[OPINIÃO] As recentes ondas de denúncia explicam: por que não podemos confundir a reação do oprimido com a violência do opressor?

[OPINIÃO] As recentes ondas de denúncia explicam: por que não podemos confundir a reação do oprimido com a violência do opressor?

Pelo título fica bem óbvio que o que me instigou a escrever esse texto foi a carta redigida e assinada por cerca de 100 atrizes francesas. Logo depois da célebre cerimônia de premiação do Globo de Ouro, marcada por diversas manifestações feministas, e do sucesso de movimentos como o Time’s Up e o The Silence Breakers, com a hashtag #MeToo.

Para quem não está por dentro do que rolou, uma breve contextualização: desde o meio do ano passado, uma série de denúncias tomou conta de Hollywood. Atrizes famosas começaram a relatar casos de assédios que sofreram e, a cada novo relato, outros vários saíam debaixo do tapete; o clássico efeito bola de neve.

De casos antigos a mais recentes, as mulheres se uniram para exigir que os abusadores sofressem algum tipo de represália pelas atitudes que há muitos anos (desde o começo da indústria cinematográfica, será?) vinham sendo abafadas e algumas medidas foram tomadas.

Entre os principais estavam o caso de Harvey Weinstein,  famoso produtor de Hollywood que acabou sendo demitido, e o de Kevin Spacey, que não só teve seu contrato cancelado com a Netflix para a nova temporada de “House of Cards”, como todas as cenas em que aparecia no novo filme de Ridley Scott, “All the Money in the World”, foram deletadas (faltando cerca de um mês para a estreia). Detalhe importante: as denúncias de Spacey vieram de homens. Talvez até por isso mesmo é que algo tão estrondoso tenha sido feito.

Muitos vibraram por, enfim, alguma atitude ser tomada em relação a essa prática tão comum por trás das câmeras, tanto é que o movimento “The Silence Breakers” foi considerado personalidade do ano de 2017 pela revista “Time”Mas a polêmica surtiu efeitos contrários em outros, entre elas renomadas atrizes francesas como a Catherine Deneuve. Elas se juntaram e escreveram uma carta elencando uma série de motivos que faziam de todas aquelas manifestações algo muito exagerado; será que esses pequenos “vacilos” deveriam mesmo destruir toda uma carreira profissional? 

E não parou por aí: nos últimos dias, a escritora Margaret Atwood, autora de “O Conto da Aia“, que deu origem à série “The Handmaid’s Tale“, também fez algumas críticas ao movimento #MeToo. O Brasil, claro, não ficou de fora dessa. A escritora Danuza Leão aproveitou a deixa para dar opiniões bem controversas em relação a cantadas.  

É um absurdo imaginar que, em pleno 2018, mulheres consigam se colocar contra outras mulheres, né? Mas ouso dizer que ler essa carta me fez voltar no tempo.

Leia também:
>> [SÉRIES] The Handmaid’s Tale oferece um aviso aterrorizante, mas o sequestro do feminismo é tão perigoso quanto
>> [SÉRIES] The Handmaid’s Tale: A distopia feminista que todas as mulheres deveriam assistir
>> [LIVROS] O Conto da Aia: O controle e a opressão em uma distopia

2013, bomba na cena straight edge de São Paulo: alguns caras de bandas e projetos dos mais famosinhos resolveram divulgar, em um grupo de WhatsApp, fotos íntimas de garotas com quem saíam a maioria sem a autorização delas.

Um desses caras era o meu ex-companheiro e, consequentemente, uma das meninas expostas fui eu. Em tempo para um parênteses: vou contar tudo de forma resumida, sob o meu ponto de vista e sem entrar no mérito de “o que aconteceu mes-mo?” até porque essa história rendeu muita dor de cabeça e tanto tempo já se passou que ninguém nem deve mais saber o que rolou ou não lá. Prossigamos.

O fato é que, depois que a notícia explodiu, quase automaticamente foram formados dois grupos: os que estavam a favor das meninas, e os contrários a nós. Já deixo aqui a minha primeira crítica, inclusive; é engraçado como em casos de exposição ninguém está interessado em quem expôs, só em quem foi exposto. Assim, em pouquíssimo tempo o foco deixou de ser a patifaria dos caras para virar o famigerado “isso daí é caça às bruxas”.

Vamos combinar uma coisa? Não existe esse negócio de “caça às bruxas” quando falamos de mulheres acusando homens de assédio ou exposição. Tenhamos bom senso. O feminismo não é tão forte e influente (leia-se: opressivo) quanto era a Igreja Católica na Idade Média, tampouco os homens estão sendo punidos por terem desvios comportamentais eles estão apenas cumprindo o que é esperado deles em uma sociedade patriarcal. Papel social de gênero que chama, né? Então.

