[QUADRINHOS] Moby Dick: Obsessão, insanidade e perseguição no quadrinho de Chabouté

[QUADRINHOS] Moby Dick: Obsessão, insanidade e perseguição no quadrinho de Chabouté

A obra-prima do norte-americano Herman Melville ganhou uma belíssima versão em quadrinhos pelas mãos do quadrinista francês Chabouté: Moby Dick, livro que conta a história da busca por vingança de capitão Ahab contra a baleia cachalote que dá nome ao livro, arrancou sua perna e tornou-o insano, é apresentada em um ensaio gráfico repleto de melancolia e horror.

“Se o mais distraído dos homens estiver mergulhado em seus mais profundos devaneios, erga-o sobre suas pernas, ponha-o para andar, e ele infalivelmente o levará até a água.” (Capítulo 1, Miragens)

Sinopse

No começo da obra, acompanhamos um rapaz chamado Ishmael em busca de um quarto para pernoitar em uma estalagem. Com o desenrolar da trama, descobrimos que ele trabalhara na marinha e que agora procura emprego como baleeiro, profissão que, como o nome sugere, diz respeito a quem caça baleias para utilizar sua carne e óleos como matérias-primas diversas. Na estalagem, Ishmael conhece Queequeg, um homem polinésio de aparência exótica, denominado “selvagem” pela maioria das pessoas ao seu redor. Não demora muito para que uma grande amizade surja entre os dois e Ishmael veja que Queequeg é um homem de bom coração.

A aventura começa de fato quando os dois vão até o navio Pequog procurar emprego. No encouraçado há três capitães, sendo o mais temível o velho Ahab, cuja perna fora devorada pelo cachalote Moby Dick em um confronto marítimo. Ao serem aceitos na tripulação, partem para uma aventura em alto mar, com a promessa de uma vida próspera – mas logo percebem que coisas terríveis virão a acontecer.

Moby Dick

As personagens

A obra apresenta personagens interessantíssimas e muito bem construídas: Queequeg é o príncipe de uma tribo polinésia que, por vontade própria, decidiu trabalhar como baleeiro e tornou-se muito experiente e eficiente em seu ofício; Starbuck é a consciência da tripulação, sempre disposto a enfrentar até mesmo seu próprio capitão para que o bem comum seja propagado; já Ahab, o velho capitão atormentado por Moby Dick, é o arquétipo perfeito da insanidade e sede de vingança que movem homens até às últimas consequências para que suas vontades sejam satisfeitas (nem que para isso a vida de outras pessoas seja colocada também em risco). 

Ora assustador e manipulador, ora comovente e cativante, Ahab é o coração do Pequog. Com poucas palavras convence os marinheiros a abandonarem o objetivo de lucrar com a caça às baleias e passarem a almejar a morte de Moby Dick. A obsessão pela “fera do mar” faz com que a leitora sinta um desconforto muito grande pela insistência e total falta de noção do capitão ao ultrapassar os limites do próprio corpo – como passar as noites em claro e sem se alimentar – para que seu desejo maior seja concretizado. Ahab devota seus dias a encontrá-lo novamente e, para tanto, traça rotas e arma diversos planos, a fim de encurralá-lo no meio do oceano.

A ambientação

Enquanto no livro Melville não poupa palavras para descrever as partes técnicas do navio e a própria biologia das baleias, no quadrinho Chabouté possui o amparo de seus traços e torna cada quadro minimamente detalhado: a leitora sentirá que está dentro do Pequog muitas vezes. Até mesmo o balanço do mar fica evidente nos desenhos, com quadros fechados e assimétricos, bem como a solidão do mar aberto denotada em quadros amplos que mostram a infinitude do horizonte.

Assim que conhecemos Ishmael e Queequeg, temos um leve vislumbre cômico na interação dos dois, que brevemente se esvai quando embarcam no Pequog. Ao iniciarem a viagem, a trama fica a cada página mais densa, melancólica, sinistra e funesta, como diversas situações que prenunciam morte.

