“Dom Casmurro” não é um livro sobre traição

“Dom Casmurro” não é um livro sobre traição

Recentemente, a acalorada discussão que historicamente envolve a literatura brasileira ganhou destaque nas redes sociais devido a comentários infelizes feitos por um youtuber. Como acadêmica e estudiosa da literatura, acredito que a melhor forma de combater equívocos é por meio da informação.

As informações deste texto sobre Dom Casmurro, diferentemente daqueles que se orgulham de apenas um semestre de estudo, resultam de anos de dedicação acadêmica e da leitura de autores fundamentais na crítica machadiana, como Antonio Candido, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Helen Caldwell (a primeira pessoa a fazer uma leitura feminista de Machado de Assis, nos anos 60), entre outros.

O uso do narrador-personagem em Dom Casmurro 

A primeira escolha estética de Machado, que torna Dom Casmurro singular, é o uso do narrador-personagem. A história é contada por Bentinho/Bento, Santiago/Dom Casmurro (explicarei essa divisão em breve), e, como leitores, a recebemos exclusivamente por meio do ponto de vista dele. Portanto, a voz dos outros personagens sempre nos chega através da perspectiva e visão de mundo de Bento. Afinal, se ele é o narrador, pode distorcê-las à vontade – quem o contradirá?

Desde o início, seu objetivo é “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência” (capítulo II). Para alcançá-lo, ele narra sua juventude com a sabedoria da maturidade – e isso muda tudo. Ao escrever o livro, ele já não é mais Bentinho nem Bento Santiago; ele se tornou Dom Casmurro.

Dom Casmurro (Michel Melamed) na velhice
Dom Casmurro (Michel Melamed) na velhice

O personagem é extremamente complexo, apresentando múltiplas facetas: ele é como 3 em 1. Vamos analisar os nomes que, como tudo em Machado de Assis, possuem significados profundos.

Durante sua adolescência, ele era conhecido como Bentinho, um nome que combina a castidade associada a “Bento” (lembrando que sua mãe fez uma promessa religiosa para que ele prosperasse) com a infantilização proporcionada pelo diminutivo. Esse nome sugere que ele é um jovem mimado, o que é compreensível, já que ele faz parte da elite, é herdeiro e pertence a uma família de posses.

Bentinho (César Cardadeiro) na adolescência
Bentinho (César Cardadeiro) na adolescência

No entanto, após concluir a universidade, ele amadurece e adota o nome Bento Santiago. A aparente castidade permanece, agora acompanhada de um sobrenome intrigante: Santiago. Para compreender isso, é necessário lembrar de “Otelo”, a peça de Shakespeare que Bentinho assiste quando já está casado, mais adiante na narrativa.

“Otelo” conta a história de um homem que mata sua própria esposa devido a ciúmes, instigado por Iago, que desejava causar tumulto. Santiago é uma combinação de “santo” e “Iago”. Neste contexto, no entanto, Bento não é incitado ao ciúme por ninguém, exceto por si mesmo. Ele se torna seu próprio Iago, o que está incorporado em seu nome, juntamente com a castidade irônica do “santo”.

Bento Santiago (Michel Melamed) na idade adulta.
Bento Santiago (Michel Melamed) na idade adulta

Na fase da velhice, ele se apresenta como “Dom Casmurro”, um idoso recluso e introspectivo que vive em uma casa que replica a de Matacavalos no Engenho Novo (simbolizando o desejo de “atar as duas pontas da vida”, morando em sua velhice em uma casa idêntica à de sua adolescência). Ele está firmemente convencido da traição de sua esposa e decide reescrever toda a sua história desde o início, a partir dessa perspectiva.

Dessa forma, o narrador, lembrando sua insistência para não consultarmos dicionários (capítulo I), já que “casmurro” significa “quem costuma teimar ou insistir numa ideia, CABEÇUDO, TEIMOSO” (Priberam), constrói a personalidade dissimulada de Capitu desde a infância.

