Monstros da Universal: história e tradição no Horror

Monstros da Universal: história e tradição no Horror

Quando falamos sobre cinema, o que sempre vem à mente é a figura do diretor enquanto o responsável pela criação de um filme. A visão criativa cabe única e exclusivamente a ele. Essa pode ser uma verdade nos dias de hoje, porém, não era o que acontecia na época de ouro de Hollywood.

Hollywood consolidou-se por meio do que chamamos sistema de estúdio, um conjunto de diversos atores trabalhando em conjunto para fazer a máquina do cinema girar. Um trabalho que muitas vezes envolveu embates históricos, como o famoso processinho que Bette Davis colocou nas costas da Warner Brothers por simplesmente querer ter mais controle sobre sua carreira.

É preciso pensar em Hollywood como uma fábrica onde os papéis estavam muito bem definidos. O ciclo começava nas leituras de histórias dentro dos estúdios, potencialmente interessantes ou não, e terminava quando os executivos dos estúdios em Nova York davam o xeque-mate, ou seja, aprovavam o filme.

Dessa forma, o sistema era integrado, quer dizer, os estúdios de cinema eram responsáveis pela produção, distribuição e administração de suas próprias cadeias exibidoras. Executivos como Louis B. Mayer e Carl Laemmle são muito mais do que nomes que aparecem nos créditos iniciais de seus estúdios. Foi graças a eles, em sua maioria imigrantes do Leste Europeu, que Hollywood se configurou como a conhecemos.

Diretores, como Alfred Hitchcock e Frank Capra, tinham qualidades ímpares dentro dessa cadeia, uma vez que conseguiam fazer uma simbiose entre o lucro e o “star vehicle(filmes que serviam para, literalmente, veicular uma estrela). Eles e outros diretores são exceções à regra. Na Hollywood clássica, o lucro ditava toda e qualquer regra.

Uma das coisas mais fascinantes do sistema de estúdio é perceber o quanto os filmes estão atrelados ao estilo de cada estúdio que o produziu. É muito menos uma questão individual e muito mais de mensagem ideológica e valores. Por exemplo, a MGM (Metro Goldwyn-Mayer) tornou-se um estúdio de filmes opulentos. Seu lema era ter mais estrelas que o céu, o que na época era verdade. Se analisarmos todos os filmes desse estúdio, eles possuem algo majestoso, o famoso escapismo que a audiência procurava ao ir ao cinema.

MGM - Metro Goldwyn-Mayer

Nesse contexto, a Universal Studios  também criou sua marca. Conhecida como uma “major minorno mercado, ela não se tornou a referência número um dos filmes de horror por acaso. Na verdade, isso está ligado a uma jogada de Carl Laemmle Jr., filho do idealizador da Universal. Ele queria trazer temas góticos, que pouco interessavam outros estúdios, para competir na primeira linha, junto com os filmes de estúdios maiores como a Warner Brothers.

Tantos filmes de horror, produzidos em tão pouco tempo, são resultado do gosto da audiência. Uma vez que “Drácula” (1931), o primeiro deles a ser lançado, fez sucesso, era uma questão de tempo para repetir a fórmula. Sistema de estúdio é fórmula, o que não torna os trabalhos menos criativos. Esta é a história de como surgiram os monstros clássicos tão queridos da Universal.

A Universal nos primórdios: a pré-era de horror

Como dissemos, Carl Laemmle foi um magnata do cinema que ajudou a polir a engrenagem que fez com que Hollywood permanecesse rentável até os anos 1950, quando a televisão chegou. E não era à toa: o homem era muito esperto.

Tudo começou com um Nickelodeon, ou seja, salas que exibiam espetáculos de variedades a preços módicos. Em 1907, Carl fundou a própria distribuidora, a Laemmle Film Service. No entanto, ele não queria saber de regulamentações. Por isso, dois anos depois, comprou briga com Thomas Edison, o inventor do projetor e dono da Motion Pictures Patents Company.

Edison exigia o pagamento de taxas sobre os equipamentos de projeção usados por Laemmle. Para desafiá-lo, o magnata juntou-se a outros desertores da Motion Pictures e criou a Universal Film Manufacturing Company. Ele não apenas mandou uma banana para Edison como também arrendou alguns acres para construir a futura Universal City. Um empreendedor em todas as acepções boas e ruins da palavra.

Um personagem muito importante dessa época é Irving Thalberg, futuro produtor da MGM. Ele começou trabalhando na Universal, no escritório do estúdio em Nova York. O potencial do garoto foi percebido pelo magnata, e logo Thalberg começou a responder diretamente a Carl Laemmle.

