Sex Education – 2ª temporada: novas perspectivas e novas identidades

Sex Education – 2ª temporada: novas perspectivas e novas identidades

Após o grande sucesso da primeira temporada, “Sex Education” retorna em uma segunda temporada bem mais madura, inteligente e refletindo sobre seus próprios erros cometidos anteriormente. Se na primeira as espectadoras se divertiram com as histórias em torno da Clínica do Sexo criada por Otis (Asa Butterfield) e Maeve (Emma Mackey), na segunda vemos uma abordagem narrativa bem diferente e transformativa.

Apesar de ainda trabalhar com casos relevantes dos adolescentes dentro da escola, com o Otis e a Maeve tomando frente desse espaço, organizando-o e aconselhando os alunos em troca de dinheiro, ou até mesmo em dar continuação ao relacionamento entre Eric (Ncuti Gatwa) e Adam (Connor Swindells), nesse momento são outros personagens e novas perspectivas que são priorizadas, e esse é o grande acerto dos produtores da série.

Ao invés de continuar num espaço seguro, que já tinha conquistado milhares de fãs ao redor do mundo, que é o que a grande maioria das séries da Netflix e de outras produtoras fazem, a criadora Laurie Nunn e sua equipe fantástica preferem se reinventar e demonstrar que, apesar dos temas serem ainda muito próximos entre si e dentro do mesmo universo, existem milhares formas de contá-los. 

“Sex Education” se reinventa na segunda temporada

Sex Education 2ª temporada (crítica)

A cada episódio podemos ver essas inventivas formas de se abordar problemas sexuais, familiares e afetivos que, claro, já estavam presentes na temporada anterior, mas nessa a produção vai muito além. Aqui, temos uma atenção maior aos personagens que eram ditos como secundários. Com destaque no trio Otis-Maeve-Eric e até mesmo na Dra. Millburn (Gillian Anderson) e seus relacionamentos – que ainda está presente, mas de uma forma bem dosada e menor do que a temporada anterior – , a série volta seus olhos para personagens que ainda não foram tão abordados, como o caso de Adam, Aimee (Aimee Lou Wood), Lily (Tanya Reynolds), Jackson (Kedar Williams-Stirling) e Olivia (Simone Ashley).

Além disso, a segunda temporada insere novos personagens: Viv (Chinenye Ezeudu), Rahim (Sami Outalbali) e Isaac (George Robinson). Introduzindo-os de forma bem natural e nada superficial, a série retrata tais personagens como novos símbolos de inclusão, além de exemplos de lealdade, amizade, inteligência e amor, mesmo que não romântico.

Viv, vivida pela atriz Chinenye Ezeudu, é uma menina negra extremamente inteligente e cheia de talentos, que participa do quiz-team e procura a todo momento criar novos pontos e objetivos para entrar na faculdade dos sonhos. Mas apesar de todas essas características maravilhosas, Viv não tem muito o dom para relações sociais, sejam elas amorosas ou de laços de amizades. Entretanto, isso não dura muito tempo até ela se tornar tutora de Jackson e ir se transformando aos poucos.

Rahim, vivido pelo ator Sami Outalbali, é uma pessoa não-branca de descendência oriental, que é reconhecido primeiramente na escola como o novo garoto francês que arranca suspiros por onde passa, devido sua beleza e ar misterioso. Porém, descobre-se depois que Rahim é gay e aos poucos constrói-se um relacionamento saudável e bonito com Eric.

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E por fim, mas não menos importante, temos Isaac, o novo vizinho de Maeve que adora pregar brincadeiras com ela e com os outros vizinhos. Isaac, vivido pelo ator George Robinson, é um menino que possui uma deficiência física, mas que não se determina por ela. Ao contrário do olhar capacitista e estigmatizante que outras obras dão, ele é um garoto normal que tenta construir sua identidade e (talvez) se apaixonar.

Na segunda temporada, não apenas o tratamento aos personagens foi diferente, os temas também são mais diversos. Dessa maneira, é perceptível a intenção de incluir mais a diversidade afetivo-sexual. Mesmo que antes já tenha tido uma discussão não romantizada e séria sobre a sexualidade, a nova temporada evolui brilhantemente sua narrativa ao discutir a incidência da assexualidade e da bissexualidade. A série ainda abordou discussões sobre como os casais (até mesmo os adultos) geralmente não conversam sobre suas preferências e vontades numa relação sexual, e de como isso afeta diretamente em como nos comportamos perto de nossos parceiros. E, principalmente, analisa a necessidade de se ter em mente que casamentos podem ruir se não o nutrimos amorosa e sexualmente.

