Watchmen – 1×06: This Extraordinary Being

Watchmen – 1×06: This Extraordinary Being

Antecedido por uma sequência de episódios cuidadosamente roteirizados e dirigidos com perspicácia tremenda, o sexto episódio de Watchmen, “This Extraordinary Being”, faz justiça a seu nome, e se solidifica como a peça mais extraordinária deste quebra-cabeça que nos foi apresentado até agora.

Em um episódio ousado que revisita (e reconstrói!) fatos e personagens do quadrinho original de Alan Moore e Dave Gibbons, a série da HBO atinge um novo patamar de excelência ímpar, e se reafirma como uma adaptação absurdamente necessária para os tempos atuais.

AVISO: o texto contém spoilers do sexto episódio de “Watchmen”

Watchmen: a calmaria antes da tempestade

Entregue ao FBI no episódio anterior por acobertar Will Reeves (Louis Gossett Jr.) e dificultar as investigações do assassinato de Judd Crawford (Don Johnson), Angela Abar (Regina King) engole todas as pílulas de Nostalgia deixadas pelo avô. Já presa, é advertida por Laurie Blake (Jean Smart) dos possíveis efeitos colaterais da droga e do perigo que corre por tê-las ingerido em elevada quantidade.

A ex-vigilante tenta convencê-la a assinar um termo de tratamento para se livrar da substância, mas já é tarde demais: a imagem perde o foco e as cores se dissipam em preto e branco, separando-nos do presente e conduzindo-nos a memórias que não pertencem à policial encapuzada, mas às de outro. Conhecemos, então, quem é Will Reeves.

Em uma direção que remete aos filmes noir e à Hollywood antiga, somos transportadas à Nova York do fim dos anos 1930, revezando-nos entre a figura de um Will mais jovem (Jovan Adepo), e da própria Angela vivenciando as memórias em seu lugar, em movimentos de câmera regulares e compassados.

Reeves acaba de se graduar na academia de polícia, e recebe seu distintivo pelas mãos de Samuel Battle, o primeiro oficial negro a integrar o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD). Após parabenizá-lo formalmente, Battle sussurra palavras tão misteriosas quanto proféticas antes de se afastar: “Fique de olho nos Ciclopes”.

Regina King no sexto episódio de Watchmen
Angela Abar (Regina King) no sexto episódio da série “Watchmen”. (Imagem: HBO / reprodução)

O tempo progride no ritmo cadenciado de um piano sempre ao fundo das cenas, remetendo à trilha sonora de um filme mudo — “Trust in the Law”, o mesmo exibido em Greenwood instantes antes do massacre empreendido por supremacistas brancos que aniquilou o distrito, e com ele os pais de Reeves.

Enquanto o jovem policial sai para beber com June (Danielle Deadwyler), sua futura esposa, é impossível não notar a estranha calmaria que domina a atmosfera, um sentimento agridoce e silencioso que emana do rapaz e que não é, de forma alguma, ignorado por sua companheira, que o endereça direta e explicitamente diante de sua quietude. “Você é um homem com muita, muita raiva”, afirma. O policial a encara, refletindo o que lhe foi dito, e imagens da destruição de Tulsa atravessam a tela. Will Reeves é um homem com muita, muita raiva, de fato. E tem motivos para sê-lo.

A música, um amálgama do piano de cinema mudo com relances de uma trilha sonora de jazz, reflete a inquietude e a raiva ocultas sob o semblante circunspecto de Reeves, conduzindo-nos a uma expectativa de que algo muito trágico está prestes a acontecer. Quando um homem branco de semblante jocoso destrói a fachada de uma loja judaica em frente ao policial, o sentimento se intensifica. Em uma cena dolorosamente familiar e real, o homem, Fred (Glenn Fleshler), zomba enquanto é algemado pelo jovem Reeves e conduzido rumo à delegacia até os demais policiais brancos. No entanto, nada lhe acontecerá.

ciclopes - supremacistas brancos
Fred (Glenn Fleshler) em cena do sexto episódio de “Watchmen”.(Imagem: HBO / reprodução)

No dia seguinte, Fred está solto. Quando arrisca questionar perante seu superior, Reeves recebe uma sutil advertência de que não deve se meter onde não é chamado. Mas não é suficiente. Emboscado por seus pretensos colegas de trabalho, Reeves é arrastado até uma área deserta da cidade, com as mãos atadas por cordas e o rosto coberto por um capuz escuro, onde ameaçam enforcá-lo em uma árvore próxima. Recado mais claro impossível.

