A representatividade feminina na série “Hannibal”

A representatividade feminina na série “Hannibal”

A série Hannibal foi ao ar pela NBC entre os anos de 2013 e 2015 e conquistou um número considerável de fãs, que cultivam até hoje a esperança de uma nova temporada após seu cancelamento precoce. A história, que se passa antes dos eventos do filme vencedor do Oscar “O Silêncio dos Inocentes, faz uma releitura da obra de Thomas Harris, adaptada diversas vezes para o mundo do audiovisual, mas nunca antes com a graça e a peculiaridade do olhar de Bryan Fuller

Hannibal
Elenco de “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

Apesar da força de Clarice Starling nos filmes O Silêncio dos Inocentes (1991) e Hannibal (2001), tanto os livros escritos por Harris quanto as adaptações cinematográficas nunca contaram com uma presença feminina marcante. Os personagens eram em sua grande maioria homens brancos e essa situação de disparidade começa a mudar quando Fuller decide não apenas inserir mulheres no universo da série, como também alterar o gênero de alguns personagens no momento da adaptação. 

Sexualidade não estereotipada em Hannibal

O primeiro exemplo desse caso é Alana Bloom (Caroline Dhavernas), originalmente o doutor Bloom, apenas citado no filme Dragão Vermelho. A psiquiatra desempenha um papel importante na série desde o princípio. Através das temporadas, ela faz uma jornada que vai de interesse amoroso de um dos protagonistas para a mulher que segura todas as chaves que mantêm Hannibal Lecter longe do mundo exterior e preso em sua cela. 

Alana (Caroline Dhavernas) e Margot (Katharine Isabelle)
Alana (Caroline Dhavernas) e Margot (Katharine Isabelle) em “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

Alana é uma mulher bissexual e a forma como sua sexualidade e seu envolvimento com Margot Verger (Katharine Isabelle) são abordados é livre de estereótipos. A cena de sexo das duas personagens não é criada com o intuito de fetichizá-las e possui até mesmo uma preocupação estética, com uma montagem caleidoscópica. Na verdade, a série consegue abordar todo seu erotismo de forma saudável. 

Alana e Margot são mais fortes juntas, elas lutam contra seus monstros lado a lado e superam suas dores uma com a ajuda da outra. Mesmo nos momentos em que a vida da doutora Bloom estava em risco, Fuller optou por não matar seus personagens LGBTQ+ e sim dar à Alana, à sua esposa e ao seu filho um final feliz. Margot na verdade vem de um cenário de abuso familiar, por conta da insanidade e sadismo de seu irmão Mason.

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Ela é inserida na história justamente buscando apoio psiquiátrico com Hannibal (que a incentiva veemente a assassinar o irmão). Apesar do envolvimento com o Will Graham, ela nunca simbolizou um interesse amoroso de nenhum dos dois protagonistas e seu arco é imensamente maior do que sua breve relação com Will. Diferente da história original, na série Margot e Alana matam Mason, ficando com sua fortuna e se protegendo para sempre das ameaças do homem. 

O fortalecimento das personagens através de suas profissões e astúcia

Outra personagem feminina da série que passou por mudanças na adaptação foi Freddie Lounds (Lara Jean Chorostecki). Originalmente um homem, em Hannibal a jornalista é uma mulher que, embora produza um material extremamente sensacionalista, cativa justamente por representar um arco interessante na história. Ela irrita o FBI com suas matérias inconvenientes e não recua mesmo nas situações mais assustadoras possíveis. 

Hannibal
Freddie e Hannibal em “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

Na história original, Freddie sofria de forma violenta nas mãos do assassino Francis Dolarhyde. Na série, a personagem que passa pelas torturas foi Chilton e um dos motivos foi que o diretor não se sentiu confortável em ver uma mulher passando por aquelas situações. Apesar do conteúdo brutal e marcante que caracteriza Hannibal, há uma preocupação constante com a forma como as coisas acontecem.

Em um mundo onde a violência contra a mulher é tão constante, evitar que o público vibre com mulheres sendo cruelmente assassinadas também é um cuidado válido, especialmente quando se trata de uma produção audiovisual. Essa é uma das escolhas que atestam o equilíbrio entre a abordagem de conteúdos violentos e sombrios com a responsabilidade na hora de produzir arte ー que, de uma forma ou de outra, estabelece alguma influência em seus espectadores.

