Trilogia do Antes: uma carta de Linklater ao amor e intimidade

Trilogia do Antes: uma carta de Linklater ao amor e intimidade

Tomado por um encontro que mudou sua vida, Richard Linklater prometeu, ainda durante o momento, que escreveria sobre aquela noite. Seis horas que mudaram sua vida: da meia noite às seis da manhã. Seis horas. Não muito mais que isso e estavam apaixonados. O amor não resistiu às provações da distância e a paixão se esvaiu. Linklater adentrou outro relacionamento e dele se foi, mas a memória daquele encontro ainda estava impregnada em sua mente. Então cumpriu o prometido e assim nascia a Trilogia do Antes, dedicada à Amy Lehrhaupt, como visto após os créditos de “Antes da Meia Noite”. Mas a história da vida real acaba numa nota triste: Amy faleceu em 1994, nunca chegando a ver o segundo filme, no qual Linklater tinha esperanças de, assim como em seu filme acontece com os personagens, reencontrá-la.

Trilogia do Antes – Capítulo I: Ligações

Ethan Hawke e Julie Delpy em Antes do Amanhecer
Ethan Hawke e Julie Delpy em “Antes do Amanhecer” (Imagem: reprodução/Warner BROS.)

Antes do Amanhecer” nasceu de um encontro por acaso e o amor de Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) foi eternizado numa trilogia conceituada, persistente na memória de seus amantes. Linklater escreveu não apenas sobre amor ou paixão, mas sobre conexão, a sede por quem se ama, mas uma sede de quem quer conhecer, compreender, de quem se maravilha e perde-se no mundo do outro. Com brilhantismo de execução, finda sua obra nos mostrando um capítulo mais à frente, que parece término (e pode ser): é a meia-noite dos amantes, quando de tanto conhecimento se pode ferir como ninguém, revirar os medos como ninguém e fazer doer o coração mais do que qualquer inimigo poderia fazê-lo. 

Tudo isso é feito com uso de verborragia. Conversas. Intimidade. Os diálogos entre a francesa e o escritor são viscerais. Tiram a pele da realidade e injetam fantasia em suas entranhas enquanto caminham entre dois mundos, que confundem a espectadora tamanha a habilidade dos atores em projetar na tela – e na fala – conversas que alguns de nós passam uma vida inteira tendo apenas com o imaginário. O trio Delpy, Hawke e Linklater tiram da poesia a licença da beleza e dos humanos a liberdade de ter inúmeras camadas. 

O romance é uma verdadeira ode ao diálogo; ao sentir, ao querer ser humano enquanto se compreende fora de sintonia com os moldes sociais preexistentes, repleto de ansiedades. Portanto, o sentimento de desvendar tais ansiedades e paranoias de seus personagens é natural quando todas as conversas são como escrever em seu diário e partilhar o que há de mais íntimo – e mais tolo. 

Entretanto, a tolice faz parte do amor e do viver e estes personagens aprendem juntos, entrelaçados por uma linha do tempo, um panorama de existência. Unidos, eles ganham a sabedoria de que certas coisas são imutáveis enquanto outras sucumbem num pressionar dos lábios. Seja na brisa que corta sua fala e leva a memória quanto no cotidiano que te leva a um caminho desconhecido, criando um trauma enquanto se livra de outro. O grande objeto de Linklater é a existência. Os sentimentos: indeléveis e corriqueiros.

Capítulo II: A Waltz for a Night

Poucas vezes testemunhamos uma personagem feminina como Celine em qualquer gênero cinematográfico. A metodologia do filme permite (e talvez tenha sido criada para) que seus protagonistas sejam explorados em suas minúcias, revirados ao avesso, vulneráveis ao extremo e repletos de um sentimentalismo que nos instiga por ser o tipo que reside apenas na intimidade. 

Celine é exposta de tal maneira que requer uma imersão em sua alma – e adentrar seu mundo é como presenciar um evento da natureza, uma tempestade em pleno dia ensolarado. Julie Delpy nos entrega uma mulher cuja condição humana é feroz e intocada. Ela segue um código de conduta próprio que vai aperfeiçoando ao longo do tempo, com o passar dos anos, com o peso das decepções e a ansiedade crônica desenvolvida pelo cenário negativo que o mundo ao seu redor apresenta. 

