Black Earth Rising: um olhar da terra negra desperta

Black Earth Rising: um olhar da terra negra desperta

Assistir a esta obra-prima, estrelada por Michaela Coel e distribuída pela Netflix, é uma intensa experiência emocional que nos obriga a constantes reflexões explicitamente raciais. E não poderia ser diferente: além de protagonizada por uma mulher negra, a série trata dos – ainda atuais – desdobramentos internos e externos do conhecido massacre ruandense, responsável pela morte de (no mínimo) 800 mil nativos de etnia tutsi. Ao longo dos (pouquíssimos) oito episódios de “Black Earth Rising“, acompanhamos as consequências políticas e pessoais dessa mácula mundial em uma trama bela e intensamente construída que nos apresenta, como poucas fazem, os dois lados da história e, ainda, as diversas ramificações da mesma.

“Black Earth Rising” já se inicia com uma cena de conflito que parece – meio que erroneamente – resumir o restante da trama, bem como a nossa própria realidade histórica. A promotora britânica – e branca – oferecendo um olhar colonial e europeu sobre o massacre e o que ele significa, em contraponto ao olhar negro, aquele historicamente ignorado. Só que a proposta da série, além de trazer à tona a visão colonizada, é propor uma verdadeira discussão entre ambos os lados e dentre todos aqueles que gravitam ao redor destes. Vejamos.

Tanto a história viva e real, como pano de fundo, quanto a história da série em si, isto é, o enredo, estão profundamente conectados tanto entre si quanto aos personagens, sendo certo que ela, por si só, se mostra quase como uma personagem em separado.

Black Earth Rising
Cena de “Black Earth Rising” (Imagem: Netflix/divulgação)

O “tema” da série é o massacre ocorrido em Ruanda que assassinou centenas de ruandeses da etnia tutsi, em 1994, o qual ainda é fonte de debates e conflitos no país, sendo tal fato mostrado na trama. Apesar dos esforços, reais e fictícios, do afastamento da separação por etnias, é difícil a ignorância total dessa característica que, por tanto tempo, definiu as relações pessoais de Ruanda. E é essa assombrosa página da história do país que costura os diversos desdobramentos da série.

Logo no primeiro episódio, após um atentado que afetou diretamente não apenas sua vida pessoal, mas o desenvolvimento da condenação de um ex-general hutu (etnia responsável pelo massacre), Kate Ashby (Michaela Coel) é levada a se envolver na investigação de condutas criminosas ocorridas na época e no local do massacre. Ao longo da investigação, que abarca os sete episódios restantes de “Black Girl Rising”, a personagem é levada a situações extremas que denotam a ainda atual dualidade entre metrópoles e colônias.

Black Earth Rising
Cena de “Black Earth Rising” (Imagem: Netflix/divulgação)

Afinal, ao vermos as notícias mundiais hoje, percebemos como a busca pelo poder em forma de polos de influência territoriais nunca deixou de existir, apenas sendo modificada ao longo dos anos. E é justamente essa dualidade da política externa retratada que cria o clímax constante da trama.

As questões políticas são tratadas com um quê de mistério e suspense inquietante, apresentando um sentimento de sufocante ansiedade à telespectadora. A série, além do mais, não tem nenhum escrúpulo – assim como as personagens que dela participam – em fazer o que for necessário para a trama (e o mistério) fluir e atingir o ápice e a “resolução” final. A busca de Kate e dos demais pela solução tanto desse quebra-cabeça maior quanto de seus próprios individuais, é nervosa e confusa, bem como dinâmica e intrincada, mal nos dando tempo para pensarmos a fundo sobre um tema, tão logo outro já nos é apresentado.

Mesmo assim, “Black Girl Rising” consegue expor cada personagem – e suas peculiaridades – de forma primorosa, sabendo jogar com os detalhes que fazem cada pessoa ser ela mesma, e como isso se reflete e influência o restante da trama, principalmente quanto as personagens femininas.

Black Earth Rising
Atrizes de “Black Earth Rising” (Imagem: divulgação)

A atuação de Michaela Coel não deixa nada a desejar, sendo ela capaz de nos passar os diversos estados emocionais que uma pessoa na situação de Kate estaria com maestria. Além disso, as demais personagens femininas trazem uma gama imensa de distintas personalidades e visões de mundo, bem como de formas de atuação, que complementam a história de tal maneira que nos parece serem os episódios verdadeiras cenas reais gravadas.

O foco da trama, bem como a força que a faz andar é integralmente feminina, com pequenos pontos de participação – ou interferência – do sexo oposto. As personagens masculinas não passam de meros participantes na jornada – por vezes pessoal e por vezes global –  de Kate, não sendo permitido à nos esquecermos quem é a verdadeira protagonista da série e tampouco qual é seu objetivo final, mesmo que nebuloso. 

As relações interpessoais são, no fim das contas, as verdadeiras precursoras de todos os acontecimentos mundiais e a trama não se esforça para apresentá-las de forma contrária, felizmente. São por elas que os conflitos, sejam positivos ou negativos, se iniciam e é através delas que terminam.

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A tudo isso ainda se junta o profundo e ancestral fator emocional que a história retratada possui, sendo impossível não sentirmos algo de minimamente incômodo ao vermos a tratativa de tantas mortes e seus reflexos descasos. A história de Ruanda se mistura a realidades que vemos e vivemos até hoje, e que, infelizmente, parecem ainda tão longe de terminar.

É claro que todas as séries, e mídias, apresentam um ponto de vista que busca tocar a telespectadora, de forma a fazê-la se manter assistindo, mas, apesar do leve palpite, não esperávamos a profundidade do sentimento que “Black Girl Rising” nos traria. Curioso é, na verdade, que mesmo não tendo um final particularmente feliz, terminamos de assisti-la com uma estranha sensação de leveza. Ao longo dos oito episódios, somos bombardeadas com realidades difíceis de engolir, sendo uma retratação tão verossímil que assusta, apesar de necessária. Aqui, por certo, elas foram mostradas primorosamente.

A terra negra trazida pela produção é o destaque absoluto, funcionando ela como uma co-protagonista da trama. Ela se mostra através de Kate, Alice, Eunice etc, mas também através do povo de Ruanda e das histórias antigas, sendo estas mostradas de forma criativa através de animações desenhadas à mão (trabalho do Studio AKA). É ela a quem verdadeiramente se busca desenvolver e alcançar ao longo dos episódios e, para algumas das personagens, de toda um vida.

Black Earth Rising
Personagem de “Black Earth Rising” (Imagem: divulgação)

Black Earth Rising” é uma aula de história e relações internacionais, mas também da mais cruel e factual psicologia humana, trazendo discussões ainda pertinentes (e até incômodas e difíceis) do início ao fim. Não deve agradar a todos, sejamos realistas, já que não traz um fator de entretenimento farofa, isto é, neutro, mas essa nunca foi sua proposta. E, ousamos dizer, nem daqueles que escolherem assisti-la (e nem deveria).


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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