“A Felicidade Delas” ou quando amar é um pulsante transbordar (23ª Mostra de Tiradentes)

“A Felicidade Delas” ou quando amar é um pulsante transbordar (23ª Mostra de Tiradentes)

A quebra na expectativa de um filme é um artifício que geralmente almeja a produção de catarse no espectador. “A Felicidade Delas“, curta-metragem dirigido e roteirizado por Carol Rodrigues, exibido na 23ª Mostra de Tiradentes, utiliza esse recurso de forma muito criativa. O primeiro plano do filme forja uma tomada em que a câmera percorre por entre corpos de mulheres na Marcha Mundial do 8 de março. Músicas, adereços, palavras de ordem vão adentrando a cena. O que à princípio parece ser mais um filme que enfoca as recentes manifestações políticas feministas rapidamente dá lugar a um cenário de perseguição policial.

São raros os filmes brasileiros de ficção protagonizados por mulheres em que a transgressão às normas culmina em conflitos com a polícia. Esse aspecto, em geral, remete a um imaginário masculino. No ano anterior, na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, foi lançado o longa-metragem cearense “Tremor Iê“, dirigido por Lívia de Paiva e Elena Meirelles, na chave da ficção científica, que de certa forma dialoga com o curta de Carol Rodrigues, à medida que propõe soluções imaginativas que fogem do ordinário.

Ivy Souza em cena de “A Felicidade Delas”, curta-metragem exibido na 23ª Mostra de Tiradentes
Ivy Souza em cena de “A Felicidade Delas” (Foto: divulgação)
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Logo após essa sequência inicial, os corpos em jogo – e que protagonizarão o curta – se destacam. Duas jovens mulheres negras sem nome (interpretadas por Ivy Souza e Tamirys O’hanna) se ajudam para escapar da invasiva caçada policial empreendida contra quem estava apenas exercendo o direito cívico de protestar. A dinâmica da narrativa se altera e o trabalho de som é crucial para criar uma atmosfera de suspense nessa fuga que as mulheres empreendem por ruelas e becos de uma São Paulo estilizada. Os grafites nas paredes e muros compõem o cenário, merecendo relevo aqui a ótima direção de arte.

O ponto alto do filme é a elaboração narrativa calcada na total ausência de diálogos. Toda a construção imagética é realizada através da mise-en-scène e de uma pungente direção de atrizes. Some-se ainda aos aspectos já mencionados um belíssimo jogo de luz e sombra aliado a uma fotografia, assinada por Julia Zakia, que alterna as cores do quadro na proporção em que as sensações e percepções das personagens vão mudando. Impossível não lembrar do icônico filme norte-americano “Pariah“, dirigido por Dee Rees, em que a paleta cromática também dita o ritmo sensorial da trama.

“A Felicidade Delas” foi exibido na mostra temática do festival de Tiradentes, que tem na “imaginação como potência” a proposta de criar novos mundos para que as diversas formas de existência sejam plenamente viáveis. Não à toa, a aposta do filme culmina numa enchente dramatúrgica que, como numa tromba d’água, transborda as sensações das personagens visando construir outros caminhos para que novas configurações passem a ocupar aquilo que antes era solo infértil. As ruas, a noite, a política são comumente lugares tidos como interditos para as mulheres. Apropriar-se de ruas, becos, vielas, avenidas e ousar ocupar todos os espaços de forma plena, encharcando de amor todos os entornos é, sem dúvida, uma enorme e provocadora subversão.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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