“BoJack Horseman” e os homens abusadores e assediadores na indústria do entretenimento

“BoJack Horseman” e os homens abusadores e assediadores na indústria do entretenimento

Protagonistas podem se dar ao luxo de serem controversos. O herói pode ser um anti-herói, pode inclusive cometer erros horríveis, pode ser violento e injusto: as falhas e os acertos dos protagonistas servem para refletir nossos comportamentos, são eles quem ditam o rumo da narrativa e consequentemente é por eles que nossa empatia e compreensão são guiados. O pior dos heróis ainda recebe o perdão do público.

BoJack não é herói e ainda assim, sendo a série sobre ele, somos inclinadas à afeição. Durante as últimas 4 temporadas, foi por meio de seus erros, do passado e atuais, que a espectadora pode encarar junto com a própria série o cotidiano e jornada de um cavalo traumatizado e deprimido, suas dificuldades em formar laços verdadeiros, em agir com integridade e conseguir sair finalmente do ciclo de mancadas que se tornou sua vida em Hollywood.

Aviso: Contém spoilers da 5ª temporada da série

BoJack agora tem mais uma chance de se redimir com o estrelato: no fim da quarta temporada, Princess Carolyn aceita produzir uma série de ação, com um personagem principal curiosamente parecido com BoJack — “Philbert” é um sujeito fechado, em busca da verdade sobre a morte de sua esposa, e traumatizado com fantasmas do passado. Durante a produção da série, as semelhanças de BoJack e seu personagem vão aumentando, para desgosto do próprio BoJack, que tem dificuldades em encarar verdades sobre ele mesmo. Isso nos leva a pensar nas histórias produzidas em Hollywood, quantas delas não estão de fato falando a verdade sobre esse meio?

BoJack
Tantos homens feministas na mídia, não é mesmo?

Esses homens que muitas vezes encenam outros homens violentos não podem estar tão distantes de seus personagens, uma vez que fomos criadas nessa cultura extremamente permissiva com o comportamento agressivo dos famosos. O homem violento é constantemente retratado como um homem sensível, profundo e conturbado por uma vida complicada, mas que raramente age de forma a combater a violência que lhe é imposta, e muitas vezes se usa dessa mesma violência para manter seu status. Essa parece ser a temática da temporada: a dificuldade que nossa cultura tem de cobrar os homens por atitudes autoritárias, violentas e opressoras, ao mesmo tempo que estamos sempre dispostas a perdoar os “vacilos” de quem nos agride. E neste quesito, o próprio BoJack ainda tem muito o que explicar e se desculpar.

Novidades também não faltam no círculo de amizades do cavalo: Diane e Mr. Peanutbutter estão se separando depois de 10 anos de relacionamento e 5 anos de casados. Claramente diferentes em gostos, planos, ambições e personalidade, o casal já havia passado por crises quase irreconciliáveis, mas desde o desabamento da casa em que moravam por conta do fraturamento hidráulico (parte da campanha desastrosa de Mr. Peanutbutter para o governo da Califórnia) Diane teve dificuldades em esconder seu desejo pela separação.

Na quinta temporada, acompanhamos uma Diane recém-separada e confusa, que viaja para o Vietnã na intenção de se “encontrar” (em uma ironia divertida com livros como “Comer, Rezar e Amar”) mas tem poucas pistas de como começar a cuidar de si mesma. Nesse ponto, a série Bojack Horseman critica a ideia de que grandes mudanças de comportamento e sentimento possam acontecer em um período curto de tempo, que o romantismo em relação às viagens de fuga são na verdade um discurso raramente aplicável à vida real.

BoJack
“I’m a sad, sad girl with a terrible, dirty apartment”

O conflito de Diane e sua participação na indústria do cinema e entretenimento — que sempre esteve presente nas temporadas anteriores —  chega a um ponto crítico neste momento, em que sua compreensão de como a indústria acoberta violências masculinas se aproxima de sua vida pessoal: querendo ou não, ela é também responsável por ter tornado a imagem de BoJack relacionável e perdoável, ao escrever um livro sobre suas contradições.

As referências aos últimos acontecimentos de Hollywood pós movimento #MeToo, que denunciou famosos abusadores, violentos, assediadores, de Harvey Weinstein à queridinhos de crítica e público como Louis CK e Aziz Ansari, são presença forte nesta quinta temporada, que usa das metáforas e de personagens que relembram os famosos da vida real para traçar uma crítica de como a indústria lida com esses abusos perpetuados pelos homens.