O narrador se refere a isso como “a fruta dentro da casca”, destacando sua rápida recomposição diante dos pais, suas ideias astutas e perspicazes, a simulação de alegria quando, na verdade, estava triste, sua curiosidade e até mesmo o trecho em que Bentinho sente ciúmes de um cavaleiro que passa: “Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular” (capítulo LXXVII).

Tudo isso contribui para incutir na mente do leitor a ideia de que a moça é uma atriz nata, um papel desempenhado com precisão por Maria Fernanda Cândido na incrível série Capitu (2008), de Luiz Fernando Carvalho. Aliás, toda a série é muito bem feita e revela claramente a divisão do narrador em três fases distintas, cada uma delas caracterizada de forma única.

Cena série Capitu (2008), da Rede Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
Cena série Capitu (2008), da Rede Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho

Após o casamento, o narrador continua fornecendo evidências do suposto mau-caráter de sua esposa. Isso é evidenciado nos episódios das libras esterlinas, quando ele voltou mais cedo do teatro e encontrou Escobar em casa, bem como nos icônicos “olhos de ressaca” durante o enterro do amigo.

O discurso do “bom moço”

Ao longo de Dom Casmurro, Bentinho constrói um discurso como um “bom moço” e um rapaz sério, buscando compartilhar todos os detalhes importantes da história e, assim, ganhar a boa opinião e confiança do leitor. Alguns podem realmente acreditar que ele seja um “garoto inocente”.

No entanto, este “garoto inocente”, após assistir à peça “Otelo” e se inspirar no assassinato de Desdêmona, chega a desejar a morte de Capitu, depois reconsidera e cogita matar seu próprio filho. Durante seu tempo como seminarista, também expressa o desejo de que sua mãe morra para que ele possa sair do seminário. Essas atitudes contradizem sua imagem de bom moço.

Capitu (Maria Fernanda Cândido) e seus "olhos de ressaca"
Capitu (Maria Fernanda Cândido) e seus “olhos de ressaca”

A construção do discurso de Bentinho é brilhante. Machado de Assis cria um narrador-personagem mimado, descarado, ciumento e agressivo, que constantemente tenta persuadir o leitor de sua bondade. Ao mesmo tempo, ele, um advogado, passa o livro todo exercendo sua profissão. A crítica literária séria se concentra nisso, e é aí que reside o mistério.

No entanto, sem perceber, Bentinho deixa escapar algumas virtudes de Capitu. Ela cumpriu a promessa de esperá-lo e se casou com ele, demonstrou ser uma boa mãe e dona de casa, econômica, séria e “amiga da gente”.

Por fim, o argumento mais poderoso contra a acusação de Bentinho: as semelhanças esquisitas. Quando ainda era seminarista, Bentinho visitou Capitu na casa de Sancha, que estava doente. Enquanto conversava com o pai de Sancha na sala, ele mostrou uma foto da falecida esposa, comparando-a com Capitu.

Disse que as duas eram incrivelmente parecidas, e muitas pessoas comentavam sobre essa estranha semelhança, concluindo: “na vida, há essas semelhanças esquisitas” (capítulo LXXXIII). Touché! Isso significa que duas pessoas sem parentesco podem, de fato, se parecer. É intrigante.

Afinal, Capitu traiu ou não? Pouco importa!

O essencial é: a literatura é baseada em questionamentos, investigações e dúvidas. Devemos evitar absolutismos. Fazer perguntas nos leva a um entendimento mais profundo. É importante notar que, em nenhum momento, discuti a verdadeira índole de Capitu ou se ela cometeu adultério. Na verdade, essa questão é irrelevante e focar nela seria um ato machista de julgar a sexualidade feminina.

Em resumo, a análise de Dom Casmurro não gira em torno da traição, mas sim da dúvida. Isso é o que torna a leitura tão envolvente e o debate ainda fervoroso após 120 anos de sua publicação. Viva Machado de Assis!

Confira o áudio-book de Dom Casmurro, feito pela Rádio UFMG, para quem preferir ouvir a ler:

Edição realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

Poeta, pesquisadora e professora de literatura. Autora dos livros de poesia "Anticorpo" e "Poétiquase". Estuda a obra de Hilda Hilst em seu mestrado na UFMG.
Veja todos os textos
Follow Me :