Já era de se imaginar que vários homens ficariam super machucados com toda a agitação e tentariam arranjar argumentos dos mais absurdos para defender os amigos (essa não devia ser uma prática assim tão incomum entre eles então, em outras palavras, eles estavam defendendo a si mesmos).

Sempre foi tudo muito confortável para os caras: namorada no fundo do rolê segurando casaco, predominantemente homens na frente dos palcos moshando agressivamente, esporadicamente uma banda ou outra com uma mulher (a famosa cota) na formação e muitas letras sobre feminismo porque para ser libertário precisa ser feminista, né? Consciência limpa. Tudo certo.

Imagina só se eles entregariam tudo isso pacificamente!

Plot twist: um grupo de mulheres se juntou e assinou uma carta que dizia, entre outras coisas, que toda aquela repercussão era exagerada, que os caras já tinham se desculpado e já demonstravam ter entendido a mensagem, e que não fazia mais sentido algum continuar com aquilo a não ser que fosse algum tipo de autopromoção.

Entenderam agora o porquê do meu dejavú inicial?

Eu queria explicar algumas coisas aqui sobre pessoas que se propõem a levar denúncias para frente (seja a própria pessoa que sofreu o assédio/agressão/exposição ou pessoas próximas que apoiam): não é confortável e gostoso, como vocês imaginam.

A gente não acorda e pensa “Ó, mas que belo dia para ler meu nome em locais que não faço a menor ideia de quais sejam, ver pessoas das mais variadas fazendo suposições sobre a minha vida, receber ligações de emissoras televisivas pedindo para que eu dê entrevistas, me exponha e reviva aquilo tudo. Hoje eu quero muito usar um sofrimento meu, algo íntimo, para acabar com a vida de um pobre coitado rapaz e, com isso, me promover.” Aham. Senta lá, Cláudia.

É muito complicado o momento em que você resolve jogar a merda no ventilador. Geralmente você nem pensa muito sobre; acontece meio na adrenalina, sem a menor noção de todas as consequências que essa atitude pode acarretar no futuro. (Escrever esse texto mesmo está sendo uma tarefa difícil; meço todas as palavras com um baita medo de usarem qualquer vírgula contra mim).

Para não dizer que esse foi um caso isolado, algo muito parecido aconteceu no underground brasileiro ano passado. Divulgaram uma lista com várias bandas famosas na cena em que pelo menos um dos integrantes tinha algum relato de assédio ou agressão. Muita gente se pronunciou sobre o caso, homens e mulheres, e as opiniões se dividiram bastante. Rolou, inclusive, uma carta em resposta, que questionava não a postura dos caras e, sim, uma dita “militância irresponsável” das mulheres.

O que parece que é difícil de entender é que, quando as coisas começam a tomar proporções descomunais, não significa que você é muito boa no marketing e soube vender direitinho a história. É só que muitas outras pessoas se identificaram com o relato e tiveram experiências parecidas. Em 2015, a jornalista Jessica Hopper perguntou despretensiosamente em seu twitter quantas mulheres já haviam sido alvo de machismo no meio musical e ficou abismada com as centenas de relatos que conseguiu coletar!

Tem algo errado aí, né? Se isso acontece tanto e nada muda, precisamos refletir a respeito. Entender o que acontece, acabar com essa estrutura de dominação. Nessa linha deveria seguir o raciocínio; não deveríamos debater o quão injustas são as feministas e, sim, o quão violento é o patriarcado. Certo?

Foi essa a sensibilidade que faltou nas meninas que em 2014 escreveram uma carta para apoiar os caras. Foi a mesma que faltou para a moça que questionou a militância das mulheres no ano passado. E foi a que também esteve ausente no pensamento das atrizes francesas e das escritoras que se posicionaram tão veementemente contrárias não simplesmente às denúncias, mas também a todas as que bateram de frente com os caras. Por que é que a gente precisa virar o jogo de uma forma que, mesmo sem ser o foco principal, acabamos nos tornando as vilãs e os homens, as vítimas?

Kathleen Hanna escreveu em meados dos anos 90 em seu zine “Jigsaw Youth” um trecho que sintetiza muito o ponto ao qual eu quero chegar:

“Every fucking ‘feminist’ is not the same, ever fucking girl is not the same, okay??? Because I live in a world that hates women and I am one… who is struggling desperately not to hate myself and my best girlfriends, my whole life is constantly felt by me as a contradiction. In order for me to exist I must believe that two contradictory things can exist in the same space. This is not a choice I make, it just is.”

(“Toda porra de feminista não é a mesma, toda porra de menina não é a mesma, certo? Porque eu vivo em um mundo que odeia mulheres e eu sou uma… que está tentando desesperadamente não se odiar e não odiar as melhores amigas, minha vida é constantemente sentida por mim como uma contradição. Para que eu exista, eu tenho que acreditar que duas coisas contraditórias possam existir no mesmo espaço. Não é uma escolha que eu faço, é assim que é.”)

