As mulheres esquecidas que pintaram os primeiros filmes coloridos à mão

As mulheres esquecidas que pintaram os primeiros filmes coloridos à mão

Filmes antigos são geralmente lembrados como sendo exclusivamente em preto e branco, totalmente diferentes da gama de cores oferecidas pelas televisões atuais em 4K. Mas na verdade, estima-se que 80 por cento dos primeiros filmes foram feitos em cores – tingidos, sombreados e coloridos com tinturas chamativas que produziam um efeito surreal e inquietante. As cores fortes e muitas vezes fantásticas usadas nos primeiros rolos de filme são frequentemente deixadas de fora de nossa história cinematográfica; ainda mais negligenciadas são as mulheres responsáveis por este trabalho deslumbrante.

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Scan de quadro de filme em nitrato do curta-metragem “Les Tulipes” (1907), do diretor Segundo de Chomón, divulgada no livro “Fantasia of Color in Early Cinema” (2015). Publicado por Eye/Amsterdam University Press. Cortesia dos editores e da Coleção Eye.

De fato o trabalho meticuloso e cansativo de colorir filmes à mão foi uma das primeiras carreiras na produção de filme disponíveis para mulheres artísticas e estas vieram a dominar a área na virada do século 20. Infelizmente sobraram apenas poucos registros desta experiência, apesar de que o trabalho dessas mulheres pode ser visto e apreciado devido à restauração e digitalização feita por arquivistas.

Sabe-se que mulheres que trabalharam nas oficinas de coloração de filmes passavam longos dias olhando em lupas poderosas enquanto aplicavam a tintura com pincéis tão finos quanto um pelo de camelo. Trabalhar em uma minúscula tela de 35 milímetros requeria precisão, especialmente porque uma pincelada mal colocada poderia arruinar o quadro inteiro. Algumas coloristas desenvolveram suas habilidades ao longo dos anos colorindo cartões postais e slides, tipos de trabalho que requeriam a mesma abundante atenção aos detalhes.

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Scan de quadro de filme em nitrato do curta-metragem “Excursion dans la lune” (1908), do diretor Segundo de Chomón, divulgada no livro “Fantasia of Color in Early Cinema” (2015). Publicado por Eye/Amsterdam University Press. Cortesia dos editores e da Coleção Eye.

Nos primórdios da coloração de filmes, as tinturas eram usadas para acentuar objetos importantes na cena. A maior parte da cena era deixada em preto e branco, sendo que tons eram adicionados a alguns detalhes: um chapéu azul, um vestido rosa, uma estrela amarela. As cores tornaram-se particularmente populares nos filmes de gênero da dança (curtas-metragens mostrando mulheres dançando, geralmente usando vestidos esvoaçantes). Nestes filmes, tons vívidos podiam ser interpretados de forma mais abstrata e as inconsistências inerentes à coloração à mão pareciam distrair menos. Logo, ver pelo menos três tons de cor tornou-se o padrão quando se assistia a qualquer um dos filmes populares como Serpentine Dance (Dança da Serpentina), popularizados por pessoas como Thomas Edison e os irmãos Lumière no final dos anos 1890.

No entanto, filmes coloridos podiam ser de 70 a 80 por cento mais caros que um filme em preto e branco e, quanto mais longo fosse o filme, mais caro o processo de coloração. Sendo assim, havia maior probabilidade de que os produtores pagassem para colorir filmes mais curtos. Pode-se dizer que os filmes coloridos valiam a pena: registros da época nos dizem que as plateias expressavam profunda alegria ao ver o mundo vibrante dos filmes coloridos. Como David Hulfish observou no jornal Nickelodeon em 1909, “O filme colorido é o mais interessante de todos… A plateia literalmente se endireita na cadeira e presta atenção quando a primeira cena de um filme colorido aparece na tela”.

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Irmãos Lumière, The Serpentine Dance, por volta de 1899.

Com a demanda crescente por profissionais na área de coloração de filmes, algumas mulheres até abriram seus próprios estúdios, onde empregavam muitas jovens pintoras. Uma dessas mulheres era a colorista francesa Elisabeth Thuillier, que era dona da oficina que trabalhou colorindo os filmes do renomado diretor Georges Méliès, de 1897 até 1912. Obsessivamente meticulosa, Thuillier passava as noites amostrando cores e planejando paletas. Durante o dia, sua equipe de 220 mulheres executava suas ideias, cobrindo delicadamente os filmes com corante de anilina solúvel em água. Cada mulher aplicava um tom por vez, em uma linha de montagem nas cores do acro-íris (um filme podia conter mais de 20 cores diferentes). A coloração do trabalho mais famosos de Méliès, Trip to the Moon (Viagem à Lua), de 1902, requereu a pintura de um total de 13375 quadros de filme.

Perceber que mulheres do final do século 14 foram prontamente aceitas em uma área é incomum. Não admira que uma das razões pelas quais elas foram contratadas foi por poderem ser empregadas por um valor menor. Uma oficina francesa administrada pelos irmãos Pathé nos anos de 1910 pagava a suas coloristas 21 francos por semana, um valor de seis francos maior do que a média paga a homens nas fábricas próximas, fazendo com que as mulheres ganhassem o apelido condescendente de poules de chez Pathé ou “as galinhas de Pathé”.

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Scan de quadro de filme em nitrato do curta-metragem “Les Tulipes” (1907), do diretor Segundo de Chomón, divulgada no livro “Fantasia of Color in Early Cinema” (2015). Publicado por Eye/Amsterdam University Press. Cortesia dos editores e da Coleção Eye.

A razão para se empregarem mulheres não era somente por serem mão de obra barata. O trabalho de coloração de filmes era visto como uma arte similar às tarefas domésticas de pintar vidros ou porcelana. Além disso, como o estudioso Joshua Yumibe escreveu em seu livro, de 2012, Movin Color (Cor em movimento), “historicamente, achava-se que as mulheres estavam em sintonia com as cores e eram mais suscetíveis a suas influências sensuais”. Em contraste, a forma tem sido associada com o masculino, com o intelectual. O debate sobre a cor versus a forma, que remonta a Aristóteles, chegou ao auge na França do final do século 17. Desde então muitos teóricos da estética, incluindo o filósofo do século 20 Theodor W. Adorno, postulam que a cor é realmente inferior à forma – uma cobertura superficial, uma indulgência feminina. Yumibe explica que a coloração dos filmes era igualmente vista como simples ornamentação, algo similar à aplicação de cosméticos faciais e, portanto, perfeitamente apropriada para mulheres.

Em parte devido à popularidade dos filmes com dançarinas, a cor também tornou-se muito associada a imagens de mulheres na tela. Há algo um pouco poético sobre mulheres artistas adornando dançarinas com cores vibrantes, dando vida e vigor ao mundo cinzento do cinema antigo, apesar das profundas limitações vivenciadas por mulheres em ambas as formas de arte.

Tradução do artigo escrito por Amanda Scherker, publicado originalmente no site Artsy, no dia 10 de abril de 2019.  Tradução por Maria Amélia Fleury Nogueira.

Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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