Anne With An E – 3ª temporada: usando a imaginação nos tempos sombrios

Anne With An E – 3ª temporada: usando a imaginação nos tempos sombrios

O inevitável fim da série “Anne With An E” chegou com sua terceira temporada. Hashtags, várias menções à Netflix nas redes sociais, petições online e até outdoors na Times Square e em Toronto não foram suficientes para que a distribuidora desse à ruiva mais tempo ao lado de seus kindred spirits. A justificativa para o encerramento da narrativa no serviço de streaming, em acordo com o canal CBC do Canadá, é a baixa audiência.

Em breve resumo, indo na contramão do estilo de Anne Shirley-Cuthbert (Amybeth McNulty), “Anne With An E” é uma série canadense adaptada dos livros de Lucy Maud Montgomery, que narra a história de uma órfã ruiva que, por engano, vai parar na Green Gables dos irmãos Marilla (Geraldine James) e Matthew Cuthbert (R.H. Thompson), desejosos por um menino que os ajudasse nas tarefas cotidianas.

Anne e Montgomery compartilham alguns pontos semelhantes em suas jornadas. A autora também perdeu os pais quando era bebê, morou com dois idosos (seus avós) que zelaram por sua educação, e também tinha grande apreço pelas palavras, tanto que cursou literatura na Dalhousie University.

AVISO: Siga com a leitura caso já tenha visto a temporada, risco de spoilers

Anne With An E: um coração forte e valente

Anne começa a terceira temporada com 16 anos e determinada a encontrar suas origens. Porém, antes de partir em sua busca, estreita laços com Ka’kwet (Kiawenti:io Tarbell), uma menina indígena da tribo Mi’kmaq. Livre de preconceitos e com uma visão inocente de mundo, Anne acredita que o ingresso da nova amiga em uma escola própria para indígenas ajudará a garota a ter mais oportunidades e conhecimento.

Entretanto, esse tipo de instituição oprime e deslegitima a cultura ancestral para dar lugar ao que é visto como “civilizado”: língua inglesa, roupas ocidentais, religião cristã e até os nomes indígenas são trocados — Ka’kwet passa a ser chamada de Hanna.

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O encontro da estrela-do-mar com a coração forte e valente. (Imagem: reprodução)

Sem confirmação de uma quarta temporada, o núcleo de Ka’kwet fica sem os finais encantados e felizes típicos de “Anne With An E”. Aliás, fica sem final algum. A última cena vista pelo público é a do acampamento dos pais da pequena indígena próximo à “escola” onde a filha é aprisionada.

Para quem vive fora desse mundo bucólico, não é preciso muita imaginação para acreditar que o desfecho da família tenha sido brutal. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Mulheres e Meninas Indígenas Assassinadas e Desaparecidas, publicado em junho de 2019, cerca de 150 mil crianças foram levadas à força para essa rede de internatos entre 1883 e 1996; estima-se que aproximadamente 3.200 tenham morrido por falta de cuidados.

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O lugar da mulher

Nesta temporada o lúdico dá espaço ao real com a chegada dos 16 anos para Anne. A jovem passa a lidar com questões que não são facilmente solucionadas apenas com o poder da imaginação: abuso, casamento versus educação, censura e tantos outros. O peso dessa idade também é sentido por outras personagens, como Diana (Dalila Bela), que vive sob rígido controle parental e é educada para o casamento ao aprender etiqueta, piano clássico e francês. Porém, a convivência com sua kindred spirit, Anne, a faz lutar pela liberdade de escolher educar-se para outros propósitos que vão muito além do casamento.

Josie Pye (Miranda McKeon) é outra personagem que sente a pressão social de ser vista como mulher adulta. Durante uma festividade da região, seu prometido Billy Andrews (Christian Martyn) a convida para ir do lado de fora da festa e força contato com Josie que em seguida foge para o salão de dança. Pouco tempo após sua entrada, Billy começa a espalhar que Josie não conseguiu esperar até o casamento. Todos os olhares em reprovação se voltam à garota, exceto o de Anne.

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Anne se incomoda com os comentários maldosos direcionados à Josie Pye. (Imagem: reprodução)

A ruiva confronta Billy na própria festa, infelizmente em vão. Contudo, a fúria de Anne não foi encerrada com o fim da festividade. Logo na manhã seguinte, ela expõe o absurdo do ocorrido a seus colegas de escola, que seguem replicando o comportamento inquisitório contra Josie Pye. Porém, para quem acompanha Anne há duas temporadas, fica claro que ela não deixaria a injustiça prevalecer.

Terror do pensamento retrógrado

Amada por leitores e espectadores da série, a professora Muriel Stacy (Joanna Douglas) traz mais um instrumento para abalar a ordem de Avonlea: uma prensa. Com o presente, os alunos passam a publicar textos para a Gazeta de Avonlea. Anne logo se destaca escrevendo sobre a comunidade indígena local e o abuso enfrentado pela colega Josie Pye.

