Mulheres na História do Cinema: Germaine Dulac

Mulheres na História do Cinema: Germaine Dulac

Uma das pioneiras do cinema vanguardista francês, Germaine Dulac dirigiu mais de trinta filmes de ficção ao longo de sua carreira. Os movimentos artísticos desses filmes iam do impressionismo ao abstracionismo. Além disso, ela produziu um considerável número de newsreels (jornais cinematográficos, curtas-metragens de notícias e atualidades) e documentários. Suas obras marcam o desenvolvimento de novas tendências cinematográficas e a concepção do cinema como arte e ferramenta sociopolítica.

Além de cineasta, Dulac foi também uma teórica, jornalista, crítica de cinema e ativista feminista, filiada a organizações como a Société des auteurs de films (SAF ou Sociedade de Autores de Filmes, em tradução livre), Fédération française des ciné-clubs (FFCC, Federação Francesa de Cineclubes), International Council of Women (ICW, Conselho Internacional da Mulher), International Educational Cinematographic Institute (IECI, Instituto Cinematográfico Educacional Internacional), entre outras.

Origens e início da carreira de Germaine Dulac

Germaine Dulac nasceu em 17 de novembro de 1882 em Amiens, França, primogênita em uma família da alta burguesia. Apesar da origem privilegiada, em termos econômicos e de classe, a vida familiar era instável. Seu pai, um oficial da cavalaria e posteriormente general de brigada, estava frequentemente ausente, a trabalho. Já sua mãe sofria de depressão crônica, desencadeada pela perda da segunda filha, em 1885, passando longos períodos em um sanatório até sua morte precoce, em 1918, aos 55 anos.

Dulac passou a maior parte de sua infância sob cuidados da avó paterna em Paris, durante a Belle Époque. Este período foi marcado por grande modernização nas artes, ciência e política — o que, segundo a própria cineasta, impactou suas perspectivas estéticas e políticas, e foi um dos alicerces para o desenvolvimento de sua carreira no cinema. Em sua juventude, escrevia críticas de teatro e cinema para o La Française, principal jornal do movimento sufragista francês, do qual tornara-se também editora, dando início às suas atividades políticas de cunho feminista e pacifista, pouco antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Foto em preto e branco do perfil de Germaine Dulac
Germaine Dulac. (Imagem: reprodução)

Sua carreira no cinema começou como produtora para a Pathé, um conglomerado de cinema francês. Em 1915 fundou a D.H. Films junto ao marido, Marie-Louis Albert-Dulac, e à roteirista Irène Hillel-Erlanger, dirigindo diversos filmes ao longo dos anos seguintes, dentre os quais “Les Sœurs ennemies” (1917), “Venus Victrix” (1917) e “Le Bonheur des autres” (1918). Após o divórcio, em 1922, a cineasta iniciou um relacionamento homossexual com sua assistente, Marie-Anne Colson-Malleville, com quem permaneceu até seu falecimento, em 1942.

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Germaine Dulac, assim, tornou-se a segunda mulher diretora de cinema atuante na França, precedida por Alice Guy Blaché. Vanguardista, seu filme “La Fête espagnole” (algo como “A Festa Espanhola”, em tradução livre), de 1919, é conhecido por inaugurar o cinema impressionista francês. Estrelado por Ève Francis como a dançarina Soledad, a trama se passa durante um dia festivo em uma pequena cidade espanhola e acompanha a luta de dois amigos de longa data pela mão da personagem, Entretanto, ela não se interessa por nenhum deles e tem sua atenção voltada a um terceiro homem, o jovem Juanito (Robert Delsol).

Alice Guy Blaché
Alice Guy Blaché, diretora e roteirista pioneira na França. (Imagem: reprodução)

Anos mais tarde, “La Souriante Madame Beudet” (“A Sorridente Madame Beudet”, 1923), considerado o primeiro filme feminista da história, firmou sua liderança no cinema impressionista francês, enquanto “La Coquille et le Clergyman” (“A Concha e o Clérigo”, 1927) a estabeleceu como líder também no cinema surrealista. O primeiro, uma sátira à burguesia e crítica à opressão de gênero exercida através do matrimônio, conta a história de Madame Beudet (Germaine Dermoz), uma dona de casa infeliz em seu casamento de modelo tradicional, tão característico do século XIX, e entusiasta da modernidade do século XX.

Seu marido costuma brincar de roleta russa com um revólver não carregado. Madame Beudet, então, carrega o cartucho do revólver, visando causar a morte do marido por aparente suicídio ou acidente, mas ele acaba apontando a arma para ela e não para si mesmo. “La Coquille et le Clergyman”, por sua vez, acompanha um clérigo que, obcecado pela esposa de um general, enfrenta alucinações eróticas e estranhas visões sobre morte e luxúria.

Cena de “La Souriante Madame Beudet” (1923)
Cena de “La Souriante Madame Beudet” (1923). (Imagem: reprodução)
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A autora Sandy Flitterman-Lewis (1990, p. 7) comenta que os filmes são frequentemente comparados como representantes dos dois “polos” do trabalho de Dulac: em “La Souriante Madame Beudet”, ela afirma que ”uma sequência narrativa bastante tradicional é amplificada por uma gama de técnicas poéticas e cinematográficas para evocar o mundo interior de sua personagem principal”. Este tradicionalismo narrativo talvez se deva ao fato de o filme ser inspirado em uma peça de teatro, da qual, inclusive, mantém o título. Já “La Coquille et le Clergyman” faz uso de “um tipo de experimentação anti-narrativa que beira a abstração”.