Novos personagens da 2ª temporada
Viv (Chinenye Ezeudu), Rahim (Sami Outalbali) e Isaac (George Robinson) são os novos personagens de “Sex Education”. (Imagem: reprodução)

Quanto ao tema da bissexualidade, vemos o retorno de um casal conturbado e cheio de problemas: o relacionamento entre Eric e Adam. No início da temporada, Adam se confronta com o colégio militar e com a possibilidade de que pode gostar de garotos. Após ser expulso devido certos problemas que criou dentro do colégio, Adam retorna para sua casa, vivenciado novamente uma relação abusiva com seu pai. Assim, o personagem volta a procurar Eric, no entanto, tal aproximação justifica-se mais como um apoio emocional.

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Eric, porém, já está se relacionando com Rahim, e enfrenta uma confusão emocional muito grande. Ao mesmo tempo que gosta de sair com Rahim, nem sempre se sente a vontade de ser ele mesmo quando está com o novo personagem. Eric também encontra uma paixão diferente com Adam, nascida de uma relação de bullying e homofobia, mas que acabou evoluindo para uma relação de companheirismo e novas descobertas.

Parece um pouco clichê a ideia do relacionamento entre Eric e Adam, pois já ocorreu em outras obras, mas a série cria a oportunidade de dar suporte a um personagem muito importante. Adam constrói o seu comportamento através da repressão de sua sexualidade – além de ser ofensivo com outras pessoas – devido às atitudes agressivas do pai, chamando atenção ao demonstrar certa carência de se descobrir, fazer amigos, e permitir-se ser livre. Um ponto alto desta temporada.

Para além disso, “Sex Education” traz um tratamento ainda mais intenso sobre o relacionamento afetivo não amoroso entre homens, que são apenas amigos e desejam se apoiar mutuamente. Algo que é pouquíssimo abordado e é extremamente necessário para que se acabe com certos papéis sociais masculinos tóxicos de agressividade.

Mas também realiza autocrítica e autorreflexão…

Sex Education 2ª temporada (crítica)
Dra. Millburn (Gillian Anderson) em “Sex Education”. (Imagem: reprodução)

Nesta segunda temporada, a série também corrige certos pontos complicados da temporada anterior, pois mesmo que seja divertido e muito relacionável com a vida real, os casos trabalhados dentro da Clínica Sexual do Otis e da Maeve não eram tratados corretamente.

A maneira de se discutir e de proceder à educação sexual não é por uma pessoa não-profissional, que não está capacitada para fazer tais atendimentos. Dessa forma, a série apresenta a problemática de que, sim, é necessário que adolescentes conversem e se aconselhem sobre esse assunto, mas não é correto que um adolescente do ensino médio trate dessas questões como se fosse uma pessoa capacitada para tanto. Ou como se fosse a única perspectiva possível para aquela situação. Então, um acerto foi focar em como a Dra. Millburn, mãe de Otis, além de atuar na educação sexual dentro da escola, descobriu que o seu filho estava recebendo dinheiro de colegas para aconselhá-los sexualmente, o que revela um grande twist na história.

Ademais, há um contraste muito grande com as políticas educacionais voltadas à relação sexual aqui no Brasil, em que recentemente o governo anunciou que a grande política pública para se evitar a gravidez na adolescência seria a abstinência sexual (o que parece uma grande piada, tendo em vista que o problema da gravidez na adolescência não é necessariamente a relação sexual, mas sim a desinformação sobre ela e de como proteger-se). Portanto, há uma figura completamente distorcida e desqualificada pensando sobre tais projetos que afetam diretamente a nossa vida.

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Dessa maneira, a Dra. Millburn demonstra que um acesso especializado a uma educação sexual (des)estigmatizante pode abrir portas para o nosso próprio conhecimento, para que nossas relações pessoais e amorosas se transformem. A personagem ainda discute que é importante haver uma valorização do nosso próprio corpo enquanto mulheres, retirando a vergonha como algo comum dentro desses espaços. Portanto, para algumas pessoas a série pode parecer até superficial em tais assuntos, no entanto, ela cria um espaço relevante e profundo sobre certas questões que ainda são tratadas como verdadeiros tabus perante a sociedade. 

Maureen Groff, a sororidade, e o abuso cotidiano que as mulheres enfrentam

Outro grande ganho nesta temporada é o foco na história das pessoas adultas envolvidas na narrativa, para além da mãe de Otis e de seus relacionamentos, mas, principalmente, sob a luz da mãe do Adam, a Maureen Groff (Samantha Spiro).

