Representatividade e Sailor Moon: agradeça ao anime dos anos 1990!

Representatividade e Sailor Moon: agradeça ao anime dos anos 1990!

Não, esse texto não é um apanhado saudosista sobre como as coisas eram melhores nos anos 1990. Ninguém quer voltar a só ter acesso à internet no pulso único do telefone ou ficar vendo a trigésima reprise do primeiro arco do anime até anunciarem a compra do novo pacote de episódios – o que inclusive não garantia que viria uma sequência completa – e torcer para a dublagem ficar pronta logo. Isso aqui é para entender que, no contexto dos anos 1990, Sailor Moon ser um anime de comédia com pegada de super sentai, fazia todo o sentido. Sem aquele anime, muitos legados não existiriam.

Quem teve contato com Sailor Moon a partir do mangá nas bancas brasileiras ou da versão Crystal do anime, que comemora os vinte anos da obra, pode não compreender como o anime antigo que não tem uma pegada – e por que não dizer uma essência – shoujo tão forte pode ser tão emblemático, mas traremos aqui alguns detalhes que podem fazer tanto essa nova parcela de fãs entender a importância da obra, quanto alguns fãs mais antigos perceberem detalhes fundamentais que talvez não tenham notado à época.

Sailor Moon

Sailor Moon era o único “anime de menina” no “horário nobre” de desenhos da extinta TV Manchete. Se formos analisar a lista de animes que aflora à memória quando pensamos naquela época, os nomes principais são Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho e Sailor Moon. Sim, há outros nomes, como Shurato e Samurai Warriors, sem contar os tokusatsus, mas até mesmo quem não assistia aos animes sabia da existência de CdZ e SM. E por que isso é tão importante?

Porque, numa época onde a indústria do entretenimento estava focada em vender bonequinhos de luta para os meninos e maquiagem para as meninas, havia um desenho protagonizado por garotas que não era alusão a patricinhas de Beverly Hills; era um bando de garotas dando porrada. Mais: eram garotas com personalidades distintas e bem definidas, com todas as complexidades de quem está passando pela puberdade, dando porrada e salvando o mundo do mal.

À primeira vista, pode parecer bobagem, mas quando analisamos de perto percebemos que devemos uma quantidade enorme de agradecimentos à forma como Sailor Moon nos foi apresentado; feito de outra forma, não teria trazido uma série de consequências positivas. Uma delas é a reconhecida atividade dos fãs que foi essencial para o retorno de Sailor Moon ao circuito mundial, após Naoko Takeuchi, criadora da franquia, ter decidido que não renovaria as licenças de Sailor Moon pelo globo.

Sailor Moon

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Outra, pouco percebida, é a chegada de outros títulos a princípio voltados para o público feminino aos canais de TV aberta. Sailor Moon foi importante para o reconhecimento de que protagonistas femininas eram boas protagonistas, e isso mudou nosso acesso a animes. Enquanto os EUA podavam de todas as formas o anime de Sakura Card Captors para ele se tornar apenas Card Captors, com uma tentativa pitoresca de transformar o Shoran em co-protagonista do anime, nós recebemos Sakura com suas propriedades originais. Aliás, a já citada atuação dos fãs foi essencial também na chegada de Sailor Moon ao Brasil após sua passagem pelos EUA, exigindo que o relacionamento homossexual de Michiru e Haruka (Sailor Neptune e Sailor Uranus) fosse retratado conforme a obra original e não conforme a “versão editada” americana.

No mangá, Sailor Moon tem, além da história principal, capítulos chamados short stories, nos quais outras personagens são o foco. No anime dos anos 1990, essas short stories foram aproveitadas para desenvolver as personalidades de cada coadjuvante. A quantidade de episódios também influencia nesse quesito: os arcos mais longos davam a possibilidade de aprofundar a história de outros personagens. As histórias secundárias são importantes para gerar afinidade, e isso é algo que Sailor Moon trouxe de forma arrebatadora: afinidade.

