[ARTIGO] E quanto ao “O Clube dos Cinco”? Revisitando os filmes da minha juventude na era do #MeToo

[ARTIGO] E quanto ao “O Clube dos Cinco”? Revisitando os filmes da minha juventude na era do #MeToo

Artigo escrito por Molly Ringwald, publicado originalmente no site The New Yorker, no dia 6 de abril de 2018. Tradução por Maria Amélia Fleury Nogueira

No início deste ano, a Criterion Collection, que é “dedicada a reunir os maiores filmes feitos no mundo”, lançou uma versão restaurada de “O Clube dos Cinco”, um filme escrito e dirigido por John Hughes no qual eu atuei mais de três décadas atrás. Para esta edição do Criterion Collection, participei de uma entrevista sobre o filme, assim como participaram também outras pessoas próximas da produção. Não é um hábito meu revisitar filmes que eu fiz, mas esta não foi a primeira vez que retornei a este filme: alguns anos atrás, assisti ao filme com minha filha que, na época, tinha dez anos. Gravamos uma conversa sobre isso para o programa de rádio This American Life. Serei a primeira a admitir que dez anos é uma idade muito jovem para se assistir “O Clube dos Cinco”, um filme sobre cinco alunos do ensino médio que fazem amizade durante uma sessão de detenção escolar em um sábado, um filme repleto de palavrões, conversas sobre sexo e uma cena em que os alunos fumam maconha, que agora ficou famosa. Mas minha filha insistiu que os amigos dela já haviam assistido ao filme e ela disse que não queria assistir pela primeira vez na frente de outras pessoas. Um amigo que é escritor e diretor me garantiu que crianças tendem a filtrar aquilo que não entendem, e eu concluí que seria melhor que eu estivesse assistindo com ela para responder às perguntas mais desconfortáveis. Então, eu cedi, pensando talvez que a situação produziria um momento doce e não convencional entre mãe e filha.

É uma experiência estranha, assistir a uma versão sua mais jovem e inocente na tela. É ainda mais estranho – surreal até – assistir a isso com sua filha, quando ela tem idade muito mais próxima à da sua versão do que você mesma. Minha amiga tinha razão: minha filha não pareceu perceber a maioria do conteúdo sexual, apesar de ter ficado espantada quando pensou que eu tinha mostrado minha calcinha no filme. A certa altura no filme, o personagem bad-boy¬, John Bender, entra embaixo da mesa onde minha personagem, Claire, está sentada, para se esconder de um professor. Enquanto está escondido, ele aproveita para espiar debaixo da saia de Claire e fica implícito que ele a toca de forma inapropriada, apesar de que o público não vê. Rapidamente indiquei para minha filha que a pessoa que estava de calcinha não era realmente eu, apesar de que essa explicação pareceu não ter importância. Continuamos assistindo e apesar das minhas melhores intenções em dar contexto para as partes mais desconfortáveis, eu não detalhei o que pode ter acontecido debaixo da mesa. Ela não expressou curiosidade em nada sexual, então eu decidi seguir essa mesma linha e discutir as coisas que pareciam apelar mais a ela. Talvez eu tenha só amarelado.

Mas continuei pensando sobre aquela cena. Pensei novamente sobre ela no outono passado, depois que um grande número de mulheres se pronunciou sobre acusações de agressão sexual contra o produtor Harvey Weinstein, fazendo com que o movimento #MeToo ganhasse força. Se os comportamentos que levam à subjugação das mulheres são sistêmicos, e eu acredito que são, é racional concluir que a arte que consumimos e apoiamos tem algum papel em reforçar esses mesmos comportamentos. Fiz três filmes com John Hughes e quando eles foram lançados causaram impacto cultural suficiente para que eu fosse capa da revista Time e para que John Hughes fosse considerado um gênio. Sua reputação crítica só cresceu desde sua morte, em 2009, aos 59 anos. Os filmes de Hughes são mostrados na televisão constantemente e são até usados em escolas. Ainda há tanto que eu amo nesses filmes, mas nos últimos tempos tenho sentido a necessidade de examinar o papel que eles exercem em nossa vida cultural: de onde eles vieram e o que significam agora. Quando minha filha quis assistir “O Clube dos Cinco” junto comigo, eu hesitei porque não sabia como ela reagiria: se ela iria entender o filme ou se iria gostar. Fiquei preocupada se ela iria achar alguns aspectos perturbadores, mas não pensei que seria mais perturbador para mim no final das contas.