Nem todo mundo pensa do mesmo jeito e nem todas as pessoas reagem a estímulos da mesma forma. Ainda assim, compartilhamos as mesmas violências diariamente. E queremos acabar com ela cada uma a sua maneira. 

Passados quase 5 anos de toda a fatídica história  e com esses recentes acontecimentos que estão no agendamento da mídia que serviram como gatilho para que eu relembrasse tudo o que me aconteceu  devo dizer: eu acredito que precisemos de todos esses múltiplos pensamentos coexistindo. Eles se equilibram.

Não é possível acreditar que vamos conseguir alcançar os mesmos espaços que os homens simplesmente competindo de igual para igual não somos socialmente equiparadas, não temos as mesmas chances. 

Por isso precisamos de mulheres que estejam dispostas a sacudir o tapete e tirar debaixo dele todas as práticas escrotas que são consideradas banais e dizer “ISSO TÁ ERRADO E NÃO ACEITAMOS MAIS!”; que ergam as mangas e construam um espaço seguro para todas. Que nos dêem a chance que nos foi tomada.

É o que está acontecendo com as mulheres lá em Hollywood. Rola todo aquele papo de que “mas se nos forçarmos a colocar mulheres, estaremos escolhendo pelo gênero, não pela capacidade; isso daí é muito radical”. Mas vocês sabem que tem um monte de projeto e premiação que só tem homem participando, né? Esse é só um jeito de nivelar as coisas.

Da mesma forma, é inimaginável um mundo todo segregado. Então é compreensível e necessário que tenha quem pacientemente converse com os caras e mostre por que aquilo está errado, que tente construir algo legal em conjunto e desmistifique a ideia de que mulher não é capaz. 

Ninguém é obrigada a isso, mas também não deve ser proibido. Afinal de contas, habitamos o mesmo mundo que os homens e teremos que conviver com eles eventualmente, certo? Que eles tenham com quem aprender a agir diferente então.

O problema é que, quando a gente tenta deslegitimar a luta umas das outras, baseadas simplesmente em “eu não concordo” – sem sequer nos darmos ao trabalho de entender o outro lado – estamos dando tiro no próprio pé. É gastar tempo e saliva com detalhes muito menores do que a questão central; é desvio de foco. (A não ser que estejamos falando de comentários racistas, gordofóbicos, elitistas, homofóbicos etc. Aí não tem papo nem massagem).

Então, por favor: porque somos feministas, não precisamos pensar exatamente da mesma forma, não precisamos nos amar ou praticar a sororidade a todo custo. A gente só precisa se respeitar, ser mais empáticas umas com as outras. Ninguém está aqui para destilar ódio por puro prazer; muitas vezes a gente só retorna a agressão na mesma moeda em que recebemos porque é assim que a gente sabe lidar com isso. Quem violenta primeiro é o sistema, o que vem em seguida não é nada além da nossa reação. 

Termino deixando outro trecho do mesmo texto da Kathleen Hanna:

“Resistance is everywhere, it always has been and always will be. Just because someone is not resisting in the same way you are (being a vegan, an ‘out’ lesbian, a political organizer) does not mean they are not resisting. Being told you are a worthless piece of shit and not believing it is a form of resistance. One girl calling another girl to warn her about a guy who date raped her is another. And while she may look like a big haired makeup girl who goes out with jocks, she is a soldier along with every other girl, and even though she may not be fighting in the same loud way that some of us can (and do) it is the fact that she is resisting that connects us, puts a piece together.”

(“Resistência está em todo o lugar, sempre esteve e sempre estará. Só porque alguém não está resistindo da mesma maneira que você (sendo vegan, uma lésbica ‘assumida’, uma militante política), não significa que ela não está resistindo. Ser chamada de um pedaço de merda imprestável e não acreditar nisso é uma forma de resistência. Uma garota ligar para alertar outra garota sobre um cara que a estuprou, é outra. E mesmo que ela pareça uma garota fútil que só sai com babacas, ela é uma militante ao lado de todas as outras garotas, e mesmo que ela não lute da mesma forma barulhenta que algumas de podemos (e fazemos), é o fato de que ela resiste que nos conecta, que encaixa as peças.”)

*Foto de capa por Fernando DK Fotografia, na Marcha das Vadias de 2015, em São Paulo

Escrito por:

Feminista, bruxa e vegana. Estudante de jornalismo e de bateria. Apaixonada por gatos, filmes de terror, contracultura e roller derby. Cozinheira (e meio piadista) nas horas vagas.
Veja todos os textos
Follow Me :