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Bedelia (Gillian Anderson)
Bedelia (Gillian Anderson) em “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

Bedelia Du Maurier (Gillian Anderson) é definitivamente uma das melhores personagens da série. A psiquiatra de Hannibal é uma mulher irônica, inteligente, elegante e que proporciona alguns dos melhores diálogos da série. Mostrando-se tão manipuladora e capaz de conseguir obter vantagem das situações mais improváveis, Bedelia vai de uma ajuda em potencial para Will quando ele está preso, para fugitiva ao lado de Hannibal, aproveitando uma estadia macabra na Europa ao seu lado.

Quando confrontada, Bedelia consegue escapar das consequências de ter se aliado ao assassino. E embora seu final na série seja assustador, repleto de agonia e mistério, fica subentendido seu retorno ー ou, ao menos, sua luta pela sobrevivência. A importância de Bedelia vai aumentando desde sua primeira aparição até o final da série. Sua influência e sua astúcia a fazem uma das personagens mais marcantes, que ajudam a construir a ambientação intelectual tão marcante na série. 

Sensibilidade e mistério nas mulheres de Hannibal

Abigail (Kacey Rohl)
Abigail (Kacey Rohl) em “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

Abigail Hobbs (Kacey Rohl) é uma menina doce e gentil, que representa uma filha tanto para Will Graham quanto para Hannibal Lecter. Sua jornada na série é trágica do princípio ao fim, embora por muitas vezes ela represente uma potencial sucessora do serial killer, com um entusiasmo diante de Hannibal, mesmo sabendo sobre o canibalismo inerente ao seu estilo de vida macabro – entusiasmo este que contrasta com sua doçura e sensibilidade. 

Chiyoh (Tao Okamoto)
Chiyoh (Tao Okamoto) em “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

Chiyoh (Tao Okamoto) é uma mulher misteriosa e introduzida através do arco que marca o início da terceira e última temporada da série e o único que explora um pouco do passado de Hannibal. O assassino atuou de alguma forma como mentor da personagem (embora alguns elementos de sua relação paternal com Abigail estejam presentes), mas o que ocorreu não fica claro. Chiyoh é uma das poucas mulheres não brancas da série, com potencial para contar uma história realmente interessante.

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Hannibal
Reba (Rutina Wesley) em “Hannibal” (Imagem: divulgação/NBC)

É nesse ponto que a tragédia real de Hannibal se faz clara. Reba McClane (Rutina Wesley), uma das poucas mulheres negras na série (e originalmente interpretada por mulheres brancas nos filmes), é explorada ao máximo possível. Características lhes são adicionadas e ela ganha subjetividades, personalidade como nunca antes, assim como Chiyoh, mas isso subitamente não parece o suficiente.

A série tem representatividade, mas em pouco tempo de tela

Com personagens como Jack Crawford e Alana Bloom, negros, mulheres e LGBTQ+ foram colocados em posições de poder, com uma representatividade saudável e sem estereótipos, mas seu tempo foi curto e a série se deparou com um final precoce, com muita história a ser contada. A disparidade de duração e audiência entre séries que possuem muita representatividade e séries que não possuem nenhuma fica clara exatamente em situações como o cancelamento de “Hannibal, que possui até hoje todos os elementos necessários para ser encarada como um clássico do terror (ambiente até hoje hostil para minorias). 

Enquanto obras de terror e suspense com representatividade positiva e performance ímpar não forem valorizadas (não apenas pelo público, mas pelas emissoras), as mulheres continuarão representando gritos agudos e histéricos, com nenhuma fala interessante ou arma na mão.

Hannibal acabou antes mesmo que os espectadores pudessem ser introduzidos à Clarice Starling e a máxima de Lecter se fez mais clara do que nunca; a tragédia não é morrer, mas ser desperdiçado. Todo o potencial genial e o trabalho positivo que estava presente, causando imersão absoluta em um universo sombrio e de um terror denso e primoroso, foi cortado no meio, como se, ironicamente, fosse mais uma das vítimas de Hannibal.

Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Formada em Jornalismo. Gosta muito de cinema, literatura e fotografia. Embora ame escrever, é péssima com informações biográficas.
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