Kate Bush: transgredindo o cenário musical há 40 anos

Kate Bush: transgredindo o cenário musical há 40 anos

“Queria ser uma garotinha novamente, meio selvagem, forte e livre”. A citação de “O Morro dos Ventos Uivantes“, de Emily Brontë, homenageada em uma de suas músicas mais famosas, encaixa bem para o que Kate Bush representa desde que lançou sua primeira música: meio selvagem, forte e livre.

Cantora, compositora e produtora britânica, Catherine “Kate” Bush tem 10 discos de estúdio e mais de 40 anos de uma carreira musical entre performances, clássicos e desafios. Sua trajetória e legado ajudaram a construir a identidade musical de diversas artistas que se inspiraram na sua personalidade única e peculiar para buscarem a própria individualidade.

Nascida em Bexleyheath, na região metropolitana de Londres, Inglaterra, em 30 de julho de 1958, Kate Bush teve formação musical desde muita nova e, aos 15 anos, já possuía mais de 100 composições próprias combinadas ao seu timbre diferente do que se escutava nos últimos anos. Com a ajuda dos irmãos, também músicos, ela gravou algumas demos caseiras e foi descoberta por um amigo da família, Ricky Hopper.

The Kick Inside

O talento da cantora nas demos foi tocado de casa em casa e chegou aos ouvidos de David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd – que na época ganhava o mundo com o disco “The Dark Side of The Moon”. David, então, financiou uma fita demo com mais qualidade e arranjou para que ela assinasse contrato com a gravadora EMI. Kate tinha apenas 16 anos.

Kate Bush, 1979
Kate Bush, 1979 (Foto: Mike Forster/ANL/REX/Shutterstock)

Nos primeiros dois anos da assinatura do contrato, Kate priorizava terminar seu tempo na escola com notas excelentes e não lançou álbum algum. Do outro lado, a EMI financiou a compra de um sintetizador e aulas de interpretação para a preparação da cantora. Gravado entre 1975 e 1977 e entre apresentações intimistas com a KT Bush Band por pubs londrinos, Kate Bush lançou seu primeiro álbum, “The Kick Inside“, em 1978.

O álbum se tornou avassalador com pouco tempo de lançamento. O alcance vocal peculiar e a qualidade do trabalho de produção de suas canções ganharam os ouvidos britânicos. Com “Wuthering Heights” – inspirada pelo livro homônimo de Emily Brontë antes mesmo que acabasse a leitura –, Kate se tornou a primeira mulher a estar no 1º lugar das paradas de sucesso no Reino Unido com uma composição própria.

Wuthering Heights
Capa do single de Wuthering Heights (Imagem: reprodução)

The Tour of Life

Com o sucesso do primeiro disco e interesse crescente do público pelo estilo bem produzido, teatral e único de Kate, os trabalhos para a produção de um segundo álbum foram acelerados e “Lionheart” foi lançado no mesmo ano por pressão da gravadora. Desde o início do processo, Bush se mostrou infeliz e desgostosa do pouco tempo de cuidado e produção. O disco foi o único de seus 10 a ficar de fora do top 5 do UK Album Charts.

Na mesma época, após recusar o convite de abrir os shows de Fletwood Mac, uma grande tour de apresentações começou a ser planejada. Conhecida inicialmente como Lionheart Tour ou Kate Bush Tour, a The Tour of Life teve início em 3 abril de 1979 e durou pouco mais de um mês.

Kate Bush no palco da The Tour of Life
Kate Bush no palco da The Tour of Life (Foto: reprodução)

A coreografia de palco, cada design e detalhe da produção tiveram participação da cantora. Kate Bush planejou que a turnê contasse uma história teatral no palco e que toda a produção conversasse com a narrativa. The Tour of Life ganhou reconhecimento pela qualidade técnica e inovação no uso de projeções visuais e sonoras e pela narrativa que Bush construía em quatro atos principais e 17 trocas de figurinos.

Completamente fora do padrão do que se ouvia nos palcos musicais à época, a recepção da crítica especializada e do público foi homogeneamente eufórica e positiva, categorizando a The Tour of Life como excepcional e solidificando o status de aclamação eufórica ao trabalho musical de Kate Bush.

A reclusão de Kate Bush

Apesar do sucesso bombástico, a turnê foi envolta em aspectos negativos pessoais para a cantora – e contou com uma morte na equipe técnica entre as datas de apresentações. Os holofotes e atenção vindos da “vida de celebridade” a incomodaram de forma imensurável. Depois, em entrevista, Kate disse que toda a rotina de correrias e ritmo intenso a afastavam da sua maior prioridade: produzir músicas de altíssima qualidade.

Kate Bush
Kate Bush em junho de 1978 (Foto: Koh Hasebe/Shinko Music/Getty Images)

Após o término da The Tour of Life, em 1979, Bush se afastou de turnês e shows, adentrando uma reclusão midiática intensa. Suas aparições aconteciam unicamente no lançamento de novos discos, com média de dois a três anos entre um e outro durante toda a década de 80. Cinco discos e uma coletânea musical seguiram esse padrão até 1993, quando Bush, estranhamente, afastou-se ainda mais de aparições após o lançamento de seu disco “The Red Shoes, dando início a 12 anos de hiato no lançamento de novas produções e de aparições públicas.