Julie Delpy como Celine na Trilogia Antes
Julie Delpy como Celine em “Antes do Amanhecer”, primeiro filme da Trilogia do Antes (Imagem: reprodução/Warner BROS.)

A ambientalista absorve os acontecimentos como se estivesse tudo arraigado em sua pele, causando certa euforia, ansiedade, uma preocupação que ela futuramente demonstra em todos os filmes da Trilogia do Antes. Sua própria profissão é completamente voltada para sua origem de tentar, de alguma forma, balancear o caminho desequilibrado que a humanidade caminha, mas apesar de tamanho sonho, a ativista não é perfeita e nem tenta ser.

Entretanto, a tentativa de Celine de compreender as variáveis do mundo é imutável em sua espinha dorsal, mas variante na agência: a princípio, age como independente, fora do sistema. Contudo, a passagem de tempo nos faz entender que suas experiências provavelmente fizeram-na descrer na capacidade de mudar as coisas por fora ou na compreensão do tamanho empenho do sistema em não se transformar e tomar ações contra aqueles que tentam ir contra si. 

Então, o auge disso é sua decisão em “Antes da Meia-Noite” (último filme da Trilogia do Antes) de ponderar aceitar um cargo no governo. Ela parece decidida a aceitar, mas nunca saberemos, visto que o filme termina bem antes de sua resolução; porém, apenas o fato de Celine cogitar entrar no governo é bem antagônico à Celine do primeiro filme, que jamais aceitaria tal trabalho – tal antagonismo não se rivaliza, apenas demonstra que a vida trouxe experiências dolorosamente transformadoras.

Assim, observar as mutações de Celine é ter carona na vida de alguém cuja energia atrai as pessoas de imediato – e, como dito numa passagem do desfecho da trilogia, ela é o segredo do casal. Celine pulsa, vive e navega buscando minimizar as dificuldades nas suas relações humanas, mas isso lhe confere certo grau de auto-imersão: ao não ter filtros, não mede o impacto de seus palavras.

Antes da Meia-Noite
Celine em “Antes da Meia-Noite” (Imagem: reprodução)
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Durante uma discussão, sua linha arguta de pensamento pode traçar um paralelo que muitos não conseguem – ou não querem – acompanhar e Julie Delpy irradia a cada minuto de projeção, conferindo um ar de sabedoria para a personagem, ou caso falte sabedoria, sobra paixão ou mesmo a crença fiel em cada palavra que está falando. A francesa argumenta buscando interligar os acontecimentos do dia a dia com uma linha cronológica histórica. Celine se apega à memórias, acontecimentos triviais; o cotidiano seu e do mundo é muito importante para ela. 

Voltando à palavra paixão, ela pode ser usada como alegoria para a atuação e o envolvimento de Delpy com a personagem: Celine é sua. Ela pertence à Celine. Quando unidas, você não consegue desviar os olhos daquela mulher em sua frente, vibrante, cheia de sonhos, sem medo de falar e sem medo de nada… até o ato final. O apogeu também é a queda e quando descobrimos as fraquezas dos nossos amados românticos, já desgastados pela vida. É uma personagem singular, pois infelizmente na época dos dois primeiros filmes, e até mesmo do terceiro (1994-2013), não se é permitido que as mulheres tenham tanta atenção e liberdade nas telonas, que o lado vulnerável não seja tratado como fraqueza.

Capítulo III: Murmúrios

Quando a vulnerabilidade vai para o centro da trama, quando cansada e abatida por seus medos, vemos Celine despida de sua usual energia para conceder a vez no palco para a fragilidade – e como ela é fascinante, angustiante, o quanto se entrega ao fato de que já não tem mais todas as respostas, de que o conformismo adentrou sua rotina, de que ser mãe a amedrontou solitariamente por anos antes de confessar a Jesse que instinto maternal é nada mais do que uma mentira e de que suas projeções românticas foram apenas ilusões (não que ela já não soubesse desse último). Por fim, podemos ver em seu rosto a progressão da ferida aberta que rasga e consome a personagem até que a exaustão lhe quebre em lágrimas. 

Celine e Jesse na Trilogia do Antes
Celine e Jesse em “Antes do Pôr do Sol” (Imagem: reprodução/Warner BROS.)

