Mulheres nos Quadrinhos: Powerpaola

Mulheres nos Quadrinhos: Powerpaola

“Isso deve ser um vírus tropical”. O vírus Powerpaola teve seu primeiro foco em Quito, Equador, quando, após inúmeras consultas, Hilda Gavíria foi diagnosticada com alguma espécie de doença que incha a barriga. Porém, mais tarde, Hilda descobriu estar grávida de Paola Gavíria, a Powerpaola, que segue viralizando seus trabalhos, principalmente na América Latina.

Marcada por relatos cotidianos, retratos de pessoas comuns e muitas narrativas sobre a própria vida, a multiartista nos faz recordar de Marjane Satrapi, iraniana conhecida por criar histórias em quadrinhos biográficas. Assim como Satrapi, Powerpaola caminhou por vários lugares do mundo: nasceu no Equador, cresceu na Colômbia, morou na França e na Austrália e, atualmente, mas não permanentemente, vive na Argentina. Outro ponto em comum entre as artistas é a adaptação de suas novelas gráficas mais conhecidas, “Persépolis (Satrapi) e “Vírus Tropical” (Powerpaola), para o cinema de animação.

Powerpaola
Animação “Vírus Tropical” (Imagem: reprodução)
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Sua vida, sua obra

Ler “Vírus Tropical”, primeira novela gráfica de Paola, é como observar às escondidas a vida da artista. Filha de um padre que abandonou o sacerdócio, de uma mãe que já havia feito ligadura de trompas e irmã de outras duas meninas mais velhas, a pequena Paola tentava encontrar seu lugar no mundo. Durante a narrativa, passamos por 11 capítulos de sua história: a família, a religião, as mulheres, o dinheiro, as despedidas, os amigos, a adolescência, Cáli, o trabalho, o amor e o adeus.

Transformar uma vida em, aproximadamente, 160 páginas de quadrinhos não é tarefa fácil. Porém, desde a infância, Paola Gavíria já demonstrava afinidade com o lápis quando o assunto era ilustrar temas cotidianos. Durante uma visita do Papa João Paulo II ao Equador, um jornal publicou um concurso que escolheria a melhor ilustração sobre o país e quem vencesse entregaria pessoalmente seu desenho ao pontífice. Paola recebe por seu pai a notícia de que ela havia ganhado a competição, porém alguns dias antes de entregar a obra ao religioso, o Sr. Gaviria vai embora de casa.

Episódio do desenho para o Papa (Imagem: reprodução)

Dali em diante, a casa fica unicamente nas mãos das mulheres dessa narrativa gráfica. A mãe precisa lidar com a mudança brusca de cenário e encontra um trabalho para poder cuidar das três filhas até que elas possam alcançar a independência. Para isso, a família também conta com ajuda de outra figura feminina, Chavela, moça que auxilia nas tarefas domésticas e na criação das meninas. Em uma entrevista à Almagro Revista, Powerpaola relata como é viver rodeada por mulheres fortes e diferentes:

“Estudei em um colégio de mulheres durante toda a minha infância. Além disso, minha família está cheia de mulheres, tenho muitas amigas e sempre me atraíram as mulheres que têm conversas profundas, que não giram em torno dos homens. Temos outros interesses e talvez eu sempre tenha me rodeado de mulheres assim. As mulheres sempre me pareceram interessantes e sempre o que eu vejo na televisão, nos livros é apenas um tipo de mulher. Mas, se existem milhares de mulheres e de maneiras de ser, não é só um tipo. Nem todas pensamos igual ou gostamos das mesmas coisas. Que delícia que todas sejamos distintas!”.

