O Mundo Sombrio de Sabrina – 3ª temporada: a força do matriarcado e uma grande bagunça

O Mundo Sombrio de Sabrina – 3ª temporada: a força do matriarcado e uma grande bagunça

A primeira e a segunda parte de “O Mundo de Sombrio de Sabrina” foram absolutos sucessos de recepção em seu lançamento. Estreando no dia 24 de janeiro, a terceira temporada chega com o mesmo tom sombrio e satírico mantido pela segunda parte da trama, no entanto, peca em achar a linha narrativa e amarrar as possibilidades do roteiro.

AVISO: O texto abaixo contém spoilers da 3ª temporada

Expansão da mitologia infernal

Desde o começo da nova temporada somos apresentadas ao inferno – e, nesta parte, a série consegue manter a construção de sua mitologia tão bem quanto na primeira e segunda partes. Uma das grandes sacadas de Sabrina é o jogo de palavras e representações do inferno e de satã que, aparentemente sutis e bobas, acabam criando um tipo de humor satírico com a nossa concepção de sociedade e línguas ao cristianismo e figuras divinas. “Filha de um anjo!” como xingamento, por exemplo.

O inferno se apresenta na terceira temporada como uma nova terra, todo um “país” subdividido em cidades, florestas, partes diferentes – uma capital. A construção metafórica dos espaços infernais, de suas figuras e o embasamento das sátiras ali elaboradas se coloca com a mesma sutileza e “bobice” do que vimos com a linguagem.

Sabrina (Kiernan Shipka) na 3ª temporada de "O Mundo de Sombrio de Sabrina".
Sabrina (Kiernan Shipka) na 3ª temporada de “O Mundo de Sombrio de Sabrina”. Imagem: Netflix/divulgação

A série em si é toda feita de representações caricatas dessas figuras, é a sua proposta, mas perceber a sutileza com que cada figura traz embasamento é um dos pontos positivos da narrativa. A capital se chamar Pandemônio, as relíquias demoníacas estarem ligadas às violências sofridas pelo Nazareno, os reis demoníacos, tudo é feito de caricaturas – mas, ao se observar, demandam certa pesquisa e certa amarração para funcionarem.

Fortalecimento das figuras femininas em O Mundo Sombrio de Sabrina

Outro ponto forte do que a série havia trazido até aqui, as figuras femininas saem da segunda temporada para um novo ciclo de fortalecimento, apesar dos obstáculos e confrontamentos. Logo nos primeiros minutos do episódio de abertura da nova temporada, vemos a continuação do dilema de Zelda (Miranda Otto) e Hilda (Lucy Davis) – principalmente de Zelda – em não mais venerar Lúcifer (Luke Cook), o homem que as subjugou e traiu na temporada passada.

O fortalecimento das figuras femininas na 3ª temporada de "O Mundo Sombrio de Sabrina"
Cena da 3ª temporada de “O Mundo de Sombrio de Sabrina”. Imagem: Netflix/divulgação

Ao assumir as rédeas da Academia com a fuga de Faustus Blackwood (Richard Coyle), Zelda se vê sem saber para quem rezar e para quem pregar junto aos alunos – mas fica firme na decisão de não mais honrar o nome de Satã. É aqui que a figura de Lilith (Michelle Gomez) retorna, agora autoproclamada Rainha do Inferno. Enfrentando uma guerra civil para ter seu novo posto respeitado, é quase divinal (para usar um jogo de palavras) a cena em que, do seu trono demoníaco, ela houve as preces das bruxas da Academia em seu nome.

O próprio desfecho da terceira temporada é uma ode à narrativa da série de fortalecer as identidades femininas e as redes de apoio entre mulheres. Com o coven perdendo sua força ao renegar Lúcifer, a tentativa mais forte e sólida de algum tipo de proteção é o chamado às bruxas antigas em pedido de ajuda. Mesmo irritadas com a convocação forçada, elas concordam em ajudar o coven ao ouvir o apelo Zelda.

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Zelda (Miranda Otto) e Hilda (Lucy Davis) na 3ª temporada da série.
Zelda (Miranda Otto) e Hilda (Lucy Davis). Imagem: Netflix/divulgação

Daí por diante a temporada constrói, no que talvez seja o plot mais bem amarrado da história, o respeito – apesar da irritação e desgosto mútuo – que essas mulheres têm minimamente entre si. E, principalmente, o entendimento da necessidade de proteção de umas com as outras.

Na resolução final do problema de enfraquecimento do coven, a sensação de que a série constrói uma ideia de matriarcado potente e a elevação da figura feminina atinge seu ápice: após uma revelação no limbo entre o mundo dos vivos e dos mortos, Zelda entrega seu coven à Hécate, simbolizada na mitologia de Sabrina como a representação Deusa Trina, jovem, madura e idosa.

Quem Sabrina se tornou?