Thalberg foi importante pelos embates travados com o chefe sobre visões de mercado. Por ser menor, a Universal não tinha salas de exibição próprias, ou seja, ela gastava mais colocando seus filmes em salas dos concorrentes. Além disso, o estúdio também concentrava-se em uma programação mais ampla, com seriados e telejornais, visando o público menos favorecido. Irving acreditava que esse modelo não daria certo, uma vez que outros estúdios já começavam a investir nas próprias salas de cinema.

Carl Laemmle, o magnata e dono da Universal
Carl Laemmle, o magnata e dono da Universal. Imagem: reprodução

Apesar de ter sido muito feroz no combate com Thomas Edison, Carl Laemmle não tinha a mesma coragem quando se tratava de mudanças. Por conta de sua estagnação, em 1923, Irving Thalberg abandonou a Universal, deixando-a para cumprir seu inexorável destino: ser uma major minor.

Mas ninguém sabia que o maior defeito da Universal, a economia e o não investimento em salas de cinema, seria a sua maior qualidade nos anos 1930. A casa do horror começa a tomar forma.

A Universal dos anos 1930: a casa do horror toma forma

Como todo bom empreendedor (ou não), Carl Laemmle concedeu o desejo de seu filho, Carl Laemmle Jr: cedeu a ele a Universal City, em 1928. Um ótimo presente de 21 anos, diga-se de passagem. 

O pai não se importava se consideravam seu ato uma demonstração de nepotismo. Acreditava-se que ele continuaria administrando o estúdio, porém não foi o que aconteceu. Carl Laemmle Jr. teve carta branca para realizar as mudanças que julgava necessárias na Universal. Ironicamente, seu castelo de cartas desabou no momento em que havia colocado a Universal no caminho de ouro dos estúdios de primeira linha.

O plano de Laemmle Jr. era bastante simples mas ousado: queria colocar a Universal para jogo. Ele sentia que o estúdio tinha potencial para competir com os grandões da época como a MGM. Começou cortando 40% da produção de produtos que julgava inferiores, depois vendeu as salas menores do estúdio.

Feito isso, canalizou recursos para a produção de grandes longas. Um dos primeiros foi “Nada de Novo no Front” (1930), filme que venceu o Oscar em 1930. Começava uma constante na Universal: o gosto por adaptar histórias da Broadway para o cinema. “Nada de Novo no Front” foi baseado na versão teatral do romance homônimo de Erich Maria Remarque

Monstros da Universal
Cena do filme “Nada de Novo no Front”. (Imagem: reprodução)

Com movimentos de câmera inéditos até então e um orçamento de 829 mil dólares, “Nada de Novo no Front” finalmente deu o fôlego necessário para a Universal concorrer de frente com as grandes companhias. Apesar de ter se tornado um clássico, o filme acabou se revelando uma jogada arriscada, fazendo com que o estúdio perdesse dinheiro. Isso porque a crise de 29 atingiu com força o cinema.

Por conta da crise de 29, a Universal recuou e voltou a economizar no orçamento. Por estar acostumada a contar moedinhas, conseguiu se sair muito bem durante a Depressão, ao contrário de outras companhias. A programação variada da Universal mostrou-se uma fórmula perfeita para manter a audiência no cinema.

A casa do horror toma a tomar forma quando a Universal percebe que precisa se valer de fórmulas para manter a estabilidade e ter sucesso. O que eram as fórmulas? Tratam-se de filmes de um determinado tipo. Os musicais são uma fórmula, por exemplo. É aí que se encaixam os filmes de horror.

Os filmes de horror eram perfeitos para a Universal por diversas razões. A primeira e mais óbvia é a economia. Cenários poderiam ser reaproveitados. As vilas europeias que vemos em “Frankenstein” (1931) e “Drácula” são as mesmas, pois foram reaproveitadas de um filme para o outro. Além disso, não precisavam de grandes estrelas, mas sim de atores com características marcantes. É o caso de Lon Chaney.

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A tradição de horror na Universal começou movida pelo lucro. Carl Laemmle tinha um bom sistema de distribuição de filmes na Europa. Para se manter no mercado de lá, ele contratou muitos diretores alemães, como Paul Muni, com fortes influências do expressionismo e do gótico. O fascínio pelo mórbido e pela escuridão ajudou a Universal a se diferenciar de outros estúdios norte-americanos.

