva, ansiosa e também alcoólatra. A protagonista logo percebe que seus problemas internos não serão solucionados tão cedo e decide uma mudança radical em sua vida, planeja uma viagem ao Peru.

Todo mundo deve conhecer alguém ou é essa pessoa, que coloca a vontade e expectativa todas em uma viagem para outro país, acreditando que indo para algum local distante terá uma grande revelação ou grande epifania. Em Ruína y leveza não é diferente; Sara parte quase às cegas para realizar sua viagem pela América Latina.

O livro ganha muitos pontos positivos ao trabalhar diversos assuntos importantes e atuais em sua narrativa, não ficando preso à descrições turísticas de viagem. Um dos temas mais falados e problematizados por Sara em sua viagem é a pobreza encontrada no Peru.

“Minhas roupas já estavam cobertas do pó vermelho do adobe porque eu não estava habituada a não encostar nas paredes. O chão era de terra, o teto de zindo e a casa inteira tinha um leve cheiro de banheiro, que tentei ignorar ao máximo, esperando que o olfato se acostumasse. O quarto de Carmen não tinha mais que oito metros quadrados e abrigava um guarda-roupa rosa, um banco de madeira coberto de roupas e uma cama ligeiramente menor que uma cama de solteiro comum”

Realidade social do Peru

Uma brasileira no Peru não é um cenário novo e desconhecido, é uma realidade tão presente tanto nos livros literários quanto no contexto dos países vizinhos Brasil e Peru. O que costumamos ver acontecendo no cenário brasileiro é um aglutinado de pessoas (principalmente as mais “alternativas”) indo ao Peru para turistar ou comprar objetos da moda hippie ou ambos. Até aí tudo bem, porque muitas pessoas querem conhecer Machu Picchu, visitar o Vale Sagrado dos Incas ou aproveitar o preço do sole e gastar todo o dinheiro em roupas coloridas com tecido patchwork; mas será que a população peruana se beneficia com todo esse ar de “país turístico” taxado no Peru?

Em Ruína y Leveza a protagonista do livro traz algumas reflexões sobre essa pergunta, que ela mesma teve com diálogos obtidos com mulheres peruanas. Sara não se sente nem um pouco à vontade sendo uma estrangeira no Peru, pois logo se dá conta do seu local de não pertencimento. Ela não tinha em si o espírito ávido de aventura que impulsiona diversas pessoas a irem ao Peru e andar 10 km em uma altitude de tirar o fôlego – literalmente – e também não sabia o que “procurava” em sua viagem. Ao longo do livro podemos acompanhar a evolução da protagonista em seu objetivo de viajar, que desde do começo, não fica claro se ela tem algum ou se a própria Sara sabe o que é.

O que Sara logo percebe, que causa tanto estranhamento entre ela e a população do Peru, deve-se ao fator econômico. A protagonista não visita apenas as partes bonitas e elogiadas do território peruano, Sara vai além e conhece muita miséria, vê pobreza que nunca tinha visto com tanta profundidade em sua vida em Porto Alegre. Sara logo descobre que os gringos, ao irem conhecer o Peru, “conhecem” mais a fundo uma parte integrante do país e de sua cultura; as mulheres.

“Os gringos vem aqui e deixam as mulher barriguda e depois vai embora”

Ruína y Leveza
Imagem: Reprodução

“Conhecem” é um eufemismo. O que ocorre quando os homens do exterior chegam ao Peru é a geração de uma criança na barriga da mulher e a paternidade não assumida do pai gringo, que ninguém sabe mais onde mora. Júlia Dantas, a autora do livro, traz a reflexão de como cidades que são vistas apenas como turísticas, feitas para atender ao outro , possuem até mesmo sua população (em especial as mulheres) como vítimas de “atender” ao turista. Como já dizia Heleieth Saffioti, se a classe trabalhadora no capitalismo é precarizada, as mulheres encontram-se ainda em uma situação pior; de subprecarização.

Ao longo do livro percebemos que a questão da mulher é tratada a todo momento pela autora e percebida pela protagonista. Por ser um livro escrito por uma mulher, conseguimos enxergar claramente críticas ao sistema patriarcal e às diversas violências de gênero que mulheres sofrem diariamente. É nesse ponto que Júlia Dantas acerta em cheio, ao trazer visibilidade para a questão de gênero.

Abortos clandestinos

“Eu entendia. Nas minhas proporções, pois o que estava em jogo para Carmen era muito mais do que eu poderia calcular. Se eu engravidasse por acidente, poderia ser mãe solteira e teria que abandonar a boemia e os caprichos, mas Carmen abandonava estudos, uma chance de uma carreira própria, e se enclausuraria em um povoado perdido no meio da Amazônia. ”

(atenção: pequenos spoilers que não tiram o prazer da leitura logo abaixo)

Carmen, é uma jovem estudante que logo cruza o caminho da viajante Sara. Carmen mora no Peru e acaba tendo um relacionamento com um rapaz peruano que logo se torna responsável por engravidá-la. Aborto costuma ser um tema “tabu” tratado no Brasil, e a invisibilização com o aborto só acarreta em mais violência aos corpos das mulheres (principalmente pobres e negras). No Peru não é diferente, pois o aborto não é legalizado.

Sara torna-se a confidente de Carmen, e ambas tentam juntas buscar uma solução para Carmen, que não conseguiria sustentar e manter uma criança. A primeira e mais barata opção encontrada é o aborto clandestino. “Bom, não precisa de muita coisa. Eu tenho que tomar um chá de ervas muito fortes de manhã, e de noite ela retira tudo com uma espécie de agulha.” Assim como Carmen, diversas mulheres são obrigadas a se submeterem à situações perigososas e na grande maioria das vezes mortais, por não possuírem o direito sobre seus corpos garantido.

Sabemos que abortos sempre aconteceram e acontecerão. Apesar de ser um assunto tratado às escuras, mulheres continuam morrendo diariamente, enquanto não se institui uma lei que garanta proteção ao corpo da mulher e retire o controle estatal sobre o corpo feminino; isto é, se é da mulher, é ela quem escolhe.

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Conclusão

Ruína y Leveza é um livro que sobretudo trata de autoconhecimento, mas não se restringe a isso. Trata também sobre o reconhecimento de privilégios em uma sociedade marcada pela desigualdade social, mas também fala sobre sororidade entre mulheres e consegue falar sobre memórias.

Por vezes desmerecemos as histórias de vida que cada pessoa carrega em si. Ruína y Leveza traz o fortalecimento para as marcas e memórias deixadas pela vida,tirando desse local invisível onde depositamos nossas dores, pois é somente enxergando a ferida que é possível obter uma forma de redenção.

Sobre a autora

Júlia Dantas nasceu em Porto Alegre, em 1985. Formou-se em jornalismo, estudou critica de arte em Buenos Aires, atuou como tradutora e hoje se dedica à edição de livros e ao mestrado em escrita criativa na PUCRS. Seu romance Ruína y Leveza foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura.


Ruína y LevezaRuína y Leveza

Autora: Júlia Dantas

Não Editora

208 páginas

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Escrito por:

27 Textos

Feminista e estudante de serviço social. Ama Star Wars e é viciada em gatos. Adora conversar sobre gênero e brinca de ser gamer nas horas vagas. Nunca superou o fim de The Smiths.
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