Pode ser difícil de lembrar como, antes da chegada de John Hughes, a arte para e sobre adolescentes era escassa. Romances do estilo Jovem-Adulto ainda não haviam explodido. Nas telas, os maiores problemas que afetavam os adolescentes pareciam ser apenas mostrados no mundo dos filmes para televisão Afterschool Specials, da emissora ABC, lançados pela primeira vez em 1972 e que ainda existiam quando eu me tornei adulta, nos anos 80. Todos os adolescentes que eu conhecia preferiam morrer a ter que assistir a esses filmes. Eles tinham uma pitada de moralismo, os diálogos tinham sido obviamente escritos por adultos e a música era brega.

As representações de adolescentes no cinema eram ainda piores. Os atores escalados para os papéis de adolescentes tendiam a ser muito mais velhos que seus personagens – era obrigatório que fossem mais velhos, já que os filmes eram frequentemente explorativos. Nos filmes adolescentes de terror que floresceram nos anos 70 e 80 os adolescentes eram assassinados: se você fosse jovem, atraente e sexualmente ativo, suas chances de sobreviver até o final do filme eram praticamente nulas (uma alegoria parodiada, anos mais tarde, pela franquia do filme “Pânico”). As comédias adolescentes de sucesso desta época, como “Clube dos Cafajestes” e “Porky´s – A Casa do Amor e do Riso” foram escritos por homens e para garotos; as poucas mulheres retratadas eram ninfomaníacas ou duronas. (A treinadora robusta em “Porky´s” é chamada Balbricker, algo como testículos de tijolo em português.) Os garotos são tarados, tão unidimensionais quanto seus equivalentes femininos, mas aparecem mais tempo na tela. Em 1982, “Picardias Estudantis”, que teve a rara distinção de ter sido dirigido por uma mulher, Amy Heckerling, chegou mais perto de uma imagem autêntica da adolescência. Mas ainda teve espaço para a fantasia de um jovem garoto sobre a atriz Phoebe Cates caminhando topless por uma garoa produzida por irrigadores, que aludia a um filme pornô.

E então Hughes apareceu. Hughes, que cresceu em Michigan e Illinois, conseguiu um emprego depois de largar a faculdade criando anúncios em Chicago. Esse emprego o levava frequentemente a Nova Iorque, onde ele começou a passar tempo no escritório da revista humorística National Lampoon. Ele escreveu uma história chamada “Férias de 58” (inspirada em suas viagens em família) o que lhe garantiu um emprego na revista e se tornou a base para o filme “Férias Frustradas”. Outra história chamou a atenção da produtora Lauren Shuler Donner, que o encorajou a escrever o que veio a se tornar “Dona de Casa por Acaso”. Esses filmes o ajudaram a conseguir contrato com Universal Studios. “O Clube dos Cinco” seria sua estreia como diretor. Ele planejou filmar em Chicago com atores locais. Mais tarde ele me contou que, durante o feriado de 4 de julho, enquanto olhava fotos de atores para o filme, encontrou a minha foto e decidiu escrever outro filme sobre a personagem que ele imaginou que aquela garota era. Aquele roteiro tornou-se “Gatinhas e Gatões”, uma história sobre uma garota que faz dezesseis anos, mas sua família se esquece do aniversário. O estúdio adorou o roteiro talvez porque, pelo menos em sua forma, tinha mais a ver com as fórmulas comprovadas de sucesso – “Porky´s” e outros – do que com “O Clube dos Cinco”, que basicamente parecia uma peça de teatro.