Neste sentido, ao mesmo tempo que tenta se habituar a nova vida de solteira, Diane recebe a proposta de trabalhar no roteiro da série “Philbert”, na intenção de deixá-lo menos sexista e guiado pelo olhar masculino. Tendo que lidar com o diretor e criador da série, Flip, que representa o clichê do diretor de cinema obcecado pela própria genialidade, incapaz de sair da perspectiva clássica de filme de ação, Diane tenta de várias maneiras adaptar o roteiro de maneira que ele não normalize comportamentos tóxicos masculinos, e ensinar BoJack a entender a importância da mídia e das narrativas para formação de senso comum sobre os homens e as mulheres. Toda essa tentativa parecer encontrar ouvidos surdos, uma vez que a própria indústria e seu amigo BoJack são resistentes à qualquer tipo de responsabilização e mudança de comportamentos.

Princess Carolyn também permanece em sua busca desenfreada por sucesso no mundo do entretenimento, ignorando o histórico de atores violentos, aliviando para o diretor afetado da série Philbert, da qual é produtora, e basicamente usando o discurso feminista pra justificar suas atitudes. Ao mesmo tempo (como em quase toda temporada), temos uma imersão em seu passado e traumas, conhecendo o histórico de um de seus abortos espontâneos e de sua relação com a mãe, a origem pobre e interiorana e o sonho de fazer a vida na Califórnia.

Sua obsessão por trabalho e a vontade antiga de ser mãe viram pólos opostos de vidas dividas da personagem; na fila para a adoção, Princess Carolyn frequentemente vê as demandas de seus projetos — e a dependência de seus subordinados, amigos, clientes aos seus comandos — entrarem em conflito com a maternidade: Princess Carolyn parece ser mãe de tanta gente que lhe falta tempo para ser mãe do bebê que quer adotar. Nesse processo tortuoso (e caro: 60 mil dólares na agência de adoção são o suficientes para uma secretária mal-humorada e várias tentativas frustradas), Princess Carolyn volta à sua terra natal e revisita seu passado enquanto planeja o futuro.

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Ao longo da temporada vários pontos de vista são explorados, inclusive de um casal lésbico de terapeuta e mediadora que recontam a história de seus pacientes famosos mudando nome, forma e espécie do núcleo principal da animação de forma hilária. Mr. Peanutbutter se percebe como denominador comum de todas suas ex-esposas, que eventualmente ultrapassam sua maturidade e se veem em um relacionamento sem saída. O cachorro carente, agora já na casa dos 50, permanece se relacionando com mulheres jovens na faixa dos 20 anos, o que revela uma tendência de homens imaturos incapazes crescer com as experiências anteriores e permanecem em um ciclo infantil das mesmas escolhas. Todd decide pela primeira vez procurar emprego e acaba se tornando o diretor na rede de TV associada ao site What Time Is It Right Now, cuja única utilidade é mostrar as horas. Sua tentativa de criar um robô sexual falante para satisfazer Emily, acaba virando uma metáfora de como homens completamente abusivos, inapropriados e assediadores são a casta mais propensa a se tornar diretor de grandes empresas. Bojack Horseman engaja na crítica da indústria e dos conglomerados de mídia de forma certeira, posicionada e hilária.

Mesmo com a diversidade de perspectivas, uma pergunta percorre os episódios e incomoda a espectadora assim como as próprias personagens da série: e quando esses homens que abusam estão do nosso lado? O que acontece quando é alguém com quem compartilhamos momentos e sentimentos que descobrimos a repetição do padrão social que afirmamos tão severamente repudiar? Diane deixa bastante claro para os outros que a neutralidade e normalização de comportamentos violentos em situações de conflito é responsável pelo cenário de abuso sexual e violência atual. É o nosso silêncio perante essas situações que faz com que os abusos e a violência continuem acontecendo, com a frequência alarmante que nós, feministas, denunciamos. Mas o que fazer quando nossos amigos, nosso personagem principal, é um desses perpetradores?

Bojack Horseman demanda uma reposta interna, um posicionamento. Estamos em contato com um BoJack capaz de seduzir uma garota de 16 anos depois de tentar seduzir a mãe dela. É o mesmo BoJack que esteve ao lado da amiga recém-saída da reabilitação e ofereceu drogas. É também o BoJack que abandonou o melhor amigo para ser demitido de seu próprio programa porque foi “flagrado” sendo gay. Até onde vai o nosso perdão, que nos torna cegas perante os atos de violência de quem amamos? É esse incômodo que a série não alivia, essa sensação de gostar de quem obviamente pratica e representa o que lutamos contra. O que fazer, agora, BoJack?

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Feminista Raíz
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