Para Lewis, porém, apesar do contraste em termos técnicos e narrativos, o “profundo compromisso com questões feministas”, que caracteriza todo o trabalho de Germaine Dulac, é um ponto de conexão entre os dois filmes.

Cena de “La Coquille et le Clergyman” (1927), Germaine Dulac
Cena de “La Coquille et le Clergyman” (1927). (Imagem: reprodução)

Dulac também debatia as disparidades entre os modelos tradicional e moderno e as preocupações morais e econômicas dos “novos homens e mulheres” do período posterior à Primeira Guerra Mundial. Para isso, ela recorria a técnicas narrativas e formais e a um “uso altamente cinematográfico e sociopolítico do espaço e do tempo” (WILLIAMS, 2014, p. 4), por meio de noções de escala, ritmo, movimento, repetições, contraposições e da intertextualidade, através, por exemplo, da associação entre o pictórico e o gestual rítmico, concebendo o cinema como um universo simbólico.

Em seus filmes finais ela recorreria à dança como metáfora discursiva que se opunha à tradicional estrutura narrativa linear. Algumas obras, ainda, contrariavam noções heteronormativas e abriam espaço para um subtexto queer — notadamente “L’Invitation au Voyage” (1927) e “La Princesse Mandane” (1928).

Cena de “La Princesse Mandane” (1928).
Cena de “La Princesse Mandane” (1928). (Imagem: reprodução)

A postura política, a vida privada como uma mulher lésbica (ou bissexual, não se sabe ao certo) e o trabalho como cineasta foram questões conflituosas com a família de Dulac. Ainda assim, ela herdara a fortuna do pai e também a de seu tio, Raymond Saisset-Schneider, um funcionário público de alto escalão. Em 1929, parte desse dinheiro foi usado para produzir seus próprios filmes, uma série de curtas-metragens abstratos: “Disque 957” (6 min), “Étude cinégraphique sur une arabesque” (7 min) e “Thèmes et variations” (12 min).

Cena do abstrato “Disque 957” (1928), Germaine Dulac
Cena do abstrato “Disque 957” (1928). (Imagem: reprodução)
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Findada a era do cinema mudo, Germaine Dulac não se aventurou pelo cinema sonoro de ficção. Sua transição para o cinema de não-ficção se deu no início de década de 30, como diretora-fundadora de uma das mais importantes companhias de newsreels da época, a France Actualités Gaumont. Ela acreditava na objetividade do newsreel, em seu compromisso com a realidade e em sua capacidade de revelar significados para além daqueles apreendidos pelo olho humano.

Alguns de seus projetos não-ficcionais tinham associação com a Frente Popular, uma aliança de movimentos de esquerda que operou na França em meados da década de 30. “Le cinéma au service de l’Histoire” (“O Cinema a Serviço da História”, em tradução livre, 1935), como o próprio nome indica, pensava o papel histórico do cinema, abrangendo o período entre os anos de 1905 e 1935 por uma perspectiva política, econômica e social.

Germaine Dulac em sua casa, na década de 30, em frente a um retrato seu.
Germaine Dulac em sua casa, na década de 30, em frente a um retrato seu. (Imagem: reprodução)

Como outras cineastas já abordadas nesta coluna, a importância de Germaine Dulac tem sido menosprezada por estudiosos da história do cinema. Não por isso, entretanto, sua contribuição deve ser desvalorizada. É interessante notar como todos os aspectos de sua vida convertem-se em seu trabalho como cineasta: suas perspectivas teóricas, críticas políticas e sociais e seu ativismo feminista; e em como, já naquela época, seu cinema opunha-se à realidade de uma atividade que adotara o modelo industrial, comercial e, sobretudo, patriarcal.

FONTES:
  • FLITTERMAN-LEWIS, Sandy. ‘Poetry of the unconscious’: circuits of desire in two films by Germaine Dulac: La Souriante Mme Beudet (1923) and La Coquille et le Clergyman (1927). In: HAYWARD, Susan; VINCENDEAU, Ginette. French film, texts and contexts. Routledge: London, 1990.
  • HOUBRE, Gabrielle. Germaine Dulac na vanguarda do cinema: A sorridente senhora Beudet (1923) ou a subjetividade feminina filmada (posta em imagens). Susana Bornéo Funck, Luzinete Simões Minella, Gláucia de Oliveira Assis. Linguagens e Narrativas. Desafios Feministas, 1, CopiArte, pp.283-299, 2014, 978.85.8388.026.4. <hal-01353776>
  • PETROLLE, Jean; WEXMAN, Virginia Wright. Women and Experimental Filmmaking. University of Illinois Press: Urbana, 2005.
  • WILLIAMS, Tami. Germaine Dulac: A Cinema of Sensations. University of Illinois Press: Urbana, 2014.

Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

Escrito por:

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Laysa Leal é bacharel em Cinema e Audiovisual com foco em roteiro, direção de arte e crítica especializada. Apaixonada por artes visuais, tem formação profissionalizante em fotografia e atua também como fotógrafa. Não dispensa uma boa música e está sempre pelo circuito de shows e festivais, uma das poucas ocasiões em que prefere o frenesi à quietude de museus e galerias de arte ou ao conforto de salas de cinema.
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