O lobo e a fera

Tanto o quadrinho quanto o romance podem ser interpretados de diversas formas; se a leitora está atrás de uma aventura envolvendo a imensidão impiedosa do mar, Moby Dick é uma excelente pedida, mas, ao irmos além, vemos que a obra é muito mais profunda do que isso. A trama é envolta em referências bíblicas explícitas, incluindo a parábola de Jonas e a Baleia, proferida em um sermão presenciado por Ishmael e Queequeg. Há também a aparição de um homem que diz ter feito parte da tripulação do Pequog, cujo nome é Elijah (ou Elias, um dos profetas bíblicos) e que alerta Ishmael e Queequeg a não embarcarem por se tratar de uma viagem perigosa e provavelmente sem volta. Fora isso, Ahab também funciona como a personificação do homem contrariando as vontades de algo muito mais poderoso para curar seu ego ferido (em certos momentos, Moby Dick é comparado a um Leviatã, um demônio); desta forma, compreende-se que Ahab não é muito diferente de tantas personagens bíblicas que, ao confrontarem uma força superior, foram castigadas: ao desobedecer a ordem prevista das ações humanas, que colocam homens e mulheres abaixo da esfera divina, recebe como castigo o desmembramento não apenas de sua perna, mas de sua essência masculina e soberana – uma clara alusão à corrupção da alma pela angústia de tentar ser aquilo que lhe serve apenas como imagem e semelhança, não sua pura natureza: Deus. A própria forma majestosa como Moby Dick aparece, mostrando-se aos poucos e baqueando o que vem pela frente em plena fúria oferece à personagem uma personalidade mística, assustadora e onipotente (além de que sua onipresença é uma constante na vida de todos à bordo do Pequog).

Outra discussão importante é o comportamento obsessivo de Ahab ao querer a qualquer custo matar Moby Dick pela tragédia ocorrida com sua perna no passado. Starbuck tenta alertá-lo de que é da natureza do animal se rebelar contra aquilo que lhe é uma ameaça, mas o capitão não o escuta e dá sequência aos seus planos desastrosos. Isto leva a leitora a refletir quanto a relação degradante entre homem versus natureza, e o tratamento impiedoso dado à cachalote branca, que vive seus dias com arpões fincados ao longo de seu corpo a cada ataque – as imagens chocam quem compreende e defende os direitos dos animais. 

Se não fosse pelo fato de tanto o capitão quanto os seus marinheiros referirem-se à baleia por artigos, substantivos e pronomes masculinos (“o cachalote”, “ele”, “o demônio”), poderíamos ler esta série de insistências perigosas que levam Ahab à loucura como uma relação tóxica entre um homem (o próprio Ahab) e uma fêmea (zoomorfizada na pele de Moby Dick). Mas, mesmo assim, a centralização patriarcal fica evidente quando a tripulação adoece perante os caprichos de seu capitão, chegando a correr risco de morte por medo de desobedecê-lo (uma evidência claríssima de como a masculinidade pode ser tóxica até mesmo para com outros homens).

Além de uma trama sobre vingança, Moby Dick conversa sobre a inconstância do ser e da vontade de liberdade inerente ao ser humano. Tanto Ishmael quanto Ahab veem no mar a promessa para a realização de suas vontades; ao primeiro, o desejo de conhecer o mundo e diferentes culturas; ao segundo, o desejo final de restituir sua glória e limpar sua honra ferida de capitão (podemos ler Ishmael e Ahab como uma única pessoa – o jovem no início da vida, em busca de aventura, e o espírito calejado após tantas provações, culminando no velho Ahab).

O único ponto negativo na obra é a ausência total de mulheres. Ahab apenas menciona a existência de uma esposa em terra firme, mas este é o único vislumbre feminino que teremos ao longo do quadrinho.

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O trabalho gráfico

Esta é a primeira obra de Chabouté trazida para terras brasileiras. A editora Pipoca & Nanquim fez um excelente trabalho ao unir os dois volumes de Moby Dick em apenas um, com capa dura e lombada arredondada. O papel é agradável ao toque e ressalta o preto e o branco predominante no quadrinho (o trabalho de Chabouté é tão incrível que a leitora não sentirá falta do azul do mar). Muitos diálogos da obra original, incluindo os nomes e epígrafes dos capítulos foram mantidos e dão o tom perfeito da importância que este livro tem na história da literatura mundial. Os traços pesados, minimalistas e certeiros fazem de Moby Dick uma leitura obrigatória para os fãs de literatura clássica ou entusiastas de histórias sobre os perigos do mar e a insanidade humana.

Os autores

Herman Melville nasceu em Nova York em 1819 e foi autor de outros livros famosos como Bartleby, o Escrivão. A inspiração para escrever Moby Dick e outros romances que se passam no mar vem de sua própria experiência como marinheiro. 

Chistophe Chabouté é francês e nasceu em Alsácia, em 1967. Seu primeiro trabalho, inspirado na obra de Arthur Rimbaud, chamou-se Les Récits. Desde então vem colecionando elogios e, em 2014, deu início ao projeto de Moby Dick


Moby Dick

Autore: Chabouté (adaptado da obra de Herman Melville)

Editora Pipoca & Nanquim

254 páginas

Ano: 2017

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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