Na Trilogia do Antes, Linklater não tenta idealizar um relacionamento perfeito. Ele tenta – e consegue – nos entregar o que é a premissa de tudo, uma história de amor, e o amor, em sua intimidade. A narrativa não foge do cotidiano, do trabalho, da falta dele, das expectativas, das promessas quebradas, dos eventos inesperados, das tentações e das transformações. A linguagem do amor na Trilogia do Antes é sobre comunicação, perspectivas. Dentro dos diálogos, podemos vivenciar a beleza do apaixonar-se, do se entregar e do esvaziamento, quando a sintonia parece falhar, mas ainda está ali. Afinal de contas, eles conversam sobre os erros. Muito. 

E para o diálogo é preciso que exista, dentro de cada um, a mesma paixão que havia quando você se apaixonou ou uma paixão renovada. Não se mantém uma conversa longa tentando reparar erros com alguém que você já não sente mais nada. Jesse e Celine sentem. É devido mencionar, também, que o casal protagonista faz uso constante de uma linguagem hétero e cisnormativa em seus diálogos, principalmente Jesse, constantemente associando conceitos bem infelizes sobre o que significa “ser homem”.

Capítulo IV: Dois amantes e uma bela paisagem

Marcado para sempre entre as memoráveis histórias de romance narradas no cinema, o segredo para a longevidade da Trilogia do Antes talvez resida no encanto da sutileza. Não existe aqui um grande vilão, ameaça, grandes consequências ambiciosas ou mesmo personagens obstáculo que ganhem tempo de tela— existem problemas, sim, mas o foco nunca foge dos protagonistas. 

O longa investe em belas paisagens, em interiores não glamourosos, porém ricos em detalhes, e em viagens àquelas regiões da Europa onde os episódios se passam. Curiosamente, não apenas nós estamos conhecendo os lugares, mas também eles. Jesse e Celine são nossos guias nessa viagem, mas enquanto eles se apaixonam um pelo outro, nos apaixonamos pela história de nossos guias, e assim como eles são passageiros nos cenários dos filmes, somos passageiros na vida do casal, observando apenas determinados acontecimentos cruciais em suas vidas.

Antes do Pôr do Sol
Cena de “Antes do Pôr do Sol”, segundo filme da Trilogia do Antes (Imagem: reprodução/Warner BROS.)

A terceira locação, aliás, somado ao título “Antes da Meia-noite”, faz menção ao término e à tragédia. Assistir a ele cria expectativa em saber qual o destino daqueles que se conhecerem ainda aos 23 anos e agora já encontram-se nos 40. O que seria a meia-noite para eles? Para aquele casal outrora tão apaixonado? Recomeço? Fim? Talvez, no exato momento, em algum lugar no universo fictício Jesse tenha reconquistado por inteiro o coração de sua amada. 

Capítulo V: O Viajante do Tempo

Na Trilogia do Antes, Jesse brinca com as palavras, com sua habilidade inventiva. Quando o conhecemos, ele é apenas um jovem recém saído de um relacionamento à distância que se encanta pela beleza física de Celine quando a encontra no vagão de um trem indo para Viena, mas ao propor que passassem as próximas horas juntos, a fluidez com a qual a conversa deles evolui o faz se apaixonar. É o amor ao primeiro dia. 

Aos seus 20 e poucos anos, Jesse era um romântico, de conversa charmosa, mas não por isso deixava de ser seguro em seu intelecto ou pretensioso em suas visões. Nada disso um defeito, apenas uma característica humana acrescentada em doses moderadas. Linklater tem cuidado em suas obras para a despeito de ressaltar uma ou outra característica de personalidade e certificar-se de que os personagens continuam na esfera da humanidade, da verossimilhança. 

Quando chegamos em “Antes do Pôr do Sol”, a idade mais adulta traz consigo preocupações amplificadas, um maior peso nas costas, uma esposa, um filho. A literatura finalmente tomou conta de sua vida por completo após lançar um livro de sucesso inspirado no seu encontro em Viena, nove anos atrás. Celine e Jesse passaram anos e anos sem se ver e com isso os anos carregaram-se de novos mistérios, paixão a ser revivida e memórias a serem reviradas, mas agora existem consequências para seus atos, consequências para a impulsividade de Jesse, que acaba perdendo a guarda do filho por conta, lá atrás, da paixão despertada ao ver Celine cantar. 

