Blade Runner: as coisas elétricas também têm suas vidas

Blade Runner: as coisas elétricas também têm suas vidas

Trinta e sete anos após o sucesso de “Blade Runner – O Caçador de Androides“, filme dirigido Ridley Scott e lançado em 1982, a obra icônica de Philip K. Dick continua ainda mais viva, intrigante e importante quanto nunca: em uma edição comemorativa lançada pela editora Aleph, o livro ganhou um novo projeto gráfico e a última entrevista com o autor, que faleceu pouco antes de prestigiar sua obra nos cinemas, a fim de resgatar a incrível história de Rick Deckard (no filme, interpretado por Harrison Ford). Ele é um caçador de recompensas que não apenas parte em busca de androides fugitivos, como também em busca de saber quem realmente é.

O mundo cyberpunk de “Androides sonham com ovelhas elétricas?“, título original da obra de K. Dick, não chegou a se concretizar em 2019, ano em que se passa a adaptação de Ridley Scott. Os problemas no mundo são diversos no momento, é claro, mas nada que carros voadores pudessem resolver. Agora, em 2020, o mundo inteiro enfrenta uma pandemia de COVID-19, de tal forma que o espírito do livro se faz presente em nossos dias: o isolamento tem nos feito refletir sobre quem somos, qual é o nosso papel na vida dos outros e como a empatia funciona em momentos de terrível angústia.

A pergunta fundamental que o autor levanta no decorrer do livro é: “o que nos faz humanos?”. Carne e ossos? Um coração que pulsa? Ou há algo além disto, determinando nossas visões, sonhos e esperanças de dias melhores? Quem se diz realmente humano chega a exercer a função desta palavrinha de seis letras, três sílabas e muitos significados possíveis? Infelizmente, muitas vezes a resposta para esta última pergunta é negativa — mas os humanos de verdade continuam existindo em maioria para a nossa esperança de que dias melhores virão.

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Quando uma poeira tomou conta da Terra por volta de 2021 e algumas pessoas tiveram de abandonar seus lares e emigrar para outros planetas, cada uma delas recebeu um robô humanoide, ou androide, seres muito semelhantes aos humanos e que serviriam de escravos na colonização de um novo mundo e, mesmo sendo vistos como apenas a junção de partes sintéticas, aos poucos começaram a ter sentimentos e tomar consciência de si e da exploração que vinham sofrendo das grandes empresas. Logo, se iniciaram as rebeliões de androides contra seus donos; no ímpeto de fugir dos planetas colonizados e recomeçarem a vida, estes androides voltaram para a Terra, um lugar praticamente inóspito, e passaram a se camuflar em profissões normais, a fim de viverem uma vida comum como a dos humanos e não serem descobertos.

Rick Deckard (Harrison Ford) em cena de “Blade Runner”. Imagem: reprodução.

É neste contexto que conhecemos Rick Deckard, um caçador de recompensas contratado pela polícia de San Francisco, cidade em que se passa a história do livro, para caçar e matar estes seres vistos como abomináveis pelo restante da sociedade. Nesta movimentação sangrenta e impensada, Rick se deparará com questões muito íntimas de si e dos alvos de sua caçada.

1.  O ambiente como fonte de inquietação

O sol não banha mais o nosso planeta, fornecendo calor e permitindo que seres vivos nasçam e cresçam em plena harmonia com o nosso ecossistema. Aliás, o ecossistema como conhecemos é algo que não existe mais: a poeira química que paira pelo ar é um veneno para toda a vida na Terra, incluindo os humanos que nela ainda vivem, deixando neles traços de doenças incuráveis e sequelas impensáveis.

Para aqueles que tinham condições, o conforto dos planetas colonizados eram a garantia de uma vida melhor, longe do acúmulo de sujeira e doenças que o grande Planeta Azul se tornara. No entanto, aos pobres, o que restava era sobreviver em um lugar decadente e perigoso, um berço pós-apocalíptico para viver o fim de seus dias.

É principalmente neste segundo cenário que K. Dick ambienta a sua grandiosa obra. A todo momento nos é permitido refletir sobre as ações que as pessoas no mundo real tomam no presente e o que isso poderá gerar em um futuro que não está muito longe de acontecer, infelizmente. Reflitamos sobre as condições climáticas, sobre a devastação do meio ambiente e sobre a luta de classes que nos assola há anos. Podemos ter um futuro completamente diferente do que o de “Androides sonham com ovelhas elétricas?” se começarmos a repensar nossas condutas agora. Esta é uma questão urgente.