O anime quebrou estereótipos e fez muitas garotas se identificarem com suas personagens. Nenhuma das sailors tem uma vida perfeita ou se encaixa em padrões arbitrários de personalidade. Era bom perceber que a garota de cabelos curtos, inteligente e quieta não era fria e calculista, mas uma amiga carinhosa e preocupada. Era interessante ver que a garota bela e de ar misterioso tinha personalidade forte e falava o que vinha à cabeça, na lata; se preocupava em ser ela mesma e não em seguir o padrão imposto pela etiqueta. Era libertador notar que a garota que tinha tudo para ser a mais bruta dentre todas, por conta da sua força extrema, era a mais delicada.

Sailor Moon

Entender que coisas que diziam ser “para meninos”, como ser faixa preta em karatê, eram para meninas também, e que não é preciso “escolher um lado”: você pode gostar de cozinhar, de flores e de chutar traseiros. Era um alívio ver que a garota mais experiente e madura no seu trabalho como sailor era também a mais infantil em outros aspectos da vida, e que uma coisa não atrapalhava a outra. O que falar, então, de uma protagonista chorona, preguiçosa, com péssimas notas? A mesma protagonista que se zanga e tem pulso firme para discursar diante das injustiças? Mais do que isso: Serena não perde nenhuma das suas características ao longo do anime, se torna uma rainha em todo o seu esplendor e continua estabanada.

A personalidade de cada uma das personagens trazia consigo uma compreensão mais complexa do que é ser uma pessoa. Características que podiam ser vantajosas ou não, dependendo do contexto, mas que ainda assim estavam presentes e faziam de cada uma delas um “alguém” diferente. E Sailor Moon não trouxe a diferença só em suas personagens de primeiro plano: o anime estava recheado de diversidade em todos os níveis.

Ela foi representada em vários momentos pelo elenco de apoio em episódios específicos, por personagens periféricos, coadjuvantes, vilões, mocinhas… Não foram personagens feitos para “bater a cota”; Sailor Moon estava permeado dessa diversidade. Lésbicas, gays, trans… Com muita ou pouca ênfase, todos estavam lá. Essa visibilidade foi tão importante que há vários conteúdos produzidos falando desses personagens LGBTQ+ e mostrando que eles não estavam ali como alívio cômico, e sim para apenas serem quem eram.

Sailor Moon
Os generais da Rainha Beryl, Kunzite e Zoisite, são claramente homossexuais.
Sailor Moon
The Sailor Star Lights – alguns dos primeiros personagens transgêneros a aparecer na TV.
Sailor Moon
O casal de lésbicas, Michiru e Haruka (Sailor Neptune e Sailor Uranus) em Sailor Moon. 

Sailor Moon trazia uma fórmula de comédia madura para a época. Enquanto outros animes usavam o assédio explícito a mulheres ou estereótipos maldosos de LGBT+ para criar seus núcleos cômicos, em Sailor Moon o humor foi direcionado para algo natural: adolescentes sendo adolescentes. A condição de minoria não era o motivo essencial dos momentos de comédia, mas a ideia de que adolescentes estão sempre em constante mudança, e isso gera situações engraçadas. Temos, então, duas formas distintas através das quais uma mesma mídia – os animes – poderiam influenciar seu público a compreender o que seria “motivo de piada”: por um lado, a inferiorização de minorias; por outro, o reconhecimento de momentos pelos quais passávamos ou já passamos.

Respeito, identidade, representatividade, sororidade e empoderamento – numa época em que essas palavras nem faziam parte dos nossos vocabulários –, em um mundo com magia, histórias de amor eterno, um enorme grupo de guerreiras, valorização das amizades, sonhos, esperança, paz… E força para conquistar tudo isso! Por que não dizer que Sailor Moon plantou uma sementinha feminista dentro de nós?

Autora convidada: Érica Calil Nogueira é historiadora e game designer. Quando não está jogando cria teorias estapafúrdias sobre a vida o universo e tudo o mais enquanto faz crochê e assiste algo. Tem uma relação com o cosplay igual a teoria da quinta série: quando você acha que saiu dela acontece alguma coisa e ela brota novamente.

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