Maternidade compulsória e a jornada exaustiva e solitária das mães

Maternidade compulsória e a jornada exaustiva e solitária das mães

Somos culturalmente levadas a crer que parir é algo inevitável à condição feminina. Desde que nos entendemos por gente, nós, mulheres, somos condicionadas a acreditar que nosso destino biológico e social só terá êxito e realizará seu propósito quando enfim gerarmos um outro membro dessa sociedade patriarcal. Ou seja, trata-se de uma maternidade compulsória. Mas não se iludam, nosso destino não é traçado na maternidade! 

Quando eu era criança, lembro perfeitamente de ser cobrada sobre determinados comportamentos – menina usa vestido, menina não fala palavrão, menina tem que saber se comportar à mesa, saber sentar-se direito… Essas cobranças partiam de meus pais, mas na escola tive professorAs extremamente rigorosas em seus julgamentos e exigências, simplesmente por eu ser do sexo feminino. Evidentemente que eu adorava ganhar bonecas, e não posso dizer que meus pais me impediam de brincar com os brinquedos de meu irmão, muito ao contrário, mas em certa medida sempre me senti tolhida em meus instintos “menos femininos”, por assim dizer. Adorava brincar com os meninos, das brincadeiras que eles propunham, andar descalça e não compreendia certos códigos.

Eu tinha a convicção, desde sempre, que os meninos se divertiam mais e que as exigências sobre eles eram menores. Porém, mesmo desejando ter a liberdade de me comportar como um garoto, pensava muito na maternidade e brinquei demais de casinha. Óbvio que cabia a mim a função de parir (simulava, inclusive, a gestação) e cuidar da cria, enquanto meu “marido” (meu irmão) saia para trabalhar. Vez por outra, eu desejava ser secretária, manicure, vendedora de qualquer coisa… Mas a maternidade sempre esteve presente no meu brincar e minhas referências mostravam que a mim caberia ser a “rainha do lar”. Podemos dizer que em certa medida fui vítima, como muitas mulheres de minha geração e das anteriores, da Maternidade Compulsória.

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Mas, afinal, o que é Maternidade Compulsória?

É um conceito criado por movimentos feministas para explicar um fenômeno social cujas as mulheres são submetidas desde crianças. Mulheres crescem convivendo com a expectativa (social) de tornarem-se mães. Quando meninas, nós ganhamos bonecas, brincamos de mamãe e filhinho, aprendemos a cuidar dos irmãos e somos levadas a acreditar que casar é o caminho natural para nós, mulheres. Ou seja, de forma subjetiva e talvez até silenciosa – uma vez que o patriarcado e os comportamentos machistas estão normalizados em nossa sociedade – somos conduzidas a acreditar que desejamos desde sempre ser mães e que em dado momento nosso “relógio biológico” tocará, e será o momento de engravidarmos.

Muitas mulheres passam a vida buscando o momento em que poderão finalmente realizar sua mais nobre tarefa: a procriação, trazer ao mundo um novo membro dessa sociedade patriarcal e cumprir sua função como mulher. Somos tratadas, em certa medida, como parideiras, cuja única função é procriar. Se fizermos uma análise do papel da mulher na história da humanidade e nas religiões, encontraremos destaque às mulheres cuja contribuição foi estar à sombra de um grande homem, cuidando e zelando para que todo seu tempo fosse dedicado ao trabalho ou à realização desse homem. Às mulheres sempre coube o papel de preservar um ambiente familiar saudável, cuidar dos filhos e estar sempre pronta para atender aos caprichos de “seu homem”.

Veja bem, quando pensamos na “mãe ideal”, lembramos que nossa primeira referência é Maria, a mãe de Jesus, aquela que presenteou a todos parindo o redentor da humanidade. Qual legado Maria nos deixa? Com certeza uma herança de submissão e o registro primeiro de que a “boa mulher” é aquela que dá a vida e se dedica com afinco ao seu lar.

Além de sermos influenciadas por nossos pais e pela comunidade da qual fazemos parte, recebemos informações constantes e sutis (às vezes até bem diretas) dos meios de comunicação, mídias, moda, cultura, fabricantes de brinquedos e outros. Somos constantemente bombardeadas com a sugestão de que devemos cumprir nosso destino biológico. Como não poderia ser diferente, encontramos no cinema (assim como na música, no teatro, nas obras literárias, etc.) produções que retratam – propositalmente para sugerir reflexão e debate saudável ou apenas por acreditar que essa retórica ultrapassada é aceitável – mulheres que foram levadas a casar e engravidar justamente por não perceberem que talvez aquela não fosse a sua escolha (a de engravidar ou casar), e sim apenas o resultado de anos de informações, demandas e ensinamentos que nos convenceram que esse é o único caminho. Ser mãe!

A proposta deste texto é fazer uma breve análise sobre alguns filmes cujo viés passa pela questão da maternidade compulsória. Existem inúmeros filmes com a temática da maternidade (onde a maternidade compulsória é visível) e mais outros tantos onde o casamento é uma obsessão para a protagonista. Como este texto é sobre maternidade compulsória – deixei o tema das mulheres obcecadas em se casarem para um outro dia. Escolhi três películas bem fortes onde está bem claro como somos levadas a parir e como acabamos acreditando que a vida é um grande comercial da Doriana – o marido perfeito, o emprego perfeito, o filho perfeito… Só que não! São eles: “Como Nossos Pais”, “Tully” e “Precisamos falar sobre Kevin”.