Em uma “excursão noturna”, a astuta Anne imprime sozinha os tipos para que seu artigo seja entregue com a edição distribuída na igreja pela manhã. Em seu texto, a jovem questiona a difamação sofrida pela colega e o lugar de passividade designado às mulheres, além de propor uma visão de mundo sem “estúpidas regras arcaicas”. Esses ingredientes foram suficientes para Anne ser banida da publicação e receber olhares fulminantes, inclusive das mulheres, mostrando como o machismo está impregnado naquela sociedade.

O pensamento progressista de Anne foi levado a outro patamar ao incomodar o conselho da cidade, formado por quatro homens brancos e Rachel Lynde (Corinne Koslo). Mesmo fazendo parte do órgão, Rachel não consegue opinar sobre o incidente do jornal e os homens decidem que a prensa deve ser levada da escola. Entretanto, a prensa não foi só levada, como a escola também foi incendiada. Na contramão do efeito desejado pelo conselho, esses eventos serviram como combustível para os alunos organizarem uma passeata contra a censura, comprovando que a imprensa é o terror daqueles de pensamento retrógrado.

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O protesto ainda teve a participação de Prissy, que estava na faculdade. (Imagem: reprodução)

Amadurecimento em “Anne With An E”

A questão do amadurecimento não está presente apenas nos 16 anos de Anne, mas também nas relações interpessoais da ruiva. Desde a chegada da garota à Green Gables, Marilla é a mais ferrenha na criação de Anne dentre os irmãos Cuthbert, o que gerou diversos desentendimentos entre as duas, mas não menos amor. Ao longo dessa temporada observamos uma Marilla mais compreensiva e que, apesar de relutante em algumas situações, apoia Anne com afinco, inclusive cobrando mais demonstração de sentimento por Matthew para com a jovem que está de partida para a faculdade.

O desejo de Anne de descobrir suas origens importunou Marilla por um bom tempo, que via a ação como falta de consideração e respeito por quem a acolheu. Porém, ao acompanhar as frustrações de Anne durante o processo, ela percebeu que ficar ao lado da garota a traria para mais perto do que se repudiasse a busca; de fato ela ajudou bastante, seja escrevendo cartas, consolando Anne ou indo juntamente com Matthew em busca de pistas sobre o paradeiro dos pais de sua acolhida.

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Marilla reconhece a importância de apoiar Anne em sua busca. (Imagem: reprodução)

O relacionamento entre Anne e Gilbert Blythe (Lucas Jade Zumann) também amadureceu, culminando no fatídico dia em que Anne finalmente descobre que toda aquela bagunça de sentimentos em sua mente na verdade era amor por seu companheiro de soletração. Apesar de tantos desencontros para se declararem, o crescimento da relação entre os dois não foi atropelado pelo fim da série; além disso pudemos vivenciar, de maneira divertida e graciosa, dois adolescentes se atrapalhando diante do primeiro grande amor.

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Entre tantos desencontros, Anne e Gilbert finalmente iniciam o relacionamento. (Imagem: reprodução)
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Ainda no núcleo de Gilbert, o amadurecimento da parceria entre ele e seu amigo Sebastian “Bash” Lacroix (Dalmar Abuzeid) se torna indispensável para que Bash finque suas raízes em uma Avonlea repleta de preconceitos e julgamentos. Tamanho apoio não é compreendido pela mãe de Bash, que chega à cidade para ajudá-lo com os cuidados de Delphine e da casa.

No início, a relação entre os dois é bastante conturbada e afastada, mas à medida em que a Senhora Lacroix imerge na nova família do filho as barreiras vão caindo. Com o amadurecimento desse relacionamento, outro é posto à prova para Bash com o retorno do filho de Mary (Cara Ricketts) à Avonlea. Entretanto, por falta de uma nova temporada, é impossível saber se a relação entre os dois será frutífera.

A forma como a temporada foi encerrada deu à Anne um fechamento de ciclo coerente e justo. Temos a impressão de que vivemos os tempos mágicos de Princesa Cordelia e outros amigos imaginários da protagonista, que usava de sua inventividade para sobreviver a ambientes hostis e pessoas desagradáveis.

Ao final, vemos uma Anne de grandes ideias e grandes palavras seguindo para uma fase mais madura, mas não menos aventureira. Como dito tantas vezes por ela, precisamos usar nossa imaginação, só assim teremos a tão sonhada conclusão para os personagens que amamos.


Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

Escrito por:

Rafaella Rodinistzky é graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC Minas e atualmente cursa Edição na Faculdade de Letras da UFMG. Participou do "Zine XXX", contribuiu com a "Revista Farpa" e foi assistente de produção da "Faísca - Mercado Gráfico". Você tem um momento para ouvir a palavra dos fanzines?
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