Powerpaola
Powerpaola (Foto: Juan Cristobal Cobo)

É difícil desvencilhar a autora de suas obras, ainda mais quando o biografismo é tão forte. Em linhas gerais, “Vírus Tropical” apresenta o amadurecimento de Paola Gavíria, de menina à artista. Porém, não é só isso. Powerpaola é mestre em detalhar paisagens e comportamentos cotidianos, emergindo o leitor na esfera sociocultural dos países em que habitou. A quadrinista transforma fatos pessoais em experiências amplas, que podem ser assimiladas por famílias latinoamericanas, como o processo de emigração, a xenofobia, o deslocamento do sustento do lar para as mãos da mulher, a dificuldade financeira, a forte presença das crendices populares e muitos outros aspectos.

“Geralmente, vem primeiro a ideia de trabalhar sobre algo específico, uma ideia que insiste, um conceito, uma metáfora e trato de buscar em minha própria vida essa experiência. Mais que contar minhas vivências, trato de comunicar esse momento. Uso minha vida como material de referência, mas o mais importante é a história que quero comunicar. Existem coisas que quero contar e outras não, cada um sabe seus próprios limites”.

Mudança de perspectiva

Antes de se dedicar aos quadrinhos, Powerpaola se voltou aos estudos de Expressão Artística, curso que mesclava teatro, música, artes plásticas, cinema e suas relações. Essa escolha abriu seus caminhos para as Artes Plásticas, graduação que a levou para uma residência artística na França como pintora e onde teve sua primeira exposição individual. Também foi em solo francês que a artista foi batizada como “Powerpaola”.

Paola foi à festa de aniversário do namorado francês que conheceu na Colômbia. Recém-chegada à França, ela ainda não tinha amigos, não conhecia a cartografia da cidade e nem dominava o idioma muito bem. Somado a isso, ela vê o namorado beijando outra garota na festa. Paola toma o metrô para voltar à moradia da residência artística, mas pega a linha errada em uma noite ruim. Perdida e em lágrimas no transporte público, ela  escuta um homem perguntando como se chamava: “Paola”, respondeu. Porém, o estranho sempre entendia “Power” e a artista resolveu escrever em um papel o próprio nome, não adiantou.

No dia seguinte, customizou sua mochila com novas cores e com as letras que formam “Powerpaola”, largou o ex e comprou um par de patins. A mudança veio também no trabalho; Paola se sentia muito acomodada entre os pincéis e passou a andar por Paris ilustrando em uma caderneta o que via e ouvia pela cidade. Durante sua primeira exposição individual, a galerista se mostrou mais interessada naquele caderno do que nas pinturas.

Powerpaola
Imagem: flickr Powerpaola

O clique interno da mudança de perspectiva aconteceu. Dedicar-se unicamente às artes plásticas não era o suficiente para sobreviver e Paola complementava sua renda com outros trabalhos, como babá e cuidadora de idosos. A partir do momento em que percebeu um caminho no desenho, passou a aceitar encomendas de ilustrações para revistas. Dali para os quadrinhos era apenas um passo.

Coletividade e performance

Em 2008, Powerpaola e Anna Bas Backer, ilustradora holandesa, fundaram o coletivo internacional de mulheres quadrinistas, “Chicks on Comics”. No início, a dupla pensava em reunir artistas gráficas com o objetivo de explorar os recursos narrativos das histórias em quadrinhos como meio de comunicação e intercâmbio entre artistas e leitores de vários países. Com o passar do tempo, a dupla se tornou um grupo de cartunistas que refletem sobre suas vivências, questões de gênero, o fazer quadrinhos na contemporaneidade, entre outros temas.

Powerpaola
Surgimento do coletivo Chicks on Comics (Imagem: reprodução)

Atualmente, o coletivo é composto por sete artistas: Joris (Holanda), Caro Chinaski, Clara Lagos, Delius (Argentina), Pixin Weng (Singapura), Zane Zlemeša (Letônia) e Powerpaola (Equador). Outras ilustradoras já passaram pelo projeto, incluindo uma brasileira, Fabiane “Chiquinha” Langona, que permaneceu no coletivo até 2017. Os quadrinhos dessa união podem ser encontrados no Tumblrpor lá, os integrantes publicam regularmente histórias em torno de um tema, onde cada quadrinho postado é uma resposta ao anterior, formando uma narrativa construída a sete mãos e mentes.