Porém, ao mesmo tempo em que acerta com a construção da aura de matriarcado em suas pontas e personagens secundárias, a terceira parte de “O Mundo de Sombrio de Sabrina” chega com um incômodo – desde o trailer, diga-se de passagem – ao construir o dilema inicial da personagem principal no início da temporada.

Sabrina (Kiernan Shipka) e Nick (Gavin Leatherwood) na terceira temporada. 
Sabrina e Nick (Gavin Leatherwood). Imagem: Netflix/divulgação

Na primeira parte, Sabrina (Kiernan Shipka) precisa lidar com o conflito entre sua vida bruxa e seu relacionamento mortal com Harvey (Ross Lynch). O namoro com Harvey é o pontapé inicial, mas consegue abrir espaço para entendermos que o que prende Sabrina à vida mortal é muito mais do que ele; soma-se aos amigos, Roz (Jaz Sinclair) e Theo (Lachlan Watson), à vivência na escola e às atividades de uma jovem “normal”. Entretanto, o contraste é direto com o que vemos na terceira temporada – principalmente nos primeiros episódios – e na continuação de seu relacionamento com Nick (Gavin Leatherwood).

Ao final da segunda parte, Sabrina descobre sua origem: ela é a verdadeira “herdeira” do inferno, filha de Lúcifer, uma Morningstar. E seu pai quer forçá-la, ao ser temporariamente derrotado, a reclamar o trono infernal para si. Paralelamente, Lúcifer está preso ao corpo de Nick e os dois foram arrastados ao inferno para servir à rainha recém-proclamada Lilith.

Lilith (Michelle Gomez) na nova temporada da série da Netflix
Lilith (Michelle Gomez) na nova temporada. Imagem: Netflix/divulgação

Desde o trailer o incômodo se apresenta porque Sabrina, uma personagem feminina que, apesar de envolta em clichês menores, fora até agora representada com desejos, ações e decisões tomadas completamente para além de interesses amorosos em homens, parecia unicamente movida neste momento por seu desejo por Nick e por salvá-lo – passando por cima de todo o resto. No trailer, podia-se dar o benefício da dúvida à sensação por estar aberto a brincadeiras e construções de mistério, mas essa representação duvidosa se manteve.

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Após largar mão da própria família e, inclusive, do conforto dos amigos para descer ao inferno em busca de Nick, Sabrina é confrontada pelo próprio pai e não pensa duas vezes antes de reclamar o trono infernal – aparentemente, pela construção da narrativa, unicamente por causa de Nick. E é isso que vemos no decorrer dos próximos episódios, de forma mais explícita ou diluída: grande parte da narrativa de Sabrina, suas questões, medos e motivação – que antes eram mais individualistas, para o bem ou para o mal – agora estão completamente envoltas na figura de Nick e no seu amor por ele.

Sabrina e seus amigos na terceira temporada de O Mundo Sombrio de Sabrina
Sabrina e seus amigos. Imagem: Netflix/divulgação

O que cria a próxima contradição da narrativa. Na segunda parte, vimos a evolução de Sabrina ao lidar com seus sentimentos por Harvey e aceitá-lo como amigo e companheiro de Roz. Começamos a terceira parte já sendo apresentadas a essa nova narrativa de uma Sabrina quase completamente dependente de Nick – mas, com a chegada dos últimos episódios, começam pistas em cenas e visões de Roz de que talvez Sabrina e Harvey ainda sintam algo um pelo outro, de uma forma completamente solta no enredo que se constrói. Assim, o plot não se amarra, e ao juntar as sensações, nenhuma das duas construções parece se consolidar na série.

A força dos personagens “secundários” em O Mundo Sombrio de Sabrina

Mas, ao tentarmos entender toda a confusão com a construção da personagem principal, temos outro reforço de narrativa que, aos trancos e barrancos, funciona: o fortalecimento de personagens secundárias na trama da história, com diversos destaques.

Prudence (Tati Gabrielle), que roubou a primeira parte e ganhou mais espaço na segunda, está ainda mais em cena ativamente na terceira. Sua personagem consegue manter a dualidade que foi apresentada desde que foi introduzida – não se pode julgá-la por boa ou má, mas como uma humana (ou melhor, bruxa) complexa ao buscar sua identidade e seus objetivos.

Sua relação com Ambrose (Chance Perdomo) funciona perfeitamente ao encaixar nessa premissa – apesar dos problemas, Ambrose constrói uma vida, uma dupla de ação, ao lado dela. Nenhum dos dois está completamente focado no outro da forma problemática que poderia ser.

Prudence (Tati Gabrielle) e Ambrose (Chance Perdomo). Imagem: Netflix/divulgação

No entanto, o que esperávamos ver mais de Roz e Theo acaba se perdendo um tanto. Suas jornadas identitárias parecem diluídas na narrativa, de forma mais fraca do que as pontas que foram deixadas ao final da segunda parte. Porém, é a partir de Theo que temos a introdução de um novo e interessante personagem – e de uma nova relação destruidora de estereótipos.

