“Despertar” e a essência humana (des) construída por Octavia Butler

“Despertar” e a essência humana (des) construída por Octavia Butler

Octavia E. Butler, a grande dama da ficção científica, retorna à Editora Morro Branco com mais uma obra provedora de debates: “Despertar“, volume 1 da trilogia Xenogênese, aborda questões acerca de poder, gênero e humanidade, mesclando-se à tão instigante literatura especulativa da autora.

“O Despertar foi duro, como sempre. A maior das decepções. Era uma luta inspirar ar suficiente para respirar e afastar a angustiante sensação de asfixia. Lilith Iyapo estava deitada, ofegante, e tremia devido ao esforço. Seu coração batia depressa demais, alto demais. Ela se encolheu em posição fetal, impotente. A circulação começou a retornar a seus braços e pernas em ondulações de dor, breves e intensas.” (Pág. 11)

Lilith Iyapo acorda após passar 250 anos em animação suspensa e vê-se encarcerada em um lugar hostil. Tendo lampejos de lembranças de seu marido e filho, a protagonista tenta ao máximo livrar-se da cela em que está, porém, enfraquecida, precisa confiar em seus captores, criaturas humanoides denominadas Oankali, uma raça alienígena que, além de Lilith, capturou outros humanos após a extinção da vida humana na Terra.

No intuito de repovoar o planeta, os Oankali treinam os humanos para retornarem sob o comando da protagonista, que precisa, desde o início, lidar com a falta que sente de sua família, o medo e a insegurança comum à maioria de seus pares. Embarcando em uma jornada essencialmente interior, Lilith terá de desconstruir os próprios pensamentos sobre determinadas questões pontuadas pelos Oankali para que, assim, consiga decidir um rumo a ser seguido.

Despertar
Livro “Despertar”, volume 1 da trilogia Xenogênese (Foto: Laís Fernandes/Delirium Nerd)

Uma das partes mais admiráveis nesta obra de Octavia são justamente as interações que Lilith precisa travar, a fim de saber onde está, para onde vai e o que seus captores almejam para ela. Seu primeiro contato com Jdahya, seu guia Oankali, não é nada amigável: sentindo repulsa da espécie, que não possui face e, no lugar dos cabelos, grandes tentáculos, Lilith precisa engolir o próprio pavor para conseguir sair de seu confinamento e encarar o que a esperava lá fora, no exterior de sua cela.

Os Oankali, criaturas reservadas, mas solícitas, parecem esconder muitos segredos da protagonista; ela precisa acostumar-se ao diferente e ao desconforto que sua intuição alimenta para sobreviver à hierarquia estabelecida e dar início à missão de retorno ao seu planeta natal (mesmo contra sua própria vontade).

“Meu familiar não é masculino nem feminino. O nome de seu sexo é ooloi. Por ser ooloi, entende o seu corpo. No mundo de onde você vem havia um grande número de seres humanos mortos ou moribundos para estudar. Ooloi de nosso povo acabaram entendendo o que poderia ser normal ou anormal, possível ou impossível, para um corpo humano. Ooloi que estiveram no planeta ensinaram quem ficou aqui. Meu familiar estudou seu povo por grande parte de sua vida.” (Pág. 33)

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Despertar, Octavia Butler
Foto: Laís Fernandes/Delirium Nerd

Carregando o nome de uma personagem das mitologias mesopotâmica e babilônica, conhecida como a deusa das tempestades, como um demônio na crença judaica e, no islamismo, como a primeira mulher de Adão, Lilith também carrega a força da figura feminina tão discutida ao longo dos tempos por ser transgressora, além de mostrar – no subtexto de suas histórias – que é uma mulher determinada a extinguir qualquer tipo de opressão masculina a qual tentasse ser subjugada. A protagonista desconstrói muito do que foi para reviver ainda mais forte e tornar-se capaz de encontrar seu lugar em meio ao cenário catastrófico que seu planeta e as pessoas parecidas com ela se encontravam.

Outro ponto interessante na construção narrativa da autora é o lócus. A ambientação criada por Octavia, à primeira vista complicada de se imaginar, assim como a própria aparência das criaturas alienígenas, é diferente de muitas convenções da ficção científica; se, por um lado, temos tecnologias avançadas em outras obras, em “Despertar” a autora nos apresenta um espaço orgânico, que fornece aos seus habitantes os mantimentos necessários para sobreviverem e que se autorregula.

O fluxo narrativo de Octavia, feito em terceira pessoa, dá dimensão exata dos pensamentos e sentimentos de Lilith e por vezes nos causa desconforto em nos imaginarmos sob sua pele. Dedicado a inserir os personagens, o ambiente e as problemáticas principais da narrativa, a obra é composta por muitas descrições das raças ali presentes e também sobre o espaço em que estão inseridas.

Despertar
Foto: Laís Fernandes/Delirium Nerd

Ao final do livro, leitoras e leitores encontrarão questões muito interessantes que funcionam tanto como resgate do que acabou de ser lido quanto como um guia de possíveis discussões em grupo acerca das diversas camadas da obra. A edição da Morro Branco está linda, com capa emborrachada e miolo ilustrado com imagens de galáxias.

Despertar” nos faz refletir acerca da humanidade para além do corpo físico. Em suas diversas formas, opiniões e atitudes, tanto positivas quanto negativas, ser humano essencialmente é ser luta e saber resistir.


DespertarDespertar

Autora: Octavia E. Butler.

Editora Morro Branco

342 páginas

Tradutora: Heci Regina Candiani

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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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