[LIVROS] A Garota Corvo: A perturbadora ficção sobre a realidade (resenha)

[LIVROS] A Garota Corvo: A perturbadora ficção sobre a realidade (resenha)

É difícil encontrar palavras para falar sobre esse livro que explora e expõe o pior do ser humano. Talvez fosse mais fácil pensar nele como uma simples obra de ficção, mas isso seria ignorar que a arte também imita a vida e o mundo aqui fora é tão ou mais cruel que essas páginas impressas em papel pólen soft. 

A Garota Corvo é o tipo de livro que possui todos os gatilhos possíveis e imagináveis: estupro, pedofilia, assassinato, violência, etc. Seria difícil escrever algo que convencesse alguém a seguir por suas 584 páginas sombrias e nauseantes que nos arrastam até sangrarmos com a aspereza de suas palavras. No entanto, ainda assim, o thriller escrito por Erik Axl Sund é inevitavelmente envolvente, ainda que, na nossa opinião, poderia ser mais curto.

O livro é escrito em terceira pessoa e mistura a narrativa de eventos do presente com lapsos do passado das personagens, criando um quebra-cabeças de mil peças miúdas que, somente após muito tempo, começa a criar forma e fazer um certo sentido.

“Não havia nada antes nem depois.

O que existia dentro dela e deixara de existir?

O que ela pôde ver um dia e não conseguia mais? Procurou novas possibilidades de desenvolver sua personalidade. Não uma alternativa ou complemento, mas uma criatura totalmente nova. Aceitação incondicional.

Ela cortou a fina membrana que a separava da loucura. “Nada começou começou comigo. Nada começou dentro de mim. Sou uma fruta velha, apodrecendo devagar”, ela pensou. (página 205)

Cabe destacar que originalmente ele foi publicado como uma trilogia sobre Victoria Bergman (uma das personagens principais da trama): Crow Girl (2010), Hunger Fire (2011) and Pythia’s Instructions (2012). Já no Brasil, a obra ganhou o nome de A Garota Corvo e foi lançada pela Cia das Letras em um único volume de 584 páginas.

A trama se inicia quando o cadáver de uma criança é encontrado em estado deplorável. Logo em seguida, uma investigação sobre o caso é liderada pela detetive Jeanette Kihlberg, uma personagem interessantíssima que enfrenta diariamente a burocracia e o machismo em seu departamento, bem como uma crise conjugal no momento mais crítico de sua carreira. É acompanhando a sua trajetória que podemos nos envolver em várias reflexões sobre gênero e sexualidade, o que podemos citar como um ponto positivo na leitura de um livro tão forte como este.

No entanto, somente com o aparecimento de mais cadáveres de crianças é que a trama vai ganhando mais densidade, principalmente quando Kihlberg conhece a psicóloga Sofia Zetterlund, uma especialista em crianças que sofreram traumas severos envolvendo os mais diversos tipos de violências. Quanto mais as duas se aprofundam na investigação sobre os assassinatos, mais vamos sendo envolvidas por uma camada espessa de tensão que nos dificulta a respiração e nos embrulha o estômago.

“Sua vista escureceu, e ela sentiu vontade de vomitar.

Era como se um corvo crocitasse em seu ouvido.

Ela olhou para cima aterrorizada e viu seu rosto sorridente.” (página 196)

A forma como as violências sexuais e físicas são descritas é meticulosa e sem censura, introjetando em nosso imaginário cenas que nos fazem repudiar a humanidade. A crueldade descrita é tão real que podemos sentir o cheiro de fluídos corporais e sangue. A Garota Corvo definitivamente não é um livro fácil de ser lido.

SOBRE O AUTOR:

A Garota Corvo

Erik Axl Sund é o pseudônimo da dupla Jerker Eriksson e Håkan Axlander Sundquist. Eles já trabalharam com música, arte e cinema. Além de A Garota-Corvo, publicaram juntos Glass Bodies (2014).

Adendos

Um dos temas mais abordados no livro é a violência sexual contra crianças e adolescentes, resultando ou não no assassinato das vítimas. Mas cabe destacar que, ao contrário do que o imaginário popular acredita, a pedofilia em si não é crime e sim uma doença. O transtorno de pedofilia¹ é um tipo de parafilia² que deve ser tratado e que, por conta do tabu social em volta do mesmo, dificilmente é admitido por quem sofre o transtorno, impedindo que a pessoa procure profissionais capazes de lidar com sua condição mental.

Cabe destacar que nem todas as pessoas que violentam sexualmente crianças e adolescentes são, necessariamente, pedófilos. Bem como nem todo o pedófilo, necessariamente consumaria um crime de violência sexual, em que pese, via de regra, acabe consumindo produtos (imagens, filmes etc.) que são oriundas de violências contra crianças e adolescentes. Para entenderem um pouco mais sobre o assunto, recomendamos que ouçam o podcast do Mamilos sobre Pedofilia:

https://soundcloud.com/mamilospod/pedofilia

Por fim, outra doença abordada na obra é o transtorno dissociativo de identidade³. Para entenderem melhor esta condição mental, recomendamos o filme Fragmentado:

Cabe fazer apenas algumas ressalvas ao filme que, apesar de retratar muito bem o transtorno, por ser uma obra de ficção, exagera em algumas questões. Inclusive, cabe destacar que nem toda pessoa com transtorno dissociativo de identidade é, necessariamente, uma assassina em potencial.

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¹ O transtorno de pedofilia é caracterizado por fantasias, vontades ou comportamentos sexualmente excitantes, recorrentes e intensos envolvendo crianças (habitualmente de 13 anos ou menos).

² Parafilias são fantasias ou comportamentos frequentes, intensos e sexualmente estimulantes que envolvem objetos inanimados, crianças ou adultos sem consentimento, ou o sofrimento ou humilhação de si próprio ou do parceiro. Transtornos parafílicos são parafilias que causam angústia ou problemas com o desempenho de funções da pessoa com parafilia ou que prejudicam ou podem prejudicar outra pessoa.

³ No transtorno dissociativo de identidade, anteriormente denominado transtorno de personalidade múltipla, duas ou mais identidades se alternam no controle da mesma pessoa. Além disso, a pessoa não consegue se lembrar de informações de que normalmente se recordaria imediatamente, como eventos rotineiros, informações pessoais importantes e/ou eventos traumáticos ou estressantes.


A Garota CorvoA Garota Corvo

Autor: Erik Axl Sund

Companhia das Letras

136 páginas

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Escrito por:

51 Textos

Feminista e membra da União de Mulheres de São Paulo, onde é coordenadora adjunta do Curso de Promotoras Legais Populares, projeto voltado para a educação popular e feminista em direitos. É viciada em Lego, apaixonada por ficção científica/terror/horror, apocalipse zumbi e possui sérios problemas em procrastinar vendo gif’s e não lembrar o nome das pessoas. No mundo real é advogada.
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