Os policiais são membros de uma ramificação da Ku Klux Klan, os tais Ciclopes mencionados por Battle — e eles planejam algo. Ainda ensanguentado, atado às cordas e segurando o capuz, Reeves está prestes a retornar para casa quando decide apartar um grupo de homens atacando um casal em um beco afastado. Materializado em sua raiva mais sincera, nasce o herói Justiça Encapuzada.

A herança ancestral do vigilantismo em “Watchmen”

A série já flertava com o legado do personagem desde o início, com a série-dentro-da-série “American Hero Story”. Uma figura misteriosa alvo de diversas especulações — a grande maioria delas alimentadas pela autobiografia de Hollis Mason na graphic novel –, Justiça Encapuzada é a pedra angular e o marco inicial para a gênese dos vigilantes corrompidos e desconjuntados da trama de Alan Moore e Dave Gibbons.

Will Reeves (Louis Gossett Jr.), o Justiça Encapuçada
Will Reeves (Louis Gossett Jr.), o Justiça Encapuzada. (Imagem: HBO / reprodução)

O personagem foi o primeiro aventureiro mascarado a surgir, em 1938, impulsionando o surgimento de outros heróis da primeira geração, como o próprio Coruja e Capitão Metrópolis (com quem se especulava que Justiça Encapuzada mantivesse um caso) e, posteriormente, a criação do grupo de vigilantes “Minutemen”. A revelação de que Justiça Encapuzada é, de fato, Will Reeves, não apenas acarreta uma série de implicações simbólicas poderosas, como também subverte irreversivelmente a obra original.

A intenção de Moore em situar a gênese do heroísmo de seu universo em 1938, ano de lançamento da revista Action Comics nº1 (contendo a primeira história do Superman), não passou despercebida de Damon Lindelof e sua equipe, que elevaram as possibilidades de significado às suas últimas consequências, sem medo de intervir diretamente no material original, resultando em uma explícita profanação e desconstrução da HQ de 1986, da forma mais magistral possível.

Muito se falou, nos textos anteriores, do simbolismo de Will Reeves como representação dos grupos afro-americanos cuja história fora sucessivamente apagada, sequestrada e silenciada, em contraposição às origens assépticas e higienizadas de heróis de ascendência alemã, como Dr. Manhattan e Ozymandias, no quadrinho original. Sua história de origem, não por acaso, guarda grande semelhança com aquela do herdeiro de Krypton: o último de seu povo, um órfão enviado para longe após a completa destruição de sua terra natal e daqueles que lá viviam.

Watchmen - 1x06 - crítica com spoilers
Cena do sexto episódio de “Watchmen”. (Imagem: HBO / reprodução)

Em um dado momento do episódio, Reeves observa com interesse as páginas da recém-lançada Action Comics e a história de Kal-El, enquanto flashes do massacre de Tulsa em cores vivas tomam as telas novamente. Superman é um imigrante — simbologia reforçada pela ascendência judaica de Joe Shuster, seu co-criador. Will Reeves, Justiça Encapuzada, é um estrangeiro em sua própria terra.

A reação do oprimido sequestrada pela ação do opressor

Watchmen“, a graphic novel, é uma história sobre homens brancos privilegiados querendo, cada um à sua forma, se aventurar em um mundo corrompido por eles mesmos, imprimindo suas visões de mundo através de um heroísmo fascistóide; o fato de que Reeves seja o primeiro herói (em uma ação de retaliação a este mesmo mundo) subverte radicalmente os pressupostos da HQ, ao mesmo tempo em que fortalece sua mensagem original da forma mais ousada possível.

Com bastante habilidade, a narrativa da série se apropria das brechas deixadas pelo quadrinho acerca de Justiça Encapuzada, sua identidade nunca comprovada e sua representação. A cena (descrita tanto na biografia de Mason, como no episódio piloto de “American Hero Story”) de uma tentativa de assalto impedida pelo vigilante no bairro do Queens, uma das primeiras a ser noticiada nos jornais, é totalmente ressignificada a partir das memórias de Reeves: o local, administrado por Fred, servia como ponto de encontro dos Ciclopes e demais supremacistas brancos, que ali traçavam seus planos para aniquilação da população negra de Nova York.

Angela Abar como Justiça Encapuzada em cena do sexto episódio de Watchmen
Justiça Encapuzada em cena do sexto episódio de “Watchmen”. (Imagem: HBO / reprodução)

Will passara a vida inteira rememorando o filme “Trust in the Law”, e sua representação de Bass Reeves, o primeiro delegado negro dos Estados Unidos, a oeste do rio Mississipi, como um homem da lei e da justiça. Diante da revelação de que a lei posta, e toda a estrutura institucional que a pressupunha, já se encontrava enviesada pelos interesses hegemônicos, o policial não vê outra escolha senão descumpri-la, se para isso puder combater as injustiças que testemunha. Vislumbramos, assim, uma nova faceta do vigilantismo, completamente inexplorada na obra de Moore: não como uma fantasia bizarra da branquitude masculina dominante, mas como uma legítima reação de um grupo subalternizado diante de instituições envenenadas desde sua origem, e única opção possível de sobrevivência em uma sociedade racista.