Os filmes mais famosos da casa do horror, como “A Múmia” (1932), “Drácula” e “Frankenstein”, foram idealizados quando outros estúdios estavam centrados em musicais, já que tinham acabado de descobrir o cinema falado. Foi uma época muito frutífera para a Universal, que pôde abocanhar essa fatia do mercado quase sem concorrência.

Monstros da Universal - A múmia (Boris Karloff)
A múmia (Boris Karloff). Imagem: reprodução

Em uma época em que vivemos saturadas por efeitos especiais nada realistas é uma lufada de criatividade ver o que a Universal fazia com um orçamento tão apertado. Uma das lendas mais famosas é a de que o estúdio só esculpia os cenários até certo ponto, já que a névoa taparia o resto.

Não foi à toa que o estúdio, em 1934, saiu do vermelho, faturando 200 mil dólares. A casa do horror, é claro, não se manteve em pé apenas porque o presidente do estúdio era pão-duro. O sucesso da Universal também deve ser creditado aos que transformaram os filmes em verdadeiras obras de arte: James Whale, Karl Freund, Boris Karloff e Bela Lugosi. De alguma forma, eles emprestaram seu talento, consolidando uma fórmula tão perfeita que ela seria retomada pela Universal nos anos 1950, quando o sistema de estúdio começou a decair.

Escolhemos comentar dois filmes muito emblemáticos desse período da Universal, “Drácula e “Frankenstein. Eles estabeleceram toda a tônica de universo e os posteriores diálogos que fariam com franquias que surgiriam mais tarde, como Abbott e Costello.

Drácula: a inauguração de um novo gênero rentável

Monstros da Universal -Cena de "Drácula" (1931)
Cena de “Drácula” (1931). Imagem: reprodução

No começo de 1930, o chefe do estúdio Paramount, Ben Schulberg, pensou em adaptar a versão teatral de “Drácula” para as telonas. No entanto, achou que o teor da história talvez não fosse adequado à audiência norte-americana. Além disso, o Código Hayes, a censura em Hollywood, entrava em cena. Um filme com um homem mordendo pescoços alheios certamente não seria muito bem visto pelos censores. Por isso, a ideia foi engavetada pela Paramount. 

A alguns anos dali, Carl Laemmle Jr. teve a mesma ideia de Schulberg. Tinha os mesmos receios que o colega, mas acreditava que o sucesso na Broadway poderia ser repetido no cinema. O sucesso da Universal com temas mórbidos, como o filme “O Homem Que Ri” (1928), o convenceu de que adaptar talvez fosse uma boa ideia. Como seu pai, ele tinha uma boa intuição.

A decisão de adaptar a versão teatral da Broadway, e não exatamente a obra de Bram Stoker, tem a ver com o processo que a viúva do autor de “Drácula” moveu contra o filme “Nosferatu” (1922), de F. W Murnau. Ela alegou plágio da obra do marido e ganhou. Laemmle Jr. não queria enfrentar o mesmo problema, por isso decidiu comprar os direitos da obra de Stoker.

Laemmle Jr. pegou, inicialmente, dois nomes da MGM emprestados para essa empreitada: Lon Chaney, ator, e Tod Browning, diretor. Ambos já haviam trabalhado na Universal, na época de Irving Thalberg, mas eram funcionários da MGM naquele momento. A volta para a Universal foi algo bom para os dois, não apenas porque já conheciam a tradição de horror do estúdio como também estavam cansados do modelo glamouroso da MGM.

Infelizmente, Lon Chaney faleceu antes de começar a trabalhar em “Drácula”. O que teria sido do filme se ele fizesse o protagonista? Nunca saberemos. A morte de Chaney fez com que outro nome fosse cogitado para o papel principal: Bela Lugosi. Até aquele momento Lugosi tinha sido apenas o intermediário das negociações entre a Universal e o autor da adaptação teatral de “Drácula”. Ele fazia o papel do vampiro nos palcos da Broadway.

“Drácula” teve um orçamento muito baixo, de apenas 355 mil dólares. Foi rodado em sete semanas. Para além dos números, é preciso destacar o trabalho de Karl Freund, diretor de câmera, o responsável por toda a atmosfera gótica que o filme exala.

Cartaz do filme Drácula (1931)
Cartaz do filme “Drácula” (1931). Imagem: reprodução

Emigrado da Alemanha, Freund trouxe o expressionismo para o cinema norte-americano. “Drácula”, de 1931, trabalha o tempo todo com ângulos de filmagem dramáticos, planos em que os olhos de Bela Lugosi são iluminados enquanto o resto do rosto permanece na escuridão. Essa forma de filmar seria muito usada posteriormente nos filmes noir, também influenciados pelo expressionismo.

