[ENTREVISTA] Júlia Leonel e a Alarme Feminista: “pequenas coisas fazem muita diferença”

[ENTREVISTA] Júlia Leonel e a Alarme Feminista: “pequenas coisas fazem muita diferença”

Conversamos com a artista independente Júlia Leonel e contamos um pouco sobre a Alarme Feminista, bem como sobre produzir arte feminista em cidades interioranas.

Resistir nem sempre é fácil. No interior de estados então, nem se fala — porém, existimos. Foi numa dessas buscas por conhecer a produção independente da região que encontrei um álbum de fotos da Feira ZICA (Sorocaba/SP). Na foto de um dos estandes, havia um print: “meninas transam”. Eu, que sinto um carinho pela defesa da autonomia sexual feminina, não medi esforços para encontrar a responsável pela arte: Júlia Leonel.

Conheci o projeto em 2017. Aliás, confesso que adquiri não apenas o print, como as edições sobre clitóris e aborto. O projeto busca distribuir arte feminina com o propósito de fortalecer mulheres artística e economicamente.

Feminista
Júlia Leonel na Feira ZICA | Foto: Ana Rei Nascimento

Surgida em 2014, a Alarme Feminista tinha como objetivo formar debates em torno de temáticas referentes ao feminismo e produzir coletivamente fanzines. Durante seus primeiros três anos, distribuiu gratuitamente fanzines em mais de 20 espaços culturais. Com o tempo, surgiu a necessidade de remunerar as artistas, se tornando um canal de visibilidade para o trabalho realizado.

Retomei o contato com o projeto este ano, ao ganhar o zine Demônia, que aborda a representação de mulheres em diversas culturas ao redor do mundo. Abaixo, confira a entrevista realizada com Júlia Leonel, artista e uma das fundadoras do projeto:

A princípio, conta algo sobre você, algo que acha que as pessoas devem saber.

Bom, nasci em Itapetininga/SP, me mudei para Sorocaba há uns 5 anos, e meio que moro um pouco nos dois lugares. Sou uma pessoa estranha, sempre deslocada, meio perdida. Tenho dificuldade em me comunicar, acho que desenhar e escrever me ajudam [risos].

Como ocorreu a criação da Alarme Feminista?

Na faculdade eu tinha aula com uma professora que reproduzia um discurso bem machista em sala. Vira e mexe eu parava a aula para questionar porquê ela colocava que determinado tema, comportamento ou assunto era “de homem” ou “para mulher”. Ou seja, comecei a atrapalhar a aula [risos]. Não queria ser chata, mas também achava que era bem problemático para a formação da turma se não tivesse outro ponto de vista. A zine foi uma solução que encontrei. Tem uma pegada diferente do panfleto e não precisaria prejudicar o andamento da matéria. Eu distribuía na sala, quem não quisesse pegar não pegava. O custo de produção é baixo, então rolava fazer a distribuição gratuita na época. Daí percebi que não era apenas na faculdade que faltava acesso à informação fora da lógica do patriarcado e comecei a distribuir em eventos, espaços culturais. O pessoal começou a curtir e segui fazendo.

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Quando você pensou em começar a comercializar sua arte? Foi uma decisão difícil, considerando que ela aborda principalmente o “ser mulher”?

Ficou inviável distribuir gratuitamente. Estava desempregada fazia tempo. Querendo ou não, dez, vinte reais por mês começa a pesar. Começamos a organizar eventos para arrecadar uma grana, mas daí as minas tinham que ser voluntárias e comecei a ver que pesava para elas também. Ao mesmo tempo em que não é legal comercializar o feminismo e precisamos tomar bastante cuidado com isso, é comum que os trabalhos não remunerados sejam designados para nós [mulheres]. Foi um lance que exigiu bastante reflexão, foi difícil. Na real, acho que o projeto se afastou da “militância” — já fui militante? Não sei — e passou a ter um viés mais artístico. Quer dizer, o feminismo acaba estando presente porque está presente na minha vida, mas não é a intenção vender feminismo.

Como é administrar uma proposta do gênero numa cidade interiorana? Não sei como você vê, mas penso que a Alarme é a única ou uma das únicas fontes deste tipo de trabalho que temos aqui.

O maior público da Alarme é da capital. Acredito que lá já tem uma cultura de consumo e produção de impressos independentes. Nos anos 80 tinha zines circulando aqui por Sorocaba, era o auge do fanzine. Depois rolou um declínio com o surgimento da internet, blogs, etc., e agora os impressos vivem um momento bom novamente. Modéstia à parte acho que a Alarme acabou sendo meio pioneira mesmo, e não tem tantas/os zineiras/os por aqui ainda. Mas acho que é algo em crescimento. Sobre ser um material feminista, percebo que é mais difícil fazer virar. Já ouvi muito que o que eu fazia não era arte, por ter uma pegada política. Mas não sei, talvez seja em todas as cidades, é meio bizarro isso, mas a palavra “feminista” ainda assusta.

Feminista
Zine “Demônia” em sua edição especial, com capa confeccionada manualmente

Fala mais sobre o “Demônia”

Foi um lance que teve muito a ver com a minha vivência [risos]. Comecei a refletir sobre porque tanta gente vê algumas mulheres com “maus olhos” enquanto homens com o mesmo comportamento está ok. É isso, tem traços de personalidade que são bem aceitos para os caras, mas para as minas não, a gente é “demonizada”, vista como perigosa. Daí veio essa ideia de estudar demônias de diversas mitologias e fazer uma releitura delas. A zine traz dez demônias e faço uma relação com a natureza, tento resgatar nossa animalidade.

Como foi a escolha das personagens para a zine?

Na verdade não achei muitos exemplos de “demônios fêmea” – demônia é gramaticalmente errado, mas quis usar mesmo assim. A maioria dos demônios é macho, ou parece que se não tem uma especificação de sexo é lido como macho, e por isso mesmo as demônias que fizeram questão de marcar como fêmeas trazem questões tão pertinentes a nós.

Existe algo sobre o seu processo criativo que você gostaria de compartilhar? Alguma dica para minas que estão dando o primeiro passo em direção à produção de artes feministas?

Costumo encarar cada nova produção como um aprendizado. Acho que é uma boa forma de nos arriscarmos em coisas novas e aceitarmos nossas falhas. Não sei, percebo que a maioria das mulheres se cobra muito e isso pode inibir a gente. Faz o seu melhor, mas entenda que a próxima vez é sempre melhor ainda. A gente vai se superando, eu mesma tenho que me lembrar disso todos os dias.

Por fim, há uma mensagem que você queira deixar para nossas leitoras?

São as pequenas coisas que sempre me chamaram mais a atenção. Não sei, acho que a gente podia se importar mais com isso. Acredite que pequenas coisas fazem muita diferença.

Você pode conhecer mais sobre o projeto pela página do Facebook aqui. Além disso, apoiar a iniciativa clicando neste link.

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Estudante de Produção Cultural, social media na Cérebro Surdo Produções e colunista no portal Timbre. Também proprietária das melhores fotografias em cafés.
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