The Circle: catfishes e o que há de mais viciante nas redes sociais

The Circle: catfishes e o que há de mais viciante nas redes sociais

Que atire a primeira pedra quem não já tentou ser uma pessoa mais interessante nas redes sociais. De um simples filtro para tornar a vida mais encantadora (e invejável, sejamos sinceros) a um catfish (uma pessoa que cria perfis falsos, que não representam sua imagem real), todo mundo está careca de saber que não se pode confiar em tudo que que vê na Internet — e os participantes do novo reality showThe Circle” precisam pôr essa crença à prova.

Nesse mundo de possibilidades que é a vida online, a abertura para a imaginação é infinita — daí vem séries que exploram esse ambiente tão possivelmente distópico, como a famosa e queridinha “Black Mirror”. Pois bem, fãs da distopia tecnológica que se preparem: chegou “The Circle”, um reality show originalmente britânico, da emissora de “Black Mirror”, que migrou para a Netflix da mesma forma que a série citada, com algumas melhorias aqui e modificações ali. Coincidência? Acho que não.

Agora, a plataforma de streaming investe em três versões do programa, com três nacionalidades diferentes: uma com participantes estadunidenses (já disponível para aquela maratona de fim de semana), uma brasileira (a estrear no dia 11 de março, com Giovanna Ewbank como apresentadora) e outra francesa.

Que comecem os jogos!

A premissa do reality show é simples: oito competidores se mudam para um edifício exclusivo, com cada competidor ocupando um apartamento separado dos outros. Isolados, nenhum deles terá contato um com o outro pelo restante a competição. Como eles irão interagir? Você já deve ter adivinhado: por uma rede social, a Circle. Ativada por voz, a plataforma digital permite que os jogadores criem um perfil e interajam em chats em grupo ou privados, mas sem nunca se verem pessoalmente ou através de vídeos. Esse toque especial, inclusive, dá a “The Circle” um ar de distopia que permite que a telespectadora sinta como se estivesse dentro de um episódio de “Black Mirror”.

Ao longo do jogo, os participantes precisam ranquear um ao outro quando solicitados, de forma a colocar no topo seus jogadores favoritos. Aqueles que recebem as melhores colocações, ficando em primeiro e segundo lugar, se tornam influencers. Todos os outros jogadores estão automaticamente em risco de serem bloqueados pelos influencers, que devem tomar a decisão de quem bloquear em conjunto. O jogador bloqueado é imediatamente eliminado do jogo. Ao fim, o vencedor ganha o prêmio 100 mil dólares.

Com cada um em seu respectivo apartamento, os participantes podem escolher se vão jogar como si mesmos ou se irão assumir outra identidade, criando um perfil fictício com nome e fotografias falsas. Pequenas mentirinhas também fazem parte do pacote: mesmo aqueles que escolhem ser verdadeiros podem mentir sobre uma coisa ou outra. Participantes comprometidos, por exemplo, tendem a colocar-se como solteiros por acreditar que isso irá beneficiá-los no jogo. A regra é clara, como bem diz o slogan do programa: seja quem for preciso para vencer.

Participante do "The Circle" americano (disponível na Netflix), Seaburn escolhe jogar com as fotos da namorada.
Participante do The Circle US (disponível na Netflix), Seaburn escolhe jogar com as fotos da namorada.
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Autoaceitação e julgamentos em “The Circle”

Como tudo que gira em torno da vida online, “The Circle” levanta breves questionamentos sobre autoaceitação e a importância da percepção do outro sobre si mesmo. É curioso, por exemplo, que alguns participantes escolham virar catfishes justamente por acreditarem que, se fossem autênticos, não iriam avançar no jogo.

Essa crença cai em uma problematização fácil quando vemos casos de mais de um jogador que, ao não se encaixar no padrão de aceitação da sociedade, escolhe incorporar outra personalidade para se dar melhor no reality. Na edição dos Estados Unidos, uma participante lésbica e não-feminina, por exemplo, opta por retratar-se como uma mulher hétero e extremamente feminina, já que enxerga nisso a possibilidade de avançar no jogo ao não ser julgada pela sua aparência e conseguir se conectar com os outros competidores. Outra, apesar de trabalhar com o movimento plus size, também escolhe utilizar a imagem de uma mulher magra, no padrão de beleza.