Uma reunião foi marcada, nós nos demos bem e eu filmei “Gatinhas e Gatões” na parte nobre de Chicago no verão em que terminei a nona série. Depois que terminamos de filmar “Gatinhas e Gatões” e antes de começarmos a filmar “O Clube dos Cinco”, John escreveu outro filme especificamente para mim, “A Garota de Rosa Shocking”, sobre uma garota classe média-baixa passando pelos preconceitos sociais em sua escola de ricos. O arco dramático do filme envolve ser convidada para o baile de formatura e depois ter o convite desfeito. Pelas sinopses, os filmes podem parecer fracos – uma garota que perde o acompanhante para o baile, uma família que esquece o aniversário da filha – mas isso é parte do que os fazia únicos. Ninguém em Hollywood estava escrevendo sobre as minúcias do Colegial e certamente não escreviam de um ponto de vista feminino. De acordo com um estudo, desde o final dos anos 40, há mais personagens masculinos do que femininos em filmes de maior bilheteria em uma proporção de três para uma – e essa proporção não melhorou. O fato de que dois dos filmes de Hughes tinham protagonistas femininas e examinavam os sentimentos dessas jovens sobre coisas comuns que aconteciam com elas, enquanto ainda conseguiram crédito instantâneo traduzido em sucesso nas bilheterias, era uma anomalia que nunca foi verdadeiramente replicada. (Os poucos blockbusters com protagonistas femininas nos anos recentes eram em sua maioria distopias ou estrelavam vampiros e lobisomens.)

Eu tive o que poderia ser chamada de uma relação simbiótica com John durante esses dois primeiros filmes. Fui chamada de musa dele, o que acredito que eu fui, por um tempo. Mas, mais que isso, eu sentia que ele me ouvia – embora certamente não me ouvisse o tempo todo. Saindo da escola de comédia do National Lampoon, ainda havia resíduos de piadas chulas, não importa o quanto eu protestasse. No roteiro de “O Clube dos Cinco” havia uma cena na qual uma professora de Educação Física atraente nadava nua na piscina da escola enquanto Sr. Vernon, o professor responsável pela detenção dos alunos, a espiava. A cena não estava no primeiro rascunho do roteiro que eu li e eu influenciei Jonh a cortá-la do filme. Ele cortou, e apesar de eu ter certeza que a atriz que havia sido escalada para o papel ainda me culpa por estragar sua chance, acho que o filme é melhor por não ter a cena. Em “Gatinhas e Gatões”, um personagem que é alternadamente chamado de Nerd e Ted Fazendeiro faz uma aposta com amigos de que ele vai conseguir transar com minha personagem, Samantha; e para provar, diz ele, vai conseguir a calcinha dela. Mais tarde no filme, depois que Samantha concorda em ajudar o Nerd, emprestando sua calcinha para ele, ela tem uma cena carinhosa com seu pai. Originalmente, a cena terminava com o pai perguntando “Sam, que diabos aconteceu com sua roupa de baixo?” Minha mãe não concordou. “Por que um pai saberia o que aconteceu com a calcinha de sua filha?” minha mãe perguntou. John ficou desconfortável. Ele disse que não foi isso que ele quis dizer – era só uma piada. “Mas não é engraçado”, disse minha mãe. “É asqueroso”. A frase foi mudada para “Lembre-se, Sam, nessa família é você quem veste as calças.”