2. Os seres, a vida e a vida dos seres

Rick Deckard, em sua peregrinação para encontrar e descobrir se de fato as pessoas investigadas são androides, vale-se do Teste Voight-Kampff, uma série de perguntas de cunho social que têm por finalidade  nivelar a empatia das pessoas e descobrir se quem está sendo interrogado é humano ou androide, dependo da reação da pessoa no momento, como ruborizar, o aumento ou não da frequência cardíaca ou a dilatação da pupila. Leia, abaixo, algumas perguntas do teste mencionadas no livro e descubra se você é um(a) androide (momento testes do Buzzfeed):

  1. “Você ganhou uma carteira de couro no seu aniversário”. O que você faria?

  2. “Você tem um filho pequeno e ele mostra a você sua coleção de borboletas , incluindo o frasco mortífero utilizado por entomologistas.” O que você faria?
  3. “Você está sentada assistindo TV e, de repente, percebe uma vespa rastejando em seu pulso.” O que você faria?
  4. “Você está lendo um romance escrito nos velhos tempos antes da guerra. Os personagens estão visitando o Fisherman’s Wharf, em San Francisco. Ficam com fome e entram em um restaurante de frutos do mar. Um deles pede lagosta, e o chef joga a lagosta dentro de um caldeirão com água fervente, enquanto os personagens observam.” O que você faria?
  5. “Você aluga uma cabana na montanha, numa área ainda verdejante. É uma casinha rústica de madeira de pinho, com uma enorme lareira. Nas paredes alguém pendurou mapas antigos, gravuras da Currier & Ives e, acima da lareira, há uma cabeça de veado, uma cabeça com os chifres bem desenvolvidos. As pessoas que te acompanham admiram a decoração da cabana e vocês todos decidem…”.

(Adaptado das páginas 71, 72 e 73)

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É nesta primeira aplicação do teste que conhecemos Rachel (no filme, interpretada pela atriz Sean Young), uma androide que acredita ser humana por ser apegada às lembranças implantadas em seu cérebro artificial pelo seu criador. Rachel causa um misto de repulsa e desejo em Deckard, que acaba se apaixonando pela moça ao passo que a conhece cada vez mais.

Rachel (Sean Young), personagem de “Blade Runner”. (Imagem: Reprodução)

Rachel é um dos personagens que nos deixam intrigados quanto à natureza das emoções dos androides. Ao passo que Deckard a investiga, assim como aos outros androides, como é o caso de Pris (interpretada por Daryl Hannah no longa de Ridley Scott), vemos que as emoções de cada um deles é verdadeira e, mesmo tendo sido programados para imitarem gestos, falas e comportamentos humanos, eles nutrem sonhos, vontades e desejos assim como os humanos. Os sentimentos são tão verdadeiros que isto acaba confundindo Rick quanto a sua própria natureza.

“Você será requisitado a fazer coisas erradas não importa para onde vá. (…) É a condição básica da vida, ser obrigado a violar a própria identidade. Em algum momento, toda criatura vivente deve fazer isso. É a sombra derradeira, o defeito da criação; é a maldição em curso, a maldição que alimenta toda vida. Em todo lugar do universo.” (páginas 186 e 187)

Este é o ponto chave nas obras de Philip K. Dick. O autor também trabalha com a questão do que torna um ser humano verdadeiramente humano em outras obras, como na antologia de contos “Sonhos Elétricos”, também publicada pela editora Aleph e transformada em série para Prime Video.

Ser humano está mais ligado com os fatores que nos movem, como nossos pensamentos e anseios, com a nossa convivência com o outro, do que com a simples existência do sangue, carne e respiração que nos permite enfrentar nossos dias: sem sentir de fato, sem nos preocupar com o próximo, sem seguir uma vida plena em conjunto com a comunidade global e tudo o que a cerca, o que nos resta? Esta é a reflexão que o autor levanta ao longo de “Androides sonham com ovelhas elétricas” e é um dos pontos fundamentais que nos guiam após o fim da jornada de Deckard e dos demais personagens do livro.

Folhas de guarda de “Blade Runner”. (Foto: Laís Fernandes)

“As coisas elétricas também têm suas vidas” é a citação escolhida como título deste texto, mas também está presente no corpo do livro, frase que nos norteia pelos questionamentos que K. Dick também gostaria de levantar. Até mesmo os animais, ao entrarem em extinção após a guerra nuclear que devastou boa parte do planeta, existem em versões sintéticas e são comprados para suprir a necessidade que um animal de estimação faz no dia dos humanos; aqueles que possuem muito dinheiro ainda conseguem comprar animais verdadeiros que existem em pouquíssima quantidade e são objetos luxuosos (isto nos faz repensar também nas relações de comércio animal ilegal que há em nossa sociedade, uma vez que os animais a serem adotados são muitas vezes rejeitados, assim como os animais-androides da história — se androides podem sonhar com ovelhas elétricas, há a possibilidade destes animais sonharem com os androides de volta ou com os humanos e terem sentimentos?).