Como Nossos Pais (2017), de Laís Bodanzky

maternidade compulsória

Nessa história muito bem contada por Laís Bodanzky, vemos se materializar diante de nós o resultado de um casamento que explodiu com a chegada dos filhos. Não estou dizendo aqui que os filhos acabaram com o casamento, mas sim que uma sucessão de “escolhas equivocadas” (como o fato de Rosa deixar seu trabalho para cuidar dos filhos e da casa, por acreditar que sua profissão fosse menos importante que a do marido), levaram esse casal a se deparar com suas incertezas e a dúvida sobre o que os conduzira a fazer a escolha de se casarem e terem filhos.

Rosa abdica de sua profissão e vive em função de garantir que tudo funcione bem em seu lar, que suas filhas tenham uma boa educação – observando tudo o que a cartilha da mãe moderna prega (comida saudável, regras baseadas em combinados…) – para que seu marido, cujo trabalho o “obriga” a ficar fora de casa, viajando a maior parte do tempo, fique em paz na certeza de que ele está fazendo o melhor para garantir o sustento de sua família, e que sua mulher está fazendo exatamente o que ela sonhou em fazer. Ser mãe!

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Tully (2018), de Jason Reitman

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Tully é um daqueles filmes em que você logo se rende. Neste longa, Marlo é mãe de três filhos, um garoto que tem problemas para socializar e grandes dificuldades para compreender certas regras de convivência – inclusive, ele acaba sendo “convidado” a se retirar da escola, uma garota e um recém-nascido. Ela cuida dos três sozinha, o que inclui ser motorista, os levando para cima e para baixo em seus compromissos. Preocupa-se com seus desempenhos escolares, sofre com os comentários maldosos ou desajeitados sobre o filho, realiza sozinha as tarefas domésticas (lava, passa e cozinha) e, ao mesmo tempo, procura manter acessa a paixão entre ela e o marido.

No meio desse cenário caótico, encontra-se uma mulher sobrecarregada e exausta, que demonstra grande dificuldade de raciocinar, dando sinais de uma depressão, lidando com a rotina de ser mãe (o que piora com o recém-nascido) e dona de casa, além de estar extremamente solitária e esquecida – pelo marido, mas principalmente por ela mesma.

Enquanto Marlo é atropelada por sua própria vida, seu marido que trabalha fora para manter o sustento da família, em seu tempo livre se dedica a “descansar” jogando videogame, ignorando o que acontece dentro de casa, mesmo diante dos delírios de Marlo, das noites que ela passa em claro, de sua aparência cansada e sofrida e de outros sinais “visíveis a olhos nu”.

Muito ao contrário do que se espera, quando chega o momento do filme demonstrar compreensão e sororidade sobre os sacrifícios que Marlo faz para cumprir a árdua tarefa de ser uma mãe incrível, capaz de dar contar de tudo e ainda garantir a segurança e tranquilidade de seu lar para que seu marido possa desempenhar suas tarefas de HOMEM, a história toma um atalho previsível, mas extremamente broxante, justificando o comportamento abominável e abusivo de seu marido e culpabilizando Marlo por chegar ao limite de suas forças até ter um colapso. Afinal, Marlo estava vivendo o sonho de ser MÃE! 

>> Leia mais sobre o filme aqui!

Precisamos falar sobre Kevin (2011), de Lynne Ramsay

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Eva Khatchadourian almeja ter sucesso em sua carreira. Não pensava, tampouco desejava ser mãe, porém, um descuido de seu namorado e dela numa noite de bebedeira e loucura acaba resultando em uma gestação indesejada. Acontece que o namorado de Eva acaba se entusiasmando com a ideia de ser pai e ela por sua vez não se encaixa no papel de mãe, muito menos consegue lidar com os desdobramentos (nada agradáveis) de uma gravidez. Mesmo assim, Eva mantém a gestação e prossegue lutando com os sentimentos contraditórios que “sua escolha” acarreta e procura se adaptar à sua nova vida familiar.

Eva tem certeza que há algo errado com seu bebê. Ela nutre um sentimento ambíguo de amor (quase obrigatório, uma vez que não se espera que uma mulher não ame sua barriga de grávida) e ódio por esse ser que mudou o rumo de sua vida e colocou seu futuro profissional em segundo plano. Ela tem certeza que nada de bom pode sair de dentro dela e que certamente seu fruto não trará contribuições para a humanidade.

É uma clara fantasia de que ela, por não amar seu filho, não é merecedora de parir uma boa cria, ao contrário, o castigo será parir uma criança “ruim”. De certa forma, essa fantasia, esse “desejo”, esse medo, é o resultado de uma cultura social que incute em nós a falsa ideia de que devemos ser mães e devemos amar incondicionalmente a maternidade, talvez mais até de que nossos próprios filhos. O filme, com menos êxito do que o livro, nos entrega uma história terrível, mas extremamente crível e bem contada.

Nesses filmes podemos ver excelentes exemplos de Maternidade Compulsória, por três pontos de vista diferentes, porém, uma coisa é CLARA E TRANSPARENTE nesses títulos, ainda não temos autonomia para fazer verdadeiramente escolhas sobre quem somos e o que queremos para nós e nossos corpos. Mas sinto que há um movimento rumo à compreensão, de que ser mãe não é algo compulsório e tampouco é parte de nossa constituição biológica, enquanto mulheres, o DESEJO de parir. Ser mãe deveria ser realmente algo desejado e o mito da santificação da mulher grávida deveria ser combatido. Não queremos ser santas, queremos ser aquilo que desejamos e escolhemos para nós e nossos corpos.

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Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
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