O espaço para autoaceitação na música pop

O espaço para autoaceitação na música pop

A arte como um todo desempenha diferentes papéis em nossa sociedade, influenciando tanto o âmbito coletivo quanto o individual. Desde um reconforto para corações atribulados até uma crítica social que muitas vezes culmina na formação de movimentos, em todos os campos da arte pode-se encontrar diferentes sentidos que geram impactos na vida e na cultura. Dessa forma, a música teve diferentes papéis ao longo da história, e suas revoluções singulares com o passar dos séculos abriram espaço para movimentos políticos e sociais. Reivindicações em diversos âmbitos ganharam uma imagem na mente do público, seja dentro do movimento punk ou ao lado dos hippies em Woodstock.

Nos dias de hoje, a sensação é que tudo já foi explorado. Seja em questões musicais ou até mesmo na estética adotada por diferentes bandas e artistas, desde as exóticas pinturas no rosto de Secos e Molhados até o vestido de carne da Lady Gaga, a originalidade parece cada vez mais inatingível. Assim, como fazer com que uma obra seja relevante no contexto da atualidade, quando parece que tudo já foi dito? As pautas feminista, LGBTQ+, antirracista, em prol de direitos sociais, etc. continuam cada vez mais relevantes, e um olhar atento para o mundo da música pode revelar revoluções talvez inesperadas dentro do gênero pop. Muito mais do que romance e ritmos dançantes e leves, a música pop influenciou ー e influencia até hoje ー a forma como as pessoas vêem o mundo, a moda e a si mesmas.

Minorias na música pop

As mulheres fizeram e continuam fazendo história no mundo da música, e no gênero pop não poderia ser diferente. Madonna revolucionou com obras como “Like a Prayer”, Beyoncé criou um legado inegável com seu trabalho, e o mundo nunca mais foi o mesmo depois de Whitney Houston.

Mas se no passado a presença feminina no mundo da música era uma polêmica que parecia bastar a si própria, na atualidade, essa discussão é muito mais profunda. Sempre foi fato que apenas mulheres brancas, heterossexuais ou com um corpo padrão não eram sinônimo de representatividade. Hoje em dia, é potencializada a reivindicação pela diversidade, e pelo espaço na mídia de mulheres que são parte de diversos grupos sociais oprimidos.

Outros grupos oprimidos dentro da sociedade, como LGBTs, negros, indígenas, gordos, etc. também lutam por seus espaços no mundo da música. A cantora Lizzo é um dos maiores símbolos dessa resistência dentro do pop na atualidade. Suas canções sobre empoderamento e autoaceitação são inspiradoras para muitas pessoas ao redor do mundo. Ela é uma mulher negra e gorda que rompeu com estereótipos e, através de sua arte, milita a respeito de temas essenciais. Em sua trajetória de vida e de carreira enfrentou e ainda enfrenta o racismo e a gordofobia.

Lizzo para a Elle (Créditos: Elle / Yvan Fabing)
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Graças à artistas como Lizzo, há uma porta para a diversidade dentro da grande mídia. Pessoas que integram qualquer minoria perseguida, ou até mesmo indivíduos de todas as idades que possuem características fora do padrão estabelecido pelo sistema, encontram na música seu refúgio e resistência. Mas como exatamente isso é subversivo?

Revolução e autoaceitação

A indústria capitalista lucra com a insegurança. Desde cosméticos, passando por hábitos (como a depilação) até cirurgias plásticas estéticas, a insatisfação com o próprio rosto e corpo alimenta o rendimento de um padrão de beleza obsessivo. Padrão este que é imposto à sociedade, e especialmente, às mulheres.

Mas esses padrões inalcançáveis não estão restritos ao corpo, eles transitam também por áreas que afetam principalmente a saúde mental. A vida ideal precisa ser comprada, ela é vendida como uma promessa que é perseguida por meses de trabalho. A rotina estressante e a crise no mundo do trabalho, aliadas à pressão de um estilo de vida inalcançável estão abalando a saúde física e mental da população.