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Folhas de guarda de “Blade Runner”. (Foto: Laís Fernandes)

3. Livro e filme: mídias que dialogam

O filme de Ridley Scott é um complemento para o livro de K. Dick. Há muitas diferenças e fatores que são deixados de fora do longa, a começar pelo título: “Androides sonham com ovelhas elétricas?” dá o tom do que o leitor encontrará no livro, mas é muito subjetivo. É preciso entender a filosofia por trás do enredo para que o nome faça sentido (o ato de sonhar, nos mundos imaginários de Dick, é o que nos faz perceber a humanidade em seus personagens). Provavelmente, pensando em facilitar o impulsionamento da obra no mercado audiovisual, Ridley Scott pegou emprestado o título de outra obra de ficção científica, “The Blade Runner”, escrito por Alan E. Nourse e lançado em 1974, mas que nada tem em relação à adaptação do diretor.

Capa de “Blade Runner”; livro e filme. (Foto: Laís Fernandes)

Outro fator deixado de fora da obra de Ridley Scott é a existência de uma esposa para Deckard no livro. Ele e a esposa Iran vivem um relacionamento em descompasso; é ela quem nos permite averiguar a falta de empatia que Deckard sente, fator que vai sendo questionado diversas vezes ao longo da obra. O que K. Dick faz é utilizar o protagonista como objeto de investigação daquilo que falta no próprio Rick. No filme, o personagem de Harisson Ford possui uma personalidade seca, que não mede esforços para caçar os androides em um ato impensado, mas que vai aos poucos desconstruindo esta imagens de seus alvos, ao passo que também muda muito de si.

Rutger Hauer em cena de “Blade Runner”. (Imagem: Reprodução)

A icônica cena final, após lutar com o androide Roy Batty, interpretado por Rutger Hauer, é o momento em que Rick se dá conta da essência verdadeiramente humana que existia em cada um dos androides. A interpretação e improvisação de Hauer na cena, ao dizer esta poderosa citação, foi um dos fatores que deixou o filme marcado para sempre na memória dos fãs de ficção científica:

“Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. Naves de ataque pegando fogo na constelação de Órion. Vi Raios-C resplandecendo no escuro perto do Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer…” (Rutger Hauer em cena de “Blade Runner”)

O visual do filme, belo por excelência, até hoje chama a atenção dos fãs de cinema e de ficção científica, pois os efeitos especiais da década de 80 estão muito à frente de seu tempo e se mantiveram atuais e inovadores. Mesmo com algumas mudanças, as duas obras conversam e são complementares, ainda mais se tratando de toda a estética futurística dos enredos: é incrível conseguir enxergar de forma muito nítida o mundo pensado por K. Dick nos anos 50 pela visão de Ridley Scott.

Cena de “Blade Runner – O Caçador de Androides”, Ridley Scott (1982). Imagem: reprodução.

4. A nova edição da Aleph

Com tradução de Ronaldo Bressane, capa e projeto gráfico de Giovanna Cianelli, a 3ª edição de “Androides sonham com ovelhas elétricas?” apresenta o título do filme, “Blade Runner”, em homenagem aos trinta e sete anos de estreia da obra nos cinemas, e por finalmente termos chegado ao ano projetado por Ridley Scott.

A capa apresenta ilustração e tipografia retrô, em uma explosão de cores que determina a boa loucura literária que se faz presente nas obras de K. Dick. As folhas de guarda dispõem frases marcantes do livro e a quarta capa nos lembra o título emblemático original.

Capa e quarta capa de “Blade Runner”. (Foto: Laís Fernandes)
Folhas de guarda de “Blade Runner”. (Foto: Laís Fernandes)

Ademais, “Blade Runner”, filme e livro, é um marco duplo nas histórias de ficção científica e são leituras necessárias para fãs do gênero e para que nos entendamos como seres humanos em um mundo de futuro incerto, em que a empatia, citada diversas vezes pelo autor, se faz cada dia mais necessária para continuarmos esta travessia no escuro. Mantendo a paciência e a consciência de que vivemos em um mundo compartilhado, e que exige de nós uma postura humana no melhor significado da palavra, caminhemos sabendo que um dia tudo o que há de ruim irá melhorar. Vai passar. <3


Blade Runner

Autor: Philip K. Dick

Aleph

283 páginas

Tradutor: Ronaldo Bressane

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Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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