[LIVROS] Entre as mãos: a mulher entre os recortes da vida (resenha)

[LIVROS] Entre as mãos: a mulher entre os recortes da vida (resenha)

Entre as Mãos” é o primeiro romance da autora brasileira Juliana Leite. Vencedor do Prêmio SESC de literatura 2018, apresenta uma história de sutilezas. O romance é escrito de forma peculiar, em uma construção diferente da trama, que o torna ainda mais complexo. E, assim, apresenta a história de Magdalena na continuação do tapete de sua vida, e nas mudanças dos traços que a vida lhe impõe.

A visão de um personagem inominado

“Entre as Mãos” se divide em três partes distintas não apenas na forma de narração. A primeira é narrada por aquele que olha o tapete de Magdalena de fora. Traz, então, o tapete para sua própria casa. Contudo, perde-se ao perceber os seus fios soltos. Sem nome, o personagem de inicial P introduz os eventos. Apresenta, dessa forma, sua perspectiva sobre os fatos da vida em conjunto. Narra, então, quando conheceu a protagonista. Narra, também, os eventos da vida dela que o marcaram. E narra o acidente.

O dia estava chuvoso. Um tapete fora, então, largado no corredor. Inacabado, no entanto. Ele falou que ela tomasse o leite por ele preparado. Em seguida, ela saiu. Pouco depois, o telefone toca. Precisam de um responsável: um acidente. O abdômen fora perfurado, as mãos queimadas. “P”, apenas mais um personagem inominado, gostaria de mudar a vida de Magdalena, mas ele não está no comando desse tear.

Aguarda, então, pelas cirurgias, até que se vai. E entre o processo de salvação e recuperação – reanima, tira o órgão, costura – ele descreve a história dos dois. Fala dos tapetes, das dores que a viu experimentar como mulher. Fala, ainda, da flor no cabelo. Aquela que, mais tarde, desapareceu. Mas seria esta, de fato, a sua versão da história?

Entre as mãos de Magdalena

Uma boa notícia chega. Magdalena, então, recebe a alta. Mas seu tapete carrega em sua trama os vestígios do que lhe ocorrera. E ela carrega na pele a memória de seu acidente. Precisa, assim, aprender a conviver com esse fardo: o fardo da memória. E, dessa forma, precisa conciliar a mulher que ela era antes com a mulher que ela é agora.

Magdalena precisa reaprender a tecer. Vê-se num ponto em que as linhas se encontram entre as mãos, mas ela já não lembra como construir o desenho. Ou mesmo como traçar rabiscos da mesma forma. Ela ainda tem de aprender a viver normalmente – fazer compras, cozinhar, trabalhar, pegar o temido ônibus – com a pele nova, se acostumando ao corpo. Ou seja, com as cicatrizes que agora carrega. “Você vai aprender a lidar com a cicatriz. Não te apresse”.

Ao menos, ela possui as fotos de antes. E a elas ela se apega para compreender os vestígios do por vir. Ela apresenta, então, outra perspectiva sobre uma mesma história narrada anteriormente, embora também apresente novos fatos. Coloca as fotos sobre a mesa, comparando presente e passado em uma narrativa não linear. Vê, dessa maneira, onde estava o foco dele – e qual seria seu foco. Enxerga a curva, a esquina, o ônibus se anunciando na chuva. E enxerga o afastamento. Para onde ele foi?

Os rabiscos

A parte final talvez seja a mais difícil de compreender. Isto porque traz os rabiscos que Magdalena tenta reproduzir. Apresenta, assim, fragmentos da narrativa anterior, os pedaços para além da visão da protagonista ou de uma suposta visão daquele homem que um dia se fizera presente. É ela tentando aprender a reescrever sua história.

Há pedaços de conversas de em seguida. Há trechos retirados da conversa um tempo mais a frente, enquanto ela tenta retomar sua vida. O diálogo com a tia louca. Uma troca de favores. A conversa com a aluna, a quem ela tenta ensinar a tecer quando ela mesma está reaprendendo.

“[…] Gostava? Gostava de cinema? De histórias? Dos tapetes? Dos velhos? Dos ônibus? Dos panos de chão? O que aconteceu com a flor do cabelo? O que aconteceu com a flor? O que aconteceu?”

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Entre as mãos do leitor

“Entre as Mãos” é um livro diferente. A princípio, não parece ter grandes aspirações. Não pretende, nitidamente e desde o princípio, divagar sobre pontos polêmicos ou questões controversas. Propõe-se apenas a dissecar de forma um tanto abstrata os rabiscos que compõem a história de sua própria protagonista. Mas conforme adentra a trama de Magdalena, aborda questões que tocam de uma maneira incomum. É sensível em sua forma confusa de lidar com o tempo e com a narrativa. E, de fato, trabalha com a não linearidade como forma de repensar a própria vida. Afinal, presente, passado e futuro são linhas a construir um único tapete.

É difícil compreender ao todo a complexidade de “Entre as Mãos”. Ao mesmo tempo em que sua escrita é bela, é difícil de acompanhar, uma vez que estamos acostumados a trabalhar com uma espécie de leitura muito mais simplificada. E, assim, não formada de linhas entrecortantes – pense na trama de um tapete, nas linhas que passam umas pelas outras. Portanto, talvez seja necessária mais de uma leitura atenta para compreender a história do modo padrão, com início meio e fim. Ou para compreender bem o que faticamente se passa na história de Magdalena – se é que é possível.

O valor da literatura nacional

Apesar dessa dificuldade, é interessante ver como o tapete de Magdalena se estende para além de sua própria vida. E as linhas entre as mãos dela são as linhas entre as mãos de muitas tecendo seu próprio destino. Em muitos momentos, inclusive, lembra a metáfora da colcha de retalhos utilizada em “Alias Grace, livro de Margaret Atwood. Magdalena é a mulher que vive, trabalha, enfrenta a violência, a dor e o desejo da maternidade. Vive um amor entre altos e baixos. Há aquela parte da visão romântica que apresenta pelo olhar do outro. Mas há também aquela mais real, que nota as sutilezas que prenunciam a dor. E, então, sua trama vira do avesso. A partir daí vem não apenas a dor do abandono, mas a dor de não poder, apenas por suas mãos, continuar.

Por fim, é uma surpresa o livro de Juliana Leite. Não por dúvida quanto a potencialidade da literatura nacional, mas porque é diferente de quase tudo de forma positiva. Desse modo, “Entre as Mãos” sensibiliza não apenas pela história de Magdalena como qualquer mulher, mas pelas condições a que precisa se adaptar ao longo de sua vida. “Você vai ver. Vai funcionar. Tudo certo”.


Entre as mãosEntre as Mãos

Juliana Leite

256 páginas

Editora Record

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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