Outro detalhe interessante do filme é que quase não existe trilha sonora. Em momentos chave do filme há trechos de “O Lago dos Cisnes, e isso causa um efeito ainda mais assustador no espectador. A presença de Bela Lugosi e sua atuação contida e caricata sustentam a ausência de música.

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Laemmle estava tão certo do sucesso de “Drácula” que fechou uma adaptação de “Frankenstein” semanas antes do lançamento do filme. O magnata estava certo. “Drácula” foi um sucesso de público, mostrando que a audiência queria mesmo era sentir calafrios no cinema. 

Frankenstein: a continuação segura da fórmula do Horror

Monstros da Universal - Frankenstein (1931)
Frankenstein (1931). Imagem: reprodução

Mais uma vez Laemmle Jr. decidiu adaptar a versão teatral de uma obra para o cinema. Ele chamou John Balderston, coautor da versão teatral de “Drácula”, e o roteirista Robert Florey para ajudar a recriar a obra de Mary Shelley para o cinema. Nesse momento, a direção do filme também estava nas mãos de Florey.

De acordo com o livro “O Gênio do Sistema” (1991), uma mudança na política do estúdio fez com a direção caísse nas mãos de James Whale. Isso porque Florey tinha pouca experiência dirigindo, o que certamente não era o caso de Whale. Além de ter dirigido um filme de guerra, “Journey’s End” (1930), ele havia escrito diálogos para “Anjos do Inferno” (1930), de Howard Hawks.

A chegada de Whale a “Frankenstein” ilustra bastante o que era o sistema de estúdio: um toma lá dá cá. Isso porque Laemmle exigiu (leia-se obrigou) do diretor a dirigir “A Ponte de Waterloo” (1931), outra adaptação teatral para o cinema do estúdio. Para não deixar James totalmente descontente, ele ofereceu a possibilidade de o diretor escolher qual seria seu próximo filme. Whale escolheu “Frankenstein”, e o resto é história.

Outro detalhe bastante emblemático do sistema de estúdio é que Bela Lugosi foi escalado para o papel do monstro. Isso era bastante comum naquela época. Um ator que fizesse sucesso com uma fórmula, acabava interpretando vários papéis parecidos, já que eram garantia de sucesso. 

Como o estúdio fazia contratos abusivos, de seis anos, era muito difícil o ator negar papéis. Ele tinha que fazer um determinado número de filmes por ano. Esse foi um dos motivos pelos quais Bette Davis moveu um processo gigantesco contra sua empregadora, a Warner Brothers.

Ao contrário do que acontecia na época, Lugosi recusava-se terminantemente a fazer o papel. A recusa de Bela foi o aceite de Boris Karloff, um ator inglês que fazia pontas em filmes de gângster na Universal. Whale capturou algo assustador, mas muito empático, na expressão do ator. Ele era perfeito para o apelo que o monstro criado pelo Dr. Frankenstein devia criar.

Monstros da Universal - Frankenstein (Boris Karloff)
Frankenstein (Boris Karloff). Imagem: reprodução

Assim como “Drácula”, “Frankenstein” teve baixo orçamento para os padrões da época. O final do filme também diz muito sobre o sistema de estúdio: ele é deixado em aberto, para a possibilidade de o estúdio lucrar mais fazendo uma continuação. E foi mesmo o que aconteceu, em 1935, com o filme “A Noiva de Frankenstein” (1931).

Dessa forma, a Universal consolidou-se como o mais conhecido estúdio de horror. Depois do sucesso de “Drácula”, outros estúdios começaram a tentar surfar na onda dos filmes de terror. É o caso da MGM com o seu “Monstros” (1932) (“Freaks”, no original). 

A história mostra que a Universal não criou um império de horror do nada. Tudo foi fruto da ambição, somada ao talento de diretores e atores, de magnatas. Hoje isso seria inconcebível, uma vez que os estúdios perderam a força de outrora. No entanto, a força dessas obras continua sendo alvo de estudos e análises. 

No fim das contas, Carl Laemmle conseguiu o que parecia ser impossível: ser grande permanecendo pequeno.

Imagem em destaque: Cena do filme “A Noiva de Frankenstein” (1935)


Edição realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Tradutora e noveleira. Criou, em 2014, o canal sobre cinema clássico no YouTube, o Cine Espresso, para espalhar na Internet o amor pelos filmes esquecidos. Gosta de chá preto acompanhado de um bom livro.
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