A reclusão e o afastamento midiático de Kate Bush no período aconteceram de tal forma que o nascimento de seu filho só foi publicizado dois anos depois, por acaso, quando um amigo deixou escapar em entrevista. O propósito de Kate de oferecer ao filho uma infância comum e natural, longe dos holofotes, apesar do vazamento, conseguiu ser mantido.

Kate Bush na década de 90
Kate Bush na década de 90 (Foto: reprodução)

Ataques da mídia

Durante seus longos períodos de reclusão, fosse o hiato de 12 anos no lançamento de novas produções entre 1993 e 2005 ou os quase pontuais três anos entre discos na década de 80, a mídia sempre especulava as razões para além do incômodo com os holofotes para o modo de vida de Kate Bush.

Frequentemente Kate era comparada à senhora Havisham, personagem de Charles Dickens em “Grandes Esperanças“, que vivia reclusa e amarga em uma mansão velha e solitária, ou, ainda, especulavam que Kate havia engordado e ficado completamente louca, que apenas questões ligadas à aparência lidas de forma negativa ou a perda da consciência plena justificariam o modo de vida.

Não importava que os períodos em que Bush submergia para focar-se em seu trabalho sempre resultassem em um disco de maior qualidade que o anterior, atingindo o ápice artístico a cada novo lançamento e dando cada vez mais uma personalidade única, estruturada e teatral às suas produções.

Kate Bush
Foto: reprodução

Aerial

Em 2005, quebrando o jejum de lançamentos e pouquíssimas entrevistas, Kate lança seu oitavo álbum de estúdio, “Aerial“, e rapidamente alcançou a marca de disco de platina, gerando furor na mídia e nos fãs que aguardavam ansiosamente o seu retorno. O álbum se tornou o mais aclamado criticamente até então, com louvações à sua mistura de elementos vocais, instrumentais e técnicos que combinavam um estilo de música único envolto em pegadas renascentistas e arranjos clássicos mesclados a guitarras elétricas, violões folk e batidas de reggae.

Kate Bush em 2005
Kate Bush em 2005 (Foto: reprodução)

Na época, Kate anunciou que não sentia que o álbum seria o seu último e, em 2011, foi lançado “Director’s Cut, uma compilação de regravações de faixas de seus discos anteriores, com novos arranjos, vocais e atualizações em letras. O disco também foi o primeiro lançado pelo selo próprio de gravadora criado pela cantora, o Fish People.

Seguiu-se, no mesmo ano, o lançamento do 10º álbum de estúdio da cantora, “50 Words for Snow“, inspirado em elementos folclóricos e lendas da cultura esquimó. O álbum possui uma faixa, Snowflake, escrita unicamente para a voz de seu filho, Albert, com tons de arranjos clássicos de coral. O disco foi recebido como uma “grande alegria” para os fãs que aguardavam Kate Bush em sua essência única e poderosa.

Before the Dawn

Após três anos do lançamento do último disco e 35 anos completamente longe do palco, Kate Bush anunciou em 2014 uma série de 15 shows especiais no Hammersmith Apollo, em Londres. Com ingressos esgotados em apenas 15 minutos de vendas, a série de shows foi chamada Before the Dawn e mais sete apresentações extras foram adicionadas ao calendário inicial.

Kate Bush em 2014
Kate Bush em 2014 (Foto: divulgação/katebush.com)

Before the Dawn foi considerada uma performance multimídia envolvendo dança, sombras, um mágico, animações 3D e fantoches junto às músicas e teatralidade já conhecidas da cantora. Na parte técnica, Bush envolveu em sua produção diversos nomes ligados ao teatro clássico, orquestras e óperas. Milhares de fãs se deslocaram de todo o mundo para prestigiar o seu retorno aos palcos e experienciar Kate Bush em sua primazia.

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O legado de Kate Bush

Björk, St. Vincent, Mitski, Florence Welch, Regina Spektor e outras inumeráveis artistas lidas como performáticas e produtoras das próprias músicas atualmente agradecem à Kate Bush por seu trabalho e a colocam como uma das maiores inspirações na busca por uma personalidade individual e por uma qualidade musical elevada e própria.

O legado de Kate Bush
(Foto: Guido Harari)

Nomeada comandante da Ordem do Império Britânico por seus serviços prestados à música em 2013, Bush entende a música como sua prioridade e como um ato contínuo de trabalho, estudo e dedicação se somam à sua personalidade única, dentro e fora do mundo musical, para torná-la uma potência musical inigualável. A forma como Kate Bush se mantém honesta e respeitosa às suas verdades sobre o que é produzir música e ao seu modo de vida também demonstram a potência de transgressão da sua figura.

Em um mundo musical e em uma época em que tão pouca liberdade de fato era oferecida às mulheres na mídia – “seja sempre bonita, esteja sempre aparecendo, lance músicas fáceis, sorria para as câmeras” –, a recusa de Kate a viver este modo de vida abriu caminho para além da qualidade altíssima de suas músicas. Ser meio selvagem, forte e livre consigo mesma, muito mais do que com o mundo, deu espaço para que outras também pudessem ser.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Jornalista, fotógrafa, feminista e lésbica cearense. Ariana torta e viciada em qualquer série, filme ou livro que tenha mulheres amando mulheres, tem voltado sua atuação à defesa dos direitos humanos e à luta por visibilidade e representatividade lésbica. Não dispensa uma pizza ou uma balinha de gengibre das que vendem no ônibus. Nas horas vagas se atreve a escrever ficção científica.
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