É este mesmo senso de sobrevivência que norteia Reeves a se juntar aos Minutemen, tão cedo Nelson Gardner, o Capitão Metrópolis (Jake McDorman), o convida para se juntar aos demais heróis. Ao descobrir as reais proporções do plano dos Ciclopes, o policial não crê que poderá impedi-los sozinho. O convite de Gardner — e o afeto trocado entre os dois homens — lhe dá esperanças de que receberá o apoio necessário, por parte de pessoas igualmente comprometidas com a justiça, para combater as forças racistas que assombram Nova York. Os Minutemen, contudo, fazem jus ao que a graphic novel denunciara originalmente: composto, majoritariamente, por oportunistas buscando publicidade e fama, o grupo ignora os apelos sucessivos de Reeves por ajuda.

Minutemen
Minutemen em “Watchmen” (Imagem: HBO / reprodução)

É, ainda, significativo em “Watchmen” que o vigilante necessite maquiar a região ao redor dos olhos de pó branco para que, mesmo debaixo da máscara, ninguém o reconheça como homem negro. Por insistência de Gardner, Reeves se obriga a esconder sua negritude dos próprios membros dos Minutemen, bem como sua sexualidade — no quadrinho original, Sally Jupiter, a primeira Espectral, sempre aparecia ao seu lado para dispersar quaisquer rumores.

Tal qual Bass Reeves fora sequestrado pela branquitude e reinterpretado através do Cavaleiro Solitário, Will Reeves teve sua raiva e legado sistematicamente silenciados, seja pelo retrato de Justiça Encapuzada nas mídias como um homem branco, seja no apagamento de sua existência em seu próprio seio familiar. Mas não mais, se seus planos junto a Lady Trieu (Hong Chau) e o assassinato de Judd Crawford nos sinalizam alguma coisa.

Raça, vigilantismo e bissexualidade

O que a série da HBO nos diz, sem nenhum pudor, é: em uma universo no qual quase todos os protagonistas da trama original são homens brancos levados ao heroísmo por motivos supérfluos, fetichistas, megalomaníacos ou sociopáticos, o primeiro herói moderno foi um homem negro bissexual que só se tornou vigilante por uma questão de sobrevivência em meio ao racismo institucional.

Se o vigilantismo de Reeves é permeado de urgência pela proteção, sobrevivência e resistência dos seus contra políticas abertamente genocidas, o vigilantismo branco é uma deturpação perversa que apenas amplifica os males que, em tese, faz menção de combater.

Justiça Encapuzada
Will Reeves em cena do sexto episódio. (Imagem: HBO / reprodução)

Em entrevista ao Indiewire, o ator Jovan Adepo comentou sobre a importância das reapropriações dos símbolos na trajetória de Will Reeves como vigilante. Tomando para si as cordas e o capuz usados para ameaçá-lo e intimidá-lo, Reeves os converte em símbolos de ataque contra aqueles que um dia foram seus algozes. De forma muito similar, a série da HBO se reapropria dos símbolos do quadrinho de Moore e não apenas aprofunda as críticas tecidas pela obra, mas expande suas possibilidades políticas.

Ao tomar a narrativa da graphic novel para si e repensar seus elementos, a série atinge um patamar de excelência capaz de ultrapassar seu próprio material de origem. Sem hesitar em incorporar temáticas de ancestralidade, traumas geracionais e dívidas históricas, “Watchmen” se consagra, desde já, como uma das obras mais brilhantes e necessárias da última década.

Em 1986, conhecemos a ação dos opressores, suas histórias e motivações para dominar. Mais de trinta anos depois, faltando apenas três episódios para o fechamento da temporada, a resposta completa não poderia estar mais próxima.


Edição e revisão realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

20 Textos

Estudante de direito cuja identidade (não tão) secreta é a de escritora e resenhista. É autora da coletânea de contos de ficção científica "Valsa para Vênus", e já publicou em antologias e revistas literárias, como a Mafagafo, além de compôr o quadro de colaboradores do SOODA Blog. Nas horas vagas, estuda cartas de tarô, traz a pessoa amada de volta e “aposenta” dragões cibernéticos soltos por aí.
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