Minha mãe também se pronunciou durante as filmagens daquela cena em “O Clube dos Cinco”, para a qual eles contrataram uma mulher adulta para fazer as cenas que mostravam a calcinha de Claire. Eles não podiam nem me pedir para fazer aquela cena – acho que era proibido por lei pedir isso a uma pessoa menor de idade – mas mesmo sendo outra pessoa fingindo ser eu era embaraçoso para mim e deixou minha mãe brava, e ela se pronunciou. Aquela cena ficou, no entanto. E tem mais, na minha visão de hoje, Bender assedia Claire sexualmente durante o filme todo. Quando ele não a está sexualizando, está descontando nela sua raiva com um descaso maldoso, chamando-a de “patética”, zombando dela e chamando-a de “Rainhazinha”. A rejeição inspira a maldade dele. Claire o trata com desprezo e, em uma cena importante perto do final do filme, ela prevê que segunda-feira na escola, apesar de o grupo ter feito amizade, as coisas iriam voltar, socialmente, ao status quo. “Enterre a cabeça na areia e fique esperando pelo maldito baile de formatura!” grita Bender. Ele nunca pede desculpas pelas ofensas e mesmo assim fica com a garota no final.

Se eu pareço muito crítica, é só em retrospecto. Naquela época, eu estava apenas vagamente ciente do quão inapropriadas eram a maioria das coisas que John escrevia, dada minha experiência limitada e considerando o que era aceito como normal à época. Eu já tinha mais de trinta anos quando parei de considerar homens que eram verbalmente abusivos mais interessantes que os gentis. Tenho um pouco de vergonha de dizer que levei ainda mais tempo para entender completamente a cena no final de “Gatinhas e Gatões” quando o galã, Jake, essencialmente entrega sua namorada bêbada, Caroline, para o Nerd para que este satisfaça suas taras sexuais em troca da calcinha de Samantha. O Nerd tira fotos com Caroline para provar sua conquista; quando ela acorda de manhã ao lado de alguém que ela não conhece, ele pergunta se ela “gostou”. (Nenhum dos dois parece lembrar-se de muita coisa.) Caroline balança a cabeça espantada e diz, “Sabe, tenho a estranha sensação de que gostei.” Ela tinha que ter uma sensação a respeito, porque pensamentos são coisas que temos quando estamos conscientes, e ela não estava consciente.

Pensando naquela cena, fiquei curiosa para saber a opinião da atriz que atuou como Caroline, Haviland Morris, sobre a personagem. Então eu escrevi um e-mail para ela. Não nos vimos ou conversamos desde que ela tinha 23 anos e eu quinze. Nos encontramos para tomar café e, depois de atualizarmos uma à outra sobre o que aconteceu nos últimos anos, eu perguntei a ela sobre a cena. Fiquei surpresa em saber que Haviland não tem os mesmos problemas que eu com a cena. Na cabeça dela, Caroline tem alguma responsabilidade pelo que aconteceu porque ela fica muito bêbada na festa. “Não estou dizendo que é certo ser estuprada ou fazer sexo não consensual,” Haviland esclareceu. “Mas… não é uma via de mão única. Ela é uma menina que ficou tão chapada que nem sabe o que está acontecendo.”

Uma vez quando eu tinha vinte e poucos anos bebi muito em uma festa e acabei indo para um quarto e sentando na cama com um produtor que eu não conhecia, me sentindo tonta e enjoada. Uma boa amiga que me seguiu até o quarto, apareceu na porta alguns minutos depois e anunciou, “Hora de ir embora, Molly!” Eu a segui, tentando não tropeçar e passei o resto da noite passando muito mal e com vergonha – e passei o resto da minha vida grata por ela ter ido até lá, por ter cuidado de mim quando eu fui temporariamente incapaz de cuidar de mim mesma. Contei essa história para Haviland e ela ouviu educadamente, concordando com a cabeça.

Como eu, Haviland tem filhos, e então eu decidi fazer a pergunta hipotética, de mãe para mãe, para ver se isso mudaria o ponto de vista dela. Se um dos seus filhos tivesse bebido muito, e algo assim acontecesse com um deles, ela diria que “É culpa sua, porque você bebeu muito”? Ela sacudiu a cabeça: “Não. Absolutamente, claramente, as calças ficam fechadas até que alguém em condições queira consensualmente te pedir para abri-las.” Mesmo assim, ela acrescentou, “Não acho que seja oito ou oitenta. Não é uma rua de mão única.”