Nesse contexto, o duo Twenty One Pilots, que transita entre diferentes gêneros musicais, deu voz aos anseios de uma geração. Suas músicas narram as experiências de Tyler Joseph e Josh Dun na luta contra a depressão e a ansiedade. Um dos temas abordados no hit mais conhecido da dupla, a música ”Stressed Out” fala sobre a pressão de viver em uma sociedade que só se importa com o lucro.

We used to play pretend, give each other different names
We would build a rocket ship and then we’d fly it far away
Used to dream of outer space but now they’re laughing at our face
Saying, “Wake up, you need to make money”
(‘’Nós costumávamos brincar, nos dando nomes diferentes
Nós iríamos construir uma nave espacial e voar para longe
Costumávamos sonhar com o espaço sideral, mas agora eles estão rindo na nossa cara
Dizendo ‘’Acorde, você tem que ganhar dinheiro’’)

O seu último álbum, ”Trench”, fala sobre encarar esses desafios ao lado de outras pessoas que compreendem esse sofrimento. Letras como ‘’Nice to know my kind will be on my side’’ (‘’É legal saber que os que são como eu estarão ao meu lado’’) e ‘’In trench I’m not alone’’ (‘’Na trincheira não estou sozinho’’) o duo lembra aos ouvintes de suas canções que por mais difícil que as coisas estejam, ninguém está só. E reforça que os companheiros de trincheira importam ‘’mais que a própria guerra’’.

Josh Dun e Tyler Joseph (Imagem: Divulgação)

Twenty One Pilots lançou recentemente a música ”Level of Concern”, que fala sobre a tensão e a preocupação durante a atual epidemia do Coronavírus. O vídeo é feito nas casas dos dois artistas, mostrando a produção do clipe com a ajuda de suas famílias, apesar das barreiras do distanciamento social.

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Outra artista que recentemente lançou um trabalho muito pertinente em meio à epidemia é a cantora e compositora Fiona Apple. Seu mais recente álbum, intitulado “Fetch the bolt cutters”, já estava pronto antes da pandemia do Coronavírus adquirir as atuais proporções. Entretanto, a produção caseira e as letras que falam sobre diversos sentimentos parecem refletir uma sensação geral adquirida com o confinamento.

A artista foi vítima de violência sexual quando tinha apenas 12 anos, e suas músicas abordam essa questão. A canção ”For Her” aborda este e outros temas sobre a violência e a humilhação contra a mulher. Suas letras cruas, como ‘’You raped me in the same bed your daughter was born in ’’ (‘’Você me estuprou na mesma cama que sua filha nasceu’’), tornam o álbum ainda mais crítico e profundo.

Desde o começo de sua carreira a artista era uma jovem que se destacava e se diferenciava da maioria. Questões relacionadas a saúde mental sempre estiveram presentes tanto em sua música quanto em falas em entrevistas. Agora, aos 42 anos, Fiona Apple mostra que continua abordando temáticas importantes através de seu talento avassalador. “Fetch the bolt cutters” é uma jornada para se libertar de diferentes prisões e que, embora se encaixe perfeitamente com a atual situação de confinamento, é atemporal.

Capa do álbum “Fetch the Bolt Cutters” (Imagem: reprodução)
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Embora não esteja em um hiato tão longo quanto o de Fiona Apple, Lorde é outra cantora cujo próximo trabalho é aguardado pelos fãs já há um tempo. Entretanto, seu primeiro álbum de estúdio, ”Pure Heroine”, ainda reflete de forma muito precisa a atual sociedade. Em uma obra sobre a juventude na sociedade do consumo, a artista critica a alienação, a violência e os padrões inalcançáveis impostos pelo capitalismo.

Qualquer jovem pode se reconhecer nas angústias de Lorde sobre a passagem do tempo. O medo de crescer em ”Ribs”, as críticas ao estilo de vida burguês de ”Royals” e o ócio de ”400 lux”, passando do pessoal ao político de modo que essas duas temáticas se mesclam e se confundem nas diferentes interpretações que o “Pure Heroine” fornece.

Lorde também aborda a toxicidade da mídia e do mundo da fama. Em ‘’Glory and Gore’’, ela troca o glamour pela digladiação, retratando a vida sob os holofotes como um ambiente de selvageria. As