Trilogia do Antes
Celine em “Antes do Pôr do Sol” (Gif: reprodução)

Jesse é um intelectual propenso a conduzir suas palavras habilmente, de modo a mudar as conversas para seu lado. Seu comportamento também é antiquadamente “macho” por dentro, algo que Celine se dirige no terceiro filme e ele mesmo brinca criando uma persona que aparece no filme. Este, porém, é um atributo nada charmoso, principalmente quando somado à necessidade de fazer piadas constrangedoras ou de um comportamento que chega a objetificar mulheres – ou a si mesmo – como em seu livro, quando se autorretrata sendo um inesquecível amante na cama, o que se revela uma mentira. Talvez tudo isso exista em sua personalidade para contrastar com o lado que chama Celine de seu primeiro amor, que tenta fazê-la sorrir o tempo inteiro, como se fosse uma compensação, algo que existe na esfera da vida real. 

Trilogia do Antes – Capítulo VI: Celine e Jesse

Estar nesse espectro de flerte com acontecimentos de nosso mundo significa que tanto Jesse quanto Celine são suscetíveis a mudanças baseadas em experiências, variáveis de humor, arrogância, tristeza, alegria, êxtase e amor— uma vez onde tudo aqui volta para o amor e sua variante de interpretações —, e se é permitida a licença, há de se dizer que a Trilogia do Antes é uma carta de amor à intimidade. O fascínio que as pequenas frases e perguntas espontâneas exercem se prolonga no decorrer que elas não param. 

Ethan e Julie parecem absortos em algum universo entre este mundo e o outro, onde apenas eles existem. Eles, Celine e Jesse. Suas perguntas, suas risadas, seus flertes, seus devaneios, planos e sorrisos. Os atores também são responsáveis por diversas falas desde o primeiro filme, além de exercerem o cargo de roteiristas a partir de “Antes do Pôr do Sol”.

Então, muito da pulsante criatividade que seus personagens emanam lhes é devida. O sopro que dá vida aos amantes parte da química e naturalidade com a qual podem agir na companhia um do outro e brincar com a autonomia que possuem sobre aqueles que interpretam, ainda que em exaustivos ensaios da mesma cena. Linklater revelou em entrevista que os três (ele, Julie e Ethan) buscavam um certo grau de conexão entre os personagens que os fizeram mudar várias vezes seus gestos ou fazer várias tomadas da mesma cena, até sentirem que aquela era a correta para o casal. 

Muito disso é visto também em gestos, no olhar, na expressão corporal, no torcer dos lábios e no sorriso diante das câmeras. Celine, Jesse e sua história, não à toa, conseguiram atravessar três décadas e atingir o ápice em seu ato de despedida, o longa mais conceituado dentre todos: a nota mais alta e o mais maduro.

Antes da Meia-Noite
Cena de “Antes da Meia-Noite”, que finaliza a Trilogia do Antes (Imagem: reprodução/Warner BROS.)

A meia-noite entre eles é o desgaste visto aqui fora, no mundo tátil, e ele dá uma maior profundidade ao ciclo dos relacionamentos, sendo responsável pela definitiva sensação de realidade que o relacionamento passa. A cena no hotel nos mostra que atingiram um estado onde machucar é o que mais sabem fazer. Mas na ficção analisada, ao fim, eles parecem tentar. Mesmo com o golpe da realidade caindo em seus ombros ou a amargura de não ter certeza sobre o amanhã, Jesse e Celine parecem tentar, e mesmo que terminassem, a sensação para o público, após todo o terceiro filme, não seria de presenciar um absurdo, pois ao contrário de outros romances, os conhecemos em seu íntimo. O bom e o ruim. 

Se Celine cantará novamente “A Waltz for a Night” (composta e cantada realmente por Julie Delpy), se Jesse reconquistará sua confiança e se o viajante no tempo estava certo, podemos tirar a liberdade de imaginar antes que um próximo filme exista, se algum dia existir. O tempo vai nos dizer, enquanto a memória vai nos lembrar de dois jovens apaixonados que o destino juntou por acaso em um trem para Viena. 

Antes do Amanhecer


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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