Depois do nosso encontro, respondi a um e-mail de Haviland agradecendo-a por conversar comigo. Mais tarde naquela noite, recebi outra mensagem. “Sabe”, ela escreveu, “quanto mais eu penso na situação hoje, estranhamente, MENOS desconfortável eu fico com Caroline. Jake estava com nojo dela e disse que poderia violá-la de 17 maneiras diferentes se ele quisesse porque ela estava tão chapada, mas não o fez. E depois disso, foi Ted que teve que perguntar se eles tinham feito sexo, o que certamente não demonstra um comportamento responsável de nenhum dos dois lados, mas também não deixa claro que foi estupro. Por outro lado, ela foi basicamente trocada por uma calcinha… Ah, John Hughes.”

É difícil entender como John conseguia escrever com tanta sensibilidade e também ter um ponto cego tão gritante. À procura de alguma explicação, decidi ler alguns de seus textos mais antigos do National Lampoon. Comprei uma edição antiga da revista no eBay e achei as outras histórias, do final dos anos 70 e início dos anos 80, online. As histórias contem muitos dos mesmos temas que ele explorou em seus filmes, mas sem nada da humanidade. Sim, eram tempos diferentes, como as pessoas dizem. Mesmo assim, fique impressionada pela extensão da feiura.

A Dog´s Tale (“O conto de um Cão”) mostra um garoto assistindo sua mãe virar um cachorro. Against His Will (“Contra a Vontade dele”) mostra uma mulher “gorda e feia” que tenta estuprar um homem ameaçando-o com uma arma na frente da esposa e dos pais dele porque ela não consegue fazer sexo de nenhuma outra forma. My Penis (“Meu Pênis”) e My Vagina (“Minha Vagina”) são histórias em estilo quase realista-mágico escritas dos pontos de vista de adolescentes que acordam de manhã com genitais diferentes daqueles com os quais nasceram; a protagonista de My Penis literalmente força seu namorado a abrir a boca para que ela possa penetrá-lo, e o garoto em My Vagina é vítima de estupro coletivo por seus amigos quando eles descobrem que ele tem uma vagina. (A história termina com ele tendo que gastar o dinheiro que tinha guardado para comprar skis novos para fazer um aborto.) O Hughes Engagement Guide (“Guia de Compromisso de Hughes”) é um manual ilustrado sobre como se proteger de mulheres. Ele dá exemplos de mulheres que “mentem para não transar”, e ensina os leitores a fazerem um “exame pélvico rápido”, a detectarem “sinais de gordura futura” e a determinarem se uma mulher tem ancestrais de raças diferentes baseado na aparência dos parentes dela – há uma ilustração de uma pessoa asiática e de uma pessoa afro-americana – e assim por diante.

A edição de outubro de 1980 continha uma matéria co-escrita por Ted Mann entitulada “Sexual Harassment and How to Do it!” (“Assédio Sexual e como Fazê-lo!”) O guia explica que “se você contratar uma mulher de uma outra área ou que possua antecedentes que não condizem com as atividades que ela vai executar, você já está com o pinto praticamente dentro, ou, se preferir, já é meio caminho andado.” O texto continua, “A humildade dela não somente vai prepará-la para seus avanços sexuais como também vai ajudá-la a se preparar para sua inevitável demissão.” Há partes descrevendo tipos diferentes de secretárias baseando-se na idade delas, e qual a melhor forma de recompensá-las e puni-las. (As mais velhas são “mais fáceis”, as mais jovens são “preferíveis”) Há até mesmo uma parte sobre ser preso: “Às vezes até os caras que tem costeletas legais e são bons de papo são presos por assédio sexual e recebem intimações.” O texto continua e sugere diferentes métodos para fazer amizade com o policial.