Um sentimento ressoa entre os participantes e o público do reality: será que, de fato, se tivessem jogado com as próprias identidades, tais participantes teriam sofrido dentro do programa um julgamento que espelha o da sociedade externa? É difícil de saber. Talvez não, visto que o casting de “The Circle” é ímpar se comparado ao de outros realities, em que estamos acostumadas a um reflexo da ânsia social por assistir pessoas brancas, magras e heterossexuais interagindo. Claro, o padrão ainda existe neste programa, mas ele é quebrado pela presença de participantes gays, bissexuais, negros, obesos, imigrantes. Um sopro de representatividade.

Karyn, lésbica e não-feminina, escolhe jogar como Mercedeze em "The Circle".
Karyn, lésbica e não-feminina, escolhe jogar como Mercedeze.

Sem votação por aqui: coloque as pernas para o alto e aproveite

Com um formato singular, “The Circle” é todo articulado entre os participantes, não tendo forma alguma de interação com o público. E, convenhamos, depois do formato batido de realities baseados em voto popular, é excentricamente delicioso não ter o poder nas mãos. Parte desse sentimento talvez venha da sensação de onipresença que isso dá ao telespectador: sem a possibilidade de serem julgados por quem está fora do jogo, como no “Big Brother“, os jogadores podem ser 100% eles mesmos quando estão sozinhos.

É possível, portanto, acompanhar em primeira mão cada pensamento, cada estratégia. Sem ninguém além de si próprios presente nos apartamentos, os participantes externam seus monólogos internos e adicionam comentários pessoais no meio das conversações online — comentários estes que só o telespectador tem acesso. O sentimento é de estar vendo aquelas pessoas como elas veem elas mesmas, acompanhando seus pensamentos mais pessoais. Não há motivos para acreditar em possíveis tramas que não sejam o que está ali, de fato, acontecendo.

Mesmo com um roteiro padrão — ratings, revelação dos ratings, block —, os episódios não seguem a mesma estrutura, possibilitando que o reality tenha o fator surpresa como uma carta na manga a cada nova etapa. A maioria dos episódios conta, ainda, com finais dignos de um prêmio de melhores cliffhangers, fazendo com que a vontade de continuar assistindo o programa por horas seja ainda mais aguçada.

Acertando em cheio na seleção dos participantes, "The Circle" conta até com jogadores que odeiam redes sociais.
Acertando em cheio na seleção dos participantes, “The Circle” conta até com jogadores que odeiam redes sociais.

Busca por autenticidade em “The Circle”

Talvez a maior ironia de “The Circle” seja a autenticidade que o reality acaba extraindo dos participantes, mesmo com os catfishes e as pequenas mentiras. Em uma busca constante por se conectarem num nível mais profundo e buscarem veracidade um do outro, os competidores acabam compartilhando memórias pessoais e detalhes sobre sua vida, como uma infância difícil em lares adotivos, ou a morte de um familiar. São laços que, no fim, mesmo descobertos os catfishes, se mantém.

Cabe a reflexão: talvez o mundo virtual seja, de fato, lar de mentiras e aparências. Mas talvez seja, também, um espaço seguro para sentimentos e verdades difíceis demais para serem compartilhadas na vida real. Daí, talvez, haja uma explicação para tantos webrelacionamentos sinceros, honestos e autênticos.

Agora, resta aguardar o lançamento de “The Circle Brasil” e torcer para que este levante ainda mais questionamentos, principalmente em um cenário no qual a relação do brasileiro com a Internet vem se tornando cada vez mais delicada. Quais serão as polêmicas que nos aguardam? É esperar para ver.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Jornalista, feminista, apaixonada por escrever e doida da problematização. Adooora dar opinião sobre tudo e criticar séries, filmes e livros é uma paixão de infância.
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