The Witcher: as mulheres no universo criado por Andrzej Sapkowski

The Witcher: as mulheres no universo criado por Andrzej Sapkowski

Caos nas ruas. Sangue em muitas mãos. No alto de um monte, feiticeiras travam uma batalha que não lhes pertence. Na segurança dos seus castelos, políticos decidem quem morrerá a seguir. Antes espreitando pelos becos, o ódio agora parece confortável para caminhar sob a sensação revigorante do sol. A violência serve de luva protegendo o punho daqueles com caráter duvidoso. Bem-vindas ao universo de The Witcher!

Andrzej Sapkowski cria sua jornada do herói para Geralt de Rívia enquanto desenvolve, ainda que de maneira colateral, uma fantasia plena em detalhes minuciosos. A afirmação “colateral” é creditada em antigos comentários do escritor polonês, que já disse não ser preocupado com a construção do mundo (worldbuilding). Ele questiona o motivo pelo qual o seria, quando tem personagens emocionalmente envolvidos uns com os outros o tempo todo. 

De fato, se você já leu as obras, percebeu que são repletas de diálogos, cartas, e não há exatamente um sistema cronológico retilíneo. Nossa imersão no universo se dá através dos diferentes pontos de vista – o que nos permite ter um julgamento sobre todas as partes e ter algum favoritismo. Essa predileção é envolta em mágica, sangue real e a determinação ferrenha de uma feiticeira e uma princesa capazes de mudar o destino do mundo.

Lauren S. Hissrich e Andrzej Sapkowski
Lauren S. Hissrich, showrunner da série da Netflix, e Andrzej Sapkowski, autor dos livros da saga “The Witcher”. (Foto: reprodução)

A natureza das feiticeiras em The Witcher

A magia pede sacrifício. Magia é desordem. Caos. No mundo onde a natureza impera, a natureza oferece e exige de volta. Nada é fortuna gratuita. Não se acorda uma manhã detendo o mundo em seus dedos e em sua voz: conquista-se. E a conquista deve pedir alguma dor.

Através da dor, surge o equilíbrio – pois no fim de tudo, a feitiçaria é um privilégio que traz consigo a companhia ingrata do isolamento. Da infertilidade. Da pária social. De ser visto como uma aberração por saber demais, ter poder demais. Afinal de contas, o que o homem não pode dominar, ele repudia. Ou seja, transforme em monstro quem é mais forte do que você e o torne um pesadelo para todos. 

Nesse universo de “The Witcher“, Andrezj escreve feiticeiros homens sim, mas em sua vasta maioria a obra é composta por mulheres que manuseiam a magia. Cada uma com visão do mundo diferenciada, visão política própria, entendimento particular de magia, mas alguns outros tantos elementos em comum. Dentre as semelhanças, talvez a mais importante seja: elas não gostam de se comportar. Elas não vão se comportar. 

Lilás e groselha

Yennefer de Vengerberg
Arte de Yennefer por JustAnor. (Imagem: reprodução)

E Yennefer de Vengerberg não segue sequer as regras das bruxas. Sua lealdade está, acima de tudo, consigo mesma e a leozinha de Cintra (além de um tal Lobo de Rívia, mesmo não admitindo em voz alta). Ela aparece na história de Geralt marcando sua jornada com lilás, groselha e personalidade forte. 

Além disso, Yennefer não precisa de validação para seguir adiante ou dar cabo dos seus planos. A personagem criou uma poderosa fama que cruza todo o reino sozinha, e devemos assistir muito disso na adaptação para a pequena tela da Netflix. Sua persistência e autoconfiança a tornaria atraente aos olhos da espectadora caso fosse um homem cis, mas no lugar disso, sua recepção após “The Wild Hunt” (jogo da Projekt Red) foi bastante controversa. 

A trope da mulher doce e compreensiva foi utilizada com Triss Merigold nos games, uma tradução não muito acertada da sua personalidade nos livros. Ora, vejamos, é quase como se a CDPR não soubesse administrar personalidades femininas com protagonismo simultâneo. Além disso, ao desenvolver o romance de Yennefer e Geralt apenas no terceiro episódio de sua franquia, privou vários jogadores de criarem uma conexão emocional mais forte com ela, ao mesmo tempo que deram espaço para a misoginia crescer ao utilizar a ausência da personagem como pretexto para desenvolver sua aversão.

Portanto, uma vez que não presenciaram o casal ou personagem apropriadamente, subentende-se ser desnecessário torcer por eles ou simpatizar com Yennefer – e aí a comunidade gamer levou adiante a falta de necessidade para a falta de respeito com o que a figura de uma mulher como Yennefer representa.

