A Gente Se Vê Ontem: ficção científica e protagonismo negro

A Gente Se Vê Ontem: ficção científica e protagonismo negro

A Gente Se Vê Ontem (See You Yesterday, no título original) é um filme da Netflix, produzido por Spike Lee e dirigido por Stefon Bristol. O filme é baseado em um curta criado por Bristol e Fredrica Bailey.

CJ Walker (Eden Duncan-Smith) é uma adolescente muito inteligente que, junto com seu amigo Sebastian (Dante Crichlow), está trabalhando em uma máquina do tempo que será o passaporte dos dois para a faculdade, quando for apresentada na feira de ciências da escola. Os dois adolescentes são muito inteligentes e formam uma dupla de gênios que tem um futuro brilhante pela frente. No entanto, tudo muda quando o irmão de CJ, Calvin (Astro), é assassinado pela polícia e a dupla resolve usar a sua invenção para voltar no tempo e tentar salvar a vida do jovem.

A Gente Se Vê Ontem
Cena de “A Gente Se Vê Ontem” (Imagem: divulgação/Netflix)

Em “A Gente se Vê Ontem”, a viagem no tempo, um tema recorrente no gênero de ficção científica, é protagonizado por pessoas negras e não são apenas pessoas que são jogadas no passado, sem entender muito bem como funciona o processo cientificamente falando, como a protagonista Claire, da sérieOutlander“, ou Marty McFly, da trilogia “De Volta Para o Futuro“. Eles também não têm superpoderes para executar essa viagem; a única coisa que faz com eles consigam essa façanha é a inteligência dos dois – eles criam uma máquina do tempo porque sabem que são capazes disso. 

Uma parte interessante de “A Gente Se Vê Ontem” são os easter eggs para quem é fã do gênero viagem no tempo e principalmente da trilogia “De Volta Para o Futuro“.

Obras de ficção com viajantes do tempo negros são raras. Podemos citar o filme de 1998, “Uma Cavaleira em Camelot“, protagonizado por Whoopi Goldberg, e o livro “Kindred: Laços de Sangue“, de Octavia Butler; e de fato: voltar ao passado como uma pessoa negra pode ser muito perigoso. Imagine voltar para a época da escravidão ou no período de luta pelos direitos civis na década de 1960. Mas em “A Gente Se Vê Ontem” o período de tempo que os protagonistas podem voltar ainda é curto, de poucos dias ou semanas, e ainda assim ainda se mostra fatal para pessoas negras. O ontem e o hoje ainda são tão perigosos quanto o passado.

A Gente Se Vê Ontem
Cena de “A Gente Se Vê Ontem” (Imagem: divulgação/Netflix)
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Além de mostrar personagens negros como cientistas pioneiros e com total conhecimento do que estão fazendo, o filme também usa essa possibilidade de voltar ao passado para questionar a violência policial, que mata dezenas de pessoas negras no país e motivou o surgimento do movimento Black Lives Matter.

Diante de tantos casos de violência racial, que poderiam ter sido evitados, o que você faria se pudesse voltar no tempo para impedi-los? Esse é o questionamento que o filme faz. Em vez de usar a sua máquina do tempo em proveito próprio, os dois têm um bom motivo para tentar mudar o passado.

Outro ponto importante é a amizade e os núcleos familiares de CJ e Sebastian. Os dois são bons amigos e confiam um no outro como irmãos; já Calvin, o irmão de CJ, assume o papel de “homem da casa”, mas não tem ambição em ter um futuro para si, ele aposta apenas no futuro dela. Ele não tem perspectiva de avançar na vida e essa ausência de ambição para ele é vista como normal, já que para algumas pessoas negras se vive um dia de cada vez em meio às dificuldades que elas enfrentam.

A Gente Se Vê Ontem
CJ e Sebastian em “A Gente Se Vê Ontem” (Imagem: divulgação/Netflix)

Ao mesmo tempo em que é importante naturalizar as diversas existências de pessoas negras, esse contraste pode ser visto no impacto que a morte de Calvin causa na protagonista e em como isso afeta o seu futuro. Se os dois não podem estar juntos no futuro, qual é o sentido de continuar lutando? Essa questão faz com que a história tome rumos diferentes quanto ao que pode ou não ser alterado no passado.

É claro que o filme tem alguns pontos que poderiam ter sido melhor trabalhados, como a personalidade explosiva de CJ, que cai no clichê da mulher negra raivosa, além de outros estereótipos ligados a mulheres negras. Ainda que ela seja uma garota genial, esse comportamento acaba lhe causando alguns problemas ao longo da trama. 

A Gente Se Vê Ontem” é eficaz em usar um tema como a viagem no tempo para criticar a violência policial e o racismo de uma forma diferente e ao mostrar o protagonismo de jovens negros na ficção científica. É interessante ver como uma mulher negra pode usar a sua inteligência para impedir que aqueles que ela ama sofram, mas ao mesmo tempo é de se fazer pensar que ela precise revisitar o passado diversas vezes para poder garantir que as mesmas pessoas que ela ama tenham um futuro.


Edição realizada por Gabriela Prado.

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Formada em artes visuais e apaixonada por arte, música, livros e HQs. Atualmente pesquisa sobre mulheres negras no rock. Seu site é o Sopa Alternativa.
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