Assistimos a descoberta cuidadosa de Theo e de sua identidade ao longo da primeira e segunda partes e era esperado vê-lo agora, completo, na terceira. É aqui que somos introduzidas a Robin (Jonathan Whitesell): novo estudante na escola, que imediatamente se identifica com Theo.

A construção do relacionamento dos dois é feita de forma delicada e respeitosa. Mesmo que a relação passe por uma “mentira”, o cuidado é trabalhado entre eles para que tudo seja natural e se mantenha dessa forma. É a representação “desenhada” do que falamos quando nos referimos em naturalizar relações LGBTQ+ em narrativas: é importante mostrar seus obstáculos e jornadas identitárias, mas também é interessante narrativas naturalizadas e sutis.

Theo (Lachlan Watson) e Robin (Jonathan Whitesell)
Theo (Lachlan Watson) e Robin (Jonathan Whitesell). Imagem: Netflix/divulgação

“Vilões” quase sem força

Contudo, um personagem secundário introduzido nesta terceira temporada que esperamos que tenha força de antagonista, frustra. Caliban (Sam Corlett), ao desafiar o trono de Sabrina, com Lúcifer jogado para escanteio, promete ser o “vilão” e atacar Sabrina e o coven, mas não consegue. Ou consegue fracamente, de forma apagada e mal aproveitada pela narrativa da série.

Caliban (Sam Corlett) em cena da terceira temporada da série.
Caliban (Sam Corlett) em cena da terceira temporada. Imagem: Netflix/divulgação

A verdade é que nenhum dos “vilões” desta temporada consegue ser semeado de forma convincente ou potente com as histórias apresentadas. Mesmo a ameaça dos Pagãos – outra grande promessa introduzida na série e que demonstra que há embasamento – e o retorno de Blackwood, agora munido de uma força oculta inexplicável, acabam se arrastando de forma confusa e perdida até mesmo para entender sua ameaça. Parece que roteiro e direção quiseram contemplar diversos fronts de ataque às personagens, mas não souberam muito bem construir nenhum. E, ao final, há pontas soltas demais para que a série tenha tempo hábil de solucioná-las de forma sólida e gratificante.

As confusões de se mexer com o tempo

Um dos plots mais confusos da temporada, principalmente do desfecho, é a introdução das magias com o tempo e a maneira que são utilizadas na mitologia da série. A segunda e terceira relíquias demoníacas precisam destas magias para serem resgatadas (e até que o entendimento de como funcionam neste momento do resgaste é plausível), mas quando Sabrina decide utilizar a oportunidade de mexer com o tempo para burlar as regras e trazer o desfecho ao seu dilema entre reinar no inferno ou permanecer na terra, tudo vira uma grande bagunça.

Primeiro, o fato de que, agora, Sabrina deseja reinar no inferno por sua livre e espontânea vontade parece solto na história. Fomos até o último episódio colocadas a acreditar que Sabrina só reivindicou o trono por causa de Nick, portanto essa súbita revelação de que ela já tinha o desejo de reinar não foi bem tecida para chegarmos ali.

Sabrina como Rainha do Inferno.
Sabrina como Rainha do Inferno. Imagem: Netflix/divulgação

Segundo, não é compreensível de forma nítida, para além da decisão talvez imatura de Sabrina, de que forma ela consegue burlar o tempo e se manter nos dois lugares ao mesmo tempo. Ou de que forma a magia funcionou para que ela pudesse manter a situação. A primeira pergunta é como a retirada de uma linha temporal dela não afetou a existência da outra porque, a priori, nada indicativo disso acontece. Mas talvez isso seja abordado na quarta temporada, que já está confirmada.

Ao final de “O Mundo Sombrio de Sabrina”, o que fica é uma desconfiança das amarrações do roteiro e da direção de entender que rumo dar para os desfechos da obra. Dessa maneira, somos apresentadas a plots arrastados por toda a temporada, que culminam num episódio final com a tentativa de resolver diversas pontas soltas e apresentar bons ganchos para a próxima temporada. Assim, Sabrina ainda consegue manter um estrondoso sucesso para a Netflix, mas seus plots mal direcionados e a bagunça em suas pontas podem ser escorregadias demais.

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Jornalista, fotógrafa, feminista e lésbica cearense. Ariana torta e viciada em qualquer série, filme ou livro que tenha mulheres amando mulheres, tem voltado sua atuação à defesa dos direitos humanos e à luta por visibilidade e representatividade lésbica. Não dispensa uma pizza ou uma balinha de gengibre das que vendem no ônibus. Nas horas vagas se atreve a escrever ficção científica.
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