“Mulheres difíceis” em The Witcher

Yennefer em The Witcher, interpretada por Anya Chalotra
Yennefer de Vengerberg, interpretada por Anya Chalotra, na série da Netflix. (Imagem: reprodução)

Temos consciência de que, tradicionalmente, inexiste boa recepção com a mulher que não se submete aos demais ou não é praticante das normas da “boa educação”. Ainda mais agravante: aquela que é consciente do seu valor e da própria sexualidade. Yennefer faz uso de artifícios que para ela são apenas isso: recursos, meios para um fim. Portanto, ao não ter controle sobre a narrativa, a vida e escolhas da mulher pode gerar grande conflito. Seja em Vengerberg, Novigrad, Nilfgaard, ou no Brasil. 

Desafiadoras, a maioria das feiticeiras foram garotas vindas da pobreza, sofrimento, que conheciam o abuso e o lado obscuro da vida. Foram endurecidas desde novas e sabem que beleza nada mais é do que uma ferramenta – uma agradável, verdade – mas ainda assim, usam-na como vantagem nesse cenário em constante guerra. A perspicácia sendo sua característica mais marcante. E a resiliência. Elas sobreviveram e sobrevivem aos cenários mais caóticos. A sociedade ao seu redor apenas finge aceitar uma feiticeira na corte por medo e desejo, ambos agarrados ao seu poder.

Dito isso, mulheres são demonizadas por suas personalidades constantemente na literatura e outras instâncias culturais. Vez ou outra, sendo advento mais recente, alguma consegue cair nas graças do público – Gillian Flynn escreveu algumas delas. Jessica Lange interpreta muitas delas. Julia Louis Dreyfus também. Addison Montgomery, a personagem de “Grey’s Anatomy“, era uma delas. Todas são mulheres “complicadas”. 

Controversas. Difíceis. Megeras. Antagonistas. Heroicas. Redimidas. Alguns dias são boas. Outros nem tanto. Que seduzem e são seduzidas. Mulheres decididas. Indecisas. Coloque umas aspas aí atrás. Não coloque aspas aí atrás. Ame-as, ou odeie. Não faria a menor diferença na vida delas.

Found family

Yennefer (Anya Chalotra), Geralt (Henry Cavill) e Ciri (Freya Allan)
Yennefer (Anya Chalotra), Geralt (Henry Cavill) e Ciri (Freya Allan) em divulgação da série da Netflix. (Imagem: reprodução)

Um dos temas presentes na construção da feiticeira que veste apenas preto e branco é a maternidade. O manejo da mágica subtrai a capacidade fértil de seus portadores – carregar a magia dentro de si é impedir que sua linhagem sanguínea continue, homem ou mulher. O mesmo acontece com os Witchers. Mas tão logo essa premissa se apresenta ela é passada adiante, pois o que importa realmente tanto para Yennefer quanto para Geralt acaba sendo o senso de pertencer

Found family” é um conceito comumente utilizado em livros, séries e filmes. Onde o personagem solitário finalmente encontra o grupo ao qual pode chamar de seu, de família. E família não é feita de sangue. Ambos são perseguidos por uma solidão avassaladora e encontram no outro o sentimento que jamais esperavam existir de verdade. E eles sequer compreendem isso de primeira. Lutam contra. Renegam. Entretanto, se respeitam.

É válido estabelecer que a relação entre ambos é de igual para igual. Existe um respeito mútuo, ambos não duvidam das habilidades do outro. Geralt não desrespeita Yennefer e ela sempre o carrega consigo mesmo quando envolvida em tramas políticas. Não existe aquela sensação sufocante de heroísmo exagerado – Yen segue seus próprios planos, Geralt segue os dele, e um vai ao resgate do outro quando algo dá errado, mas não servem de interferência no caminho. E com a mente querendo proteger algo em comum: Ciri.

E Ciri de Cintra é a maior sobrevivente que já passou pelas páginas do autor. 

Cirilla Fiona Elen Riannon

Ciri em The Witcher, série da Netflix.
Ciri em The Witcher. (Imagem: reprodução)

Conhecemos a princesa ainda criança, desde antes do seu nascimento, quando é jogada nos braços do Destino. Nesse mundo, o Destino age como uma magia vinculatória – uma promessa divina. Um sopro dos deuses em seus ouvidos, te sugerindo determinado caminho. Cirilla Fiona se inquieta diante da perspectiva de mera seguidora de algo já escrito. Sua sobrevivência é mais importante. 

A herdeira de Cintra é alvo de uma perseguição que parece não ter fim, e os temas explorados nesse pano de fundo vão cobrir um espectro abrangente: abandono, amor, relacionamentos tóxicos, abuso psicológico, violência, uma bela relação entre mãe e filha, homofobia, bissexualidade, primeiro relacionamento… Tudo isso iremos encontrar na história de Ciri. E muito mais. No entanto, aprofundar em detalhes sobre todos os tópicos acabaria entregando spoilers para as interessadas em ler os livros ou no desenrolar da série Netflix. Mas podemos afirmar o seguinte: Ciri é essencial em “The Witcher“. 