É tudo uma sátira, é claro, mas fica bem claro que não são os chauvinistas que estão sendo satirizados, mas sim o “movimento de liberação feminina”. Nos meados dos anos 70 as mulheres haviam começado a se pronunciar contra assédio no local de trabalho. (O adorado filme “Como Eliminar seu Chefe”, no qual três mulheres se vingam de um chefe machista foi lançado em dezembro de 1980, dois meses depois que a matéria de Hughes e Mann foi publicada.) Atualmente, Mann é um escritor e produtor que foi indicado a sete prêmios Emmy, mais recentemente por seu trabalho na série “Homeland”, do canal Showtime. Mandei um e-mail para ele perguntando qual era a opinião atual dele sobre a matéria que ele escreveu com John Hughes. Ele respondeu que não se lembrava nem de ter escrito a matéria. “Parece com um dos textos desesperados que nosso diretor de arte Peter usava para tapar buracos na edição”, ele explicou, referindo-se a Peter Kleinman. “Não seria publicado hoje e nunca deveria ter sido publicado naquela época,” continuou ele, acrescentando que “aquela foi uma época degenerada movida à cocaína.”

Não posso confirmar, pessoalmente, que John tenha usado ou não cocaína. Quando o conheci, ele nunca expressou interesse em usar nenhum tipo de droga, incluindo álcool – exceto por cigarros, que ele fumava constantemente.

John acreditou em mim e em meus dons como atriz mais do que qualquer pessoa que já conheci, e ele foi a primeira pessoa a me dizer que eu tinha que escrever e dirigir um dia. Ele também era um guardador de mágoa fenomenal e podia responder a rejeições que ele achava que estava recebendo quase da mesma forma que o personagem de Bender fazia em “O Clube dos Cinco”. Mas nesse momento não estou pensando no homem e sim nos filmes que ele deixou para trás. Filmes que me orgulham em muitos sentidos. Filmes que, assim como os textos antigos de John, ainda que em menor grau, poderiam ser considerados racistas, misóginos e, ás vezes, homofóbicos. As palavras “bicha” e “bichinha” são usadas despreocupadamente; o personagem de Long Duk Dong, em “Gatinhas e Gatões”, é um estereótipo grotesco, como outros escritores detalharam de forma muito mais eloquente do que eu poderia detalhar.

Mesmo assim, tanto amigos quanto estranhos, incluindo pessoas da comunidade LGBT, me disseram muitas vezes que os filmes os “salvaram”. Quando eu estava saindo de uma festa há pouco tempo, Emil Wilbekin, que é gay e afro-americano e amigo de um amigo, me parou para me dizer exatamente isso. Eu sorri e agradeci, mas o que eu realmente queria dizer era “Por quê?” Quase não há negros nos filmes, e nenhum personagem é abertamente gay. Pouco mais de uma semana depois da festa, pedi ao meu amigo que me colocasse em contato com Emil. Em um e-mail, Wilvekin, um jornalista que criou uma organização chamada Native Son, devotada a empoderar homens negros e gays, explicou melhor o que ele quis dizer para mim naquela noite. “O Clube dos Cinco”, ele explicou, salvou a vida dele pois mostrou a ele, um garoto crescendo em Cincinnati nos anos 80, “que havia outras pessoas como eu que estavam sofrendo com suas identidades, sentindo-se deslocados na estrutura social do Colegial, tendo que lidar com as pressões e ideais da família.” Esses jovens também estavam “se encontrando e sendo ‘diferentes’ em um ambiente totalmente tradicional, branco e heteronormativo.” A falta de diversidade não o incomodava, ele acrescentou, “porque os personagens e suas histórias era tão belamente humanos, perfeitamente imperfeitos e falhos.” Ele assistiu aos filmes no Colegial, e apesar de ainda não ter se assumido gay naquela época, ele tinha quase certeza de que era gay.

A Garota de Rosa Shocking” tem um personagem, Duckie, que foi levemente baseado em meu melhor amigo há quarenta anos, Matthew Freeman. Somos amigos desde que eu tinha dez anos, e ele trabalhou como assistente de produção no filme. Assim como Emil, ele se assumiu gay agora, mas não havia se assumido naquela época. (Essa é uma das razões pelas quais eu frequentemente afirmo, para a consternação de alguns fãs e para o delírio de outros, que Duckie é gay, apesar de que não há nada que indique isso no roteiro.) “Os personagens que John criou representavam o sentimento de invisibilidade e deslocamento”, Matt me disse recentemente. Eles representavam “como nos sentíamos sendo jovens gays não assumidos que apenas podiam viver através do despertar sexual de outras pessoas, a não ser que quiséssemos ser descobertos tendo a ameaça real de sermos isolados ou espancados.

