[OPINIÃO] Um novo tango: O caso de Maria Schneider e as impressões após rever o filme

[OPINIÃO] Um novo tango: O caso de Maria Schneider e as impressões após rever o filme

Impacto profundo. É o nome de um filme-catástrofe dos anos 90, mas é o único termo que consigo utilizar para sugerir o que a primeira sessão de O Último Tango em Paris me provocou. Eu tinha 18 anos, pouquíssimo conhecimento cinematográfico e um carinho recém adquirido pelo diretor Bernardo Bertolucci após ter assistido O Último Imperador e Beleza Roubada. Todos os livros, todos os críticos, todos os amigos e inimigos cinéfilos diziam que O Último Tango… era uma obra-prima. Minha ânsia de aprender mais sobre cinema me fez correr atrás do filme e fazer do meu primeiro contato com ele algo especial. E foi. Mais do que eu imaginava.

Passei alguns dias lembrando planos, pensando no que elas queriam me dizer, tentando absorver tudo que havia passado diante dos meus olhos durante aquelas duas horas. Eu sabia que havia assistido uma obra importante não apenas para o cinema, mas também para a minha própria vida. Mas uma cena me causou extremo mal-estar e eu não sabia explicar o porquê. As leitoras deste texto já devem desconfiar a qual cena estou me referindo: a da manteiga.

Eu, que achava que tinha a sexualidade bem-resolvida e nunca olhei para o lado envergonhada diante de uma cena de sexo, simplesmente não conseguia me sentir bem diante de Marlon Brando agarrando Maria Schneider no chão do apartamento vazio. Óbvio que não é uma cena fácil nem para a mais livre das mentes. Mas um misto de raiva e medo tomava conta de mim. Fechei os olhos mais de uma vez. Respirei fundo. Por quê? Por quê?

A Bianca de 31 anos, com alguns fios brancos na cabeça e com uma quantidade bem maior filmes na memória, propôs a si mesma o desafio de rever O Último Tango em Paris, agora com o fardo da revelação de que a famosa cena não foi combinada previamente com a atriz e seus gritos eram reais, e também a leitura de um texto de Pauline Kael para a revista The New Yorker. Nela, a crítica tece elogios para a atuação forte e verossímil de Schneider dizendo que ela tem “pernas longas e rosto de bebê” e que “ela se integra à grande tradição cinematográfica das meninas safadas e irresistíveis.”

Não posso afirmar que cumpri meu desafio com tranquilidade. Fiquei novamente hipnotizada pelas cores da fotografia de Vittorio Storaro e pela trilha de Gato Barbieri. Mas a proximidade da dita cena mexeu com minha ansiedade e quando, finalmente, chegou, mantive meus olhos firmes na tela da TV. Acho que devo ter piscado poucas vezes. Ela chegou ao fim e apertei o pause. E chorei. Foram lágrimas bem diferentes das que derramei na primeira sessão, quando eu era uma Bianca menina demais para entender palavras como patriarcado e sororidade e que, assim como a Jeanne do filme, ficou encantada com aquele homem mais velho e misterioso. Meu choro atual foi de compaixão por Maria Schneider, que se viu pega à força em um set de filmagem e também por Brando e Bertolucci, dois homens ignorantes da força que o medo do estupro tem na vida das mulheres.

Marlon Brando e Bernardo Bertolucci no set de “O Último Tango em Paris”, 1972. Imagem: reprodução
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A desculpa do diretor de que a ideia de pegar Schneider de surpresa era uma forma de colocar em cena um sofrimento mais real não me convence. Não acredito que a atriz não seria capaz de transparecer realidade em sua atuação se soubesse o que iria acontecer na cena. Sabemos que há muitos artistas que usam formas violentas e de gosto duvidoso para arrancar de seus atores atuações mais intensas. Mas em O Último Tango em Paris, Bertolucci e Brando passaram dos limites.

É compreensível que eles, e outros homens e até mulheres, achem um exagero a alegação de Schneider, que se sentiu humilhada e sequer foi consolada pela equipe do filme após o final da cena. A criação machista faz com que uma menina sexualmente ativa e livre, que circula nua por um set sem um pingo de timidez, por exemplo, seja vista como disponível para qualquer coisa, inclusive ser atacada diante de uma câmera. A criação machista faz mulheres pensarem que “ela saiba o risco que corria por estar fazendo um filme com altas doses de erotismo”. Homens, também pela criação machista, afirmam que não houve penetração, logo, não é um crime.

Meninos e meninas, homens e mulheres: não é um pênis entrando em uma vagina que faz um crime. Não é porque você assinou um contrato para ser atriz que tudo é permitido. Se causou lágrimas, se tirou o sono, se fez alguém suar frio e temer pela própria integridade física, passa longe da arte. Não sou radical ao ponto de apagar O Último Tango em Paris da minha trajetória cinéfila. Mas jamais irei comentá-lo novamente sem mencionar o crime que ocorreu diante das câmeras. Aprendi com ele que homens são frágeis ao ponto de agredirem sexualmente uma mulher para tentar convencerem a si mesmos que estão no poder. Afinal, Jeanne queria seguir na liberdade de uma relação baseada no sexo e na falta de informações pessoais, enquanto Paul quer um relacionamento sério, dizendo-se apaixonado. Confundir entrega sexual com amor. O ponto fraco dos homens. Bertolucci colocou isso em seu filme, com grande probabilidade de ter feito essa escolha inconscientemente.

Escrito por:

Bianca Zasso é jornalista e Especialista em Cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano. Integrante da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS). Atua como pesquisadora e crítica de cinema desde 2009. Integrou durante cinco anos o projeto de extensão Cineclube Unifra. Colabora para os sites Claudemir Pereira, DVD Magazine, Delirium Nerd, Papo de Cinema, Action News e Formiga Elétrica. É apresentadora da série Bia na Toca, realizado pela produtora Toca Audiovisual. Integra o Elviras- Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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