Tal personagem é de longe uma das preferidas da mitologia Witcher. Talvez a segunda preferida, perdendo apenas para Geralt. Ou nem isso, estando ali do lado dele, visto ser bem difícil alguém desgostar dela. Possível que seja efeito de vermos cada grande passo da sua vida, desde que ela aprende a brandir uma espada até quando executa sua primeira morte. E tudo que passa por ela sempre é muito intenso. Ciri é intensa. 

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Ao contrário dos Witchers, privados de emoções pela química que os tornou caçadores de monstros, e das feiticeiras, mais propensas a resolver seus negócios com política e palavras, Cirilla gosta da lâmina da espada e da explosão em seu estômago – há muito em seu sangue, muito em sua mente, muito ao seu redor. 

Em sua história, porém, existe algo bem incômodo a ser comentado que lembra o caso de Daenerys nos livros das “Crônicas do Gelo e Fogo”, escrita por George R. R. Martin (inclusive um amigo pessoal do autor de The Witcher): ambos são extremamente despreocupados em inserir homens de todas as idades bem apaixo-obcecados-nados com suas protagonistas. 

No caso dela, existem apenas dois pretendentes de idade apropriada, uma com a qual ela se envolve em um relacionamento nada saudável. São adultos com três, quatro décadas convertidas ou mais apaixonados por uma adolescente. Essa talvez seja uma das únicas comparações cabíveis com a obra de Martin, já que ambas são bem distintas em seu caminhar.  Mas não se preocupe, Cirilla aprendeu com sua mãe Yennefer que não deve se dobrar para as vontades de ninguém. 

A saga do bruxo Geralt de Rívia (e de Zirael) em The Witcher

Henry Cavill interpreta Geralt de Rívia em The Witcher, série que estreia dia 20 de dezembro na Netflix. (Imagem: reprodução)

Algo que precisa ser esclarecido para jogadoras que não tiveram contato com os livros ou para qualquer pessoa pretendendo começar, mas não o faz pela indisposição em se comprometer com a jornada de “um homem só”: não se preocupem. Primeiramente, Geralt pode ter uma imagem taciturna associada com certa má reputação passada por alguns de seus fãs, mas leitoras sabem que o protagonista está mais para um “The Mandalorian” (no ar pela Disney Plus). 

Ou seja: de poucas palavras, Geralt segue um código, tenta enganar a si mesmo fingindo que não se importa, mas é um grande pai que não quer nada além de deixar sua criança segura. Lembram do conceito de found family citado antes? Bem, está mais do que claro quem é sua filha, no coração e na alma: Cirilla. 

Outro detalhe para ser dito é que ele não detém o ponto de vista exclusivo dos livros. Temos Geralt, Jaskier (seu melhor amigo, um famoso poeta, trovador incansável nos flertes), Dijkstra (espião, mestre nos arranjos políticos), Triss Merigold (feiticeira), alguns outros personagens também, mas, principalmente: Ciri. Muita Ciri. Temos livros dedicados para ela tanto quanto temos livros dedicados para Geralt. A história de um se entrelaça com a do outro – Yennefer, por sua vez, ganhará capítulos dela apenas mais para a frente. É como se víssemos a feiticeira com o mesmo olhar encantado que Ciri e Geralt a enxergam. 

Representação feminina na fantasia

É bem prazerosa a leitura de tantas mulheres poderosas na mesma saga, sendo que todas elas possuem personalidades divergentes. Apenas no núcleo principal da história você encontra constantemente com: Yennefer de Vengerberg, Cirilla Fiona, Philippa Eilhart, Milva, Angoulême, Rainha Calanthe e Triss Merigold. Isso sem nomear Fringilla Vigo, Anna Henrietta, Nenneke e outras que desempenham posições de poder na história. Esses são nomes que cortam a mente sem precisar de consulta ou qualquer coisa do tipo, sendo infelizmente raro em universos de fantasia ter várias mulheres reunidas. Ou a guarda compartilhada de um universo entre pai e filha.

Na série da Netflix, que estreia próximo do Natal, acontece uma mudança e Yennefer vai ter agência, se igualando aos outros dois. Como ela sempre esteve na história em paralelo e constante na vida deles, a mudança é bem positiva porque permite aos fãs da bruxa que tenham mais material dela, além de contribui para a audiência ter uma maior chance de se envolver. Portanto, vamos torcer para o sucesso da série e que ela seja muito boa! A Netflix parece ter amado, afinal, a produção da segunda temporada já começa em fevereiro de 2020. 


Edição e revisão realizada por Isabelle Simões.

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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