Os filmes de John demonstram a raiva e medo do isolamento que os adolescentes sentem, e perceber que outras pessoas podem sentir da mesma forma é um bálsamo para o trauma que os adolescentes sofrem. É difícil dizer se esse fato é suficiente para compensar os componentes impróprios dos filmes – até quando os critico sinto como se estivesse privando uma geração inteira de suas memórias mais queridas, ou sendo ingrata já que eles ajudaram a estabelecer minha carreira. No entanto, aceitá-los inteiramente parece hipócrita. No entanto, no entanto…

Como devemos nos sentir a respeito de uma arte que tanto amamos quanto nos opomos? E se estivermos na posição incomum de ter ajudado a criá-la? Apagar a história é uma estrada perigosa quando se trata de arte – a mudança é essencial, mas, também, lembrar o passado com todas as suas transgressões e barbarismos, para que possamos medir o quanto avançamos e o quanto ainda precisamos avançar.

Enquanto eu pesquisava para escrever este artigo, achei um artigo publicado na revista Seventeen em 1986, no qual eu entrevistei John. (Foi a única vez que fiz isso.) Ele falava sobre os artistas que o inspiraram quando ele era mais jovem – Bob Dylan, John Lennon – e como, assim que eles se sentiram confortáveis em sua arte, partiram para outra. Eu comentei que ele já havia feito muitos filmes sobre os subúrbios e perguntei se ele sentia que devia partir para outra como seus ídolos. “Acho que é uma jogada inteligente quando as pessoas se ocupam com as coisas sobre as quais tem conhecimento,” disse ele. E completou, “Eu me sentiria extremamente desconfortável escrevendo sobre algo que não conheço.”

Não tenho certeza se John alguma vez ficou confortável ou satisfeito de verdade. Ele me dizia frequentemente que não se achava um bom escritor de prosa e, apesar de amar escrever, ele odiava revisar. Estava tudo combinado para eu fazer mais um filme de Hughes, quando eu tinha vinte anos, mas senti que o roteiro precisava ser reescrito. Hughes se recusou e o filme nunca foi feito, apesar de que pode ter havido outros motivos os quais eu desconheço.

Na entrevista, perguntei a ele se ele achava que os adolescentes eram vistos de forma diferente do que quando ele era adolescente. “Definitivamente”, ele respondeu. “Minha geração tinha que ser levada a sério porque estávamos impedindo as coisas e queimando as coisas. Fomos capazes de iniciar mudanças, porque existíamos em grandes quantidades. Éramos parte do Baby Boom e, quando nos mexíamos, tudo se mexia conosco. Mas agora há menos adolescentes, e eles não são levados a sério como nós éramos. Você faz um filme sobre adolescentes e os críticos dizem, ‘Como ousa?’ Simplesmente existe uma falta de respeito geral pelos jovens.”

Jonh queria que as pessoas levassem os adolescentes a sério, e as pessoas levaram. Os filmes ainda são mostrados em escolas porque os bons professores querem que seus alunos saibam que o que eles sentem e dizem é importante; que se eles falarem, os adultos e seus colegas irão ouvir. Acho que, no final das contas, este é o maior valor dos filmes, e a razão pela qual eu espero que eles perdurem. As conversas sobre eles vão mudar, e deveriam mudar. É papel das próximas gerações descobrir como continuar essas conversas e como se apropriar delas – e continuar conversando nas escolas, no ativismo e nas artes – e acreditar que nos importamos.

Molly Ringwald é atriz, autora e cantora. Ela vive com sua família em Nova Iorque.

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