“Os coletivos são uma maneira de criar comunidade, resistir a tanta individualidade, aprender a compartilhar, valorizar e escutar outros pontos de vista. Nós aprendemos muito durante esses 11 anos, nós nos vimos crescer, algumas tiveram filhos, nós nos separamos, algumas saíram, outras retornaram e novas integrantes fizeram parte disso. Na verdade, não somos mais um coletivo de mulheres, Anna agora se chama Joris e é um homem.”

Sem deixar as artes plásticas de lado, em 2010 Powepaola uniu performance e ilustração no premiado projeto “En Vitrina”, realizado em Lugar a Dudas (Cáli, Colombia). A artista passou 14 dias dentro de uma vitrine desenhando o que aparecia em seu campo de visão. Posteriormente, foi feita uma pequena edição das ilustrações criadas por Paola no período. “Foi ótimo ter a vida enquadrada. A princípio parece repetitivo, mas então você percebe que tudo está mudando constantemente e que é impossível capturar esse presente”.

Powerpaola
Powerpaola “En Vitrina” (Imagem: Flickr Lugar a Dudas)

¿Y en portugués?

Além da novela gráfica “Vírus Tropical”, Powerpaola já publicou “QP: Éramos Nosotros”, “Todo va a estar bien”, “Por Dentro Inside”, “Diario de Powerpaola” e “Nos Vamos”. Atualmente, apenas as duas primeiras obras estão traduzidas para o português. “Vírus Tropical” está publicado pela Nemo e foca na transformação de Powerpaola, sua busca por espaço e a construção de sua identidade, sem deixar de lado as personagens que encontrou nesse processo. “QP”, editado pela Lote 42, já traz o recorte de uma Paola adulta, mostrando as aventuras e desventuras vividas em um relacionamento entre ela, “P”, e seu companheiro “Q”.

Em suas andanças pelo mundo, Powerpaola enxerga múltiplas diferenças, que vão além do traço, nas produções quadrinísticas feitas por mulheres. Para ela, o ponto mais interessante dessa diversidade é a ausência de um discurso único. “Existem mulheres que caem no lugar comum e em estereótipos sociais de como deve ser uma mulher, para mim essas são as mais entediantes. Por outro lado, existem algumas que se revelam e se mostram cheias de desejo, com suas particularidades, com outras narrativas; algumas nem te fazem questionar se aquilo é feito por uma mulher ou por um homem. Não há apenas um discurso e isso é o mais interessante”.

Powerpaola visitou o Brasil em 2018, durante o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), sediado em Belo Horizonte/MG. Além de autografar suas publicações, a artista também fez retratos de algumas pessoas que visitaram o estande da Lote 42. Seu olhar sobre a produção de quadrinhos feitas por mulheres brasileiras é positiva: “No Brasil vejo muita experimentação com o texto e a imagem, há uma fuga da ideia de quadrinho que é o que mais me interessa, sair do estabelecido. Como Puiupo, Mariana Parixo e Juliana Russo. Outras que amo, que continuam a preservar a linguagem dos quadrinhos, e têm uma força no seu traço e poder de expressão, como Chiquinha e Cynthia B”.

Se o espanhol não for impedimento, é possível acompanhar a artista pelo Instagram, pelo Flickr ou pelo blog do coletivo “Chicks on Comics”. Quando perguntada sobre a possibilidade de mais traduções de seus trabalhos para o português, Powepaola anseia que elas aconteçam, assim como seus fãs.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

Rafaella Rodinistzky é graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC Minas e atualmente cursa Edição na Faculdade de Letras da UFMG. Participou do "Zine XXX", contribuiu com a "Revista Farpa" e foi assistente de produção da "Faísca - Mercado Gráfico". Você tem um momento para ouvir a palavra dos fanzines?
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