Ela aparece no início de uma forma bem reduzida, no entanto, evolui para uma das personagens mais realistas de toda a série. Educada sem ter conhecimento a respeito do seu próprio corpo e prazer íntimo, foi abandonada sexualmente dentro do casamento por um marido abusivo e tóxico – não só com ela, mas com seu filho também. E mesmo após tantos anos e com uma certa idade, ela percebe a necessidade de se (re)conhecer. Ou seja, por tanto tempo, Maureen priorizou sua família e acabou esquecendo de si e de criar amizades. Tal acontecimento é muito representativo, pois não é comum que essas histórias sejam priorizadas ou levadas a sério por grandes produções.

Aimee (Aimee Lou Wood) e Maeve (Emma Mackey) na 2ª temporada, onde a série retrata o abuso sexual em transportes públicos
Cena da 2ª temporada de “Sex Education”. (Imagem: reprodução)

Ademais, Maureen Groff é apenas uma das personagens que levantam esse símbolo que carrega o apelo sobre a necessidade de personagens femininas reais e palpáveis dentro das obras. Partindo do reflexo da produção ter priorizado mulheres em cargos de criação – pois ainda temos uma visão única dentro da grande criação de séries na indústria – a abordagem sobre o assédio sexual e seus efeitos psicológicos é muito significativa e sensível no tocante às mulheres.

Durante um episódio, a caminho da escola, num ônibus, a personagem Aimee passa por uma situação extremamente abusiva – que infelizmente é muito comum aqui no Brasil – que é o ato de um homem masturbar-se e gozar em cima da mulher sem qualquer consentimento. Num primeiro momento, a personagem considera aquilo como algo “normal” e não aparenta sofrer qualquer tipo de dano em decorrência do abuso. No entanto, durante diversos episódios a série trabalha com muita sensibilidade na evolução do trauma construído em nós, mulheres, em decorrência de tal abuso; um comportamento sexista que é tão visto em transportes e espaços públicos. Além disso, a série mostra a indispensabilidade da sororidade e da união das mulheres nesse quesito.

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Logo após a descoberta do que aconteceu com Aimee e os efeitos causados pelo abuso, diversas mulheres – até mesmo as que não eram amigas próximas ou que passaram por momentos de rivalidade – uniram-se para apoiá-la e ajudá-la na superação do trauma. 

Ainda sobre esse assunto, pode-se extrair também a necessidade de órgãos mais instruídos e capacitados para lidarem com essa situação, bem como foi demonstrado no caso de Aimee, que pode, inclusive, servir de reflexo para lugares como o Brasil. Logo após Aimee contar para Maeve o que aconteceu, esta faz com que sua amiga se dirija à delegacia para prestar queixa e garantir que o homem responsável não realizasse aquilo com mais ninguém. Quando elas chegam lá, os policiais em serviço, apesar de argumentarem e questionarem um pouco, são prestativos e buscam fazer com que aquele momento seja o menos desconfortável possível.

Porém, isso não é o que acontece no Brasil, pois além de não existir um acesso especializado e humanizado dentro desses órgãos, somos desencorajadas a prosseguir e, quando prosseguimos, nem sempre recebemos justiça. Dessa maneira, precisamos não apenas de órgãos repressores, o que envolve a Polícia, as Delegacias, o Judiciário, entre outros, mas também dispor de instituições e cargos dentro das escolas, que falem sobre como lidar quando uma situação dessa ocorrer. É preciso que ofereçam suporte emocional e psicológico para as mulheres que foram vítimas, assim como também trabalhem com homens em formação no sentido de barrar que isso aconteça novamente. 

A melhor temporada de Sex Education até o momento

Sex Education 2ª temporada (crítica)
Lily Iglehart (Tanya Reynolds) e Ola (Patricia Allison) em cena da 2ª temporada. (Imagem: reprodução)

A série consegue se reinventar e dar uma nova cara a algo que parecia já ter estabelecido e, por isso, ganha como a melhor temporada da série; pelo menos a mais original, consagrando-se como, talvez, a melhor série atual em termos de representatividade.

“Sex Education” vai muito além da representatividade de seus personagens, indo para termos de direção, produção, atores de diversas etnias e sexualidades, bem como sobre a evolução dos personagens e das histórias apresentadas aos espectadores, ou pelo menos uma das mais populares na Netflix hoje. Bravo!

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Estudante de Direito, nordestina, pode falar sobre Studio Ghibli e feminismo por horas sem parar, amante de cinema e literatura (ainda mais se feito por mulheres), pesquisadora, acumuladora de livros e passa mais tempo criando listas inúteis do que gostaria.
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