“A Fazenda Africana” e o perigo da narrativa única

“A Fazenda Africana” e o perigo da narrativa única

Curiosamente, ao iniciarmos a leitura de “A Fazenda Africana”, da escritora dinamarquesa Karen Blixen, não esperávamos o desconforto tão grande com a visão colonial do continente africano apresentada pela autora. Pela época da primeira edição do livro, 1937, deveríamos ter imaginado que a perspectiva a ser apresentada seria uma que não traz – ou permite – que a história de uma fazenda africana seja contada pelos olhos e palavras de seus nativos negros.

Toda a obra, nessa oportunidade publicada e cedida a nós pela editora SESI-SP, pode ser descrita como um diário de memórias da própria autora, visto que trata-se de relatos não-ficcionais da mesma sobre os 17 anos (1914 – 1931) que viveu no Quênia, no qual nos conta suas experiências como estrangeira em uma terra que foi posta à sua disposição em decorrência da partilha imperialista dos territórios do continente. As aventuras da autora, descritas com entusiasmo e detalhamento, conseguem nos transportar e nos fazer imaginar em vivas cores o que pode ter sido a vivência da época.

O evidente talento de Blixen para contar histórias e para descrever com incrível atenção e precisão as mais diversas situações, resulta na rica e fácil literatura apresentada em “A Fazenda Africana“. Na verdade, parece que a história está sendo passada para nós ao vivo e por uma pessoa conhecida, tamanha é a destreza da autora. A facilidade de compreensão, entretanto, não impede que a narrativa seja percebida por nós como, na falta de palavreado melhor, colonialista.

A evidente influência colonialista da autora

Como já dissemos, tal característica de “A Fazenda Africana“, tendo em vista a época e por quem foi escrita, não é particularmente surpreendente, mas mesmo assim nos causa um incômodo, já que, com toda a filosofia que carregamos e o período no qual vivemos, é difícil ver uma narrativa claramente unilateral e não sentir nada.

O histórico colonialista sobre o qual a narrativa é relembrada e contada é interessante, é claro, mas ainda é difícil engoli-lo. Acontece que os nativos negros sobre os quais Blixen escreve – e conviveu – são retratados (por óbvio) através de sua percepção branca europeia elitizada e imperialista. Ela mesmo nos descreve, diversas vezes, como o comportamento dos nativos é, para ela, peculiar e misterioso, causando estranheza o modo como eles não se mostram imediatamente abertos a suas tentativas de aproximação.

“[Falando sobre os nativos] Não foi fácil conhecê-los. Eles eram muito atentos e esquivos; quando assustados, no mesmo instante refugiavam-se em seu mundo impenetrável (…)”

– Trecho de “A Fazenda Africana”

A percepção da autora sobre os modos nativos demonstra, ainda, o claro descaso europeu para culturas que consideram, por si mesmas, inferiores. Afinal, uma das justificativas e motivações do colonialismo foi a (pseudo) salvação espiritual dos povos estranhos à filosofia cristã, sendo tal motivo utilizado avidamente pelos europeus ao longo dos anos de imperialismo plenamente legal – estando uma forma dele presente até hoje.

“Todos os nativos exibem um acentuado laivo de malícia, uma aguda satisfação diante do que não dá certo, o que em si é ofensivo e revoltante para os europeus”

– Trecho de “A Fazenda Africana”

É impossível, dessa forma, ler o livro e não lembrar da denúncia feita por Chimamanda Ngozi Adichie sobre os perigos da narrativa única. A questão, conforme evidenciada pela autora nigeriana, se trata de apenas aceitar e buscar narrativas que apresentem sempre um único (e branco, ocidental ou europeu) ponto de vista, o qual muitas vezes exclui e ignora as demais vivência em seu próprio favor.

Não é possível, dessa forma, que nós – como leitoras críticas – ignoremos o fato que a narrativa apresenta uma única visão. O problema não é o fato da autora apresentar a sua visão, mas buscamos aqui chamar a atenção para o fato de que a visão da mesma ainda é reproduzida ao grande público como a única existente e aceitável. Daí que vem o alerta de Chimamanda – e o nosso – sobre o perigo de nos agarrarmos a uma única história e narrativa.

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O papel da mulher colonial 

Não podemos esquecer, além do dito acima, que a obra data originalmente de 1937, entretanto sua história se deu entre 1914 e 1931. Durante parte da trama, dessa forma, alguns direitos de cidadania básica ainda eram motivo de luta das mulheres europeias – como o voto -, não causando surpresa o fato da autora ocupar, majoritariamente, o cargo do lar.

Karen Blixen não contesta em nenhum momento tal questão, mas também não fica silente. Logo de início, a autora tenta explicar as relações entre o gênero masculino e o feminino, deixando claro sua falta de intenção na transgressão, mesmo que mínima. Suas posições, entretanto, demonstram uma aceitação da hétero binariedade social que não temos certeza se por conformismo ou verdadeira adequação (e provavelmente nunca iremos saber).

“Como é quase impossível para uma mulher irritar um homem de verdade, e como, para as mulheres, um homem nunca é inteiramente desprezível (…) enquanto continuar a ser homem (…)”

– Trecho de “A Fazenda Africana”

Não ousamos esperar, é claro, propriamente por uma posição distinta desta pelo lado da autora. Apesar da contemporaneidade a qual nos rodeamos, nossa presunção crítica ainda não é tão extrema para esperar, de autoras de séculos e mentalidades anteriores e retrógradas, a mesma percepção que temos e exigimos hoje.

Por fim, apesar de nos causar uma grande e extensa reflexão, a leitura de “A Fazenda Africana” não é má. É possível perceber dinamismo e verdadeiro fascínio da autora pela situação, seja este último positivo ou não, o que nos motiva a permanecer e descobrir junto com a mesma as particularidades da sociedade queniana da época.


A Fazenda Africana

A Fazenda Africana

Karen Blixen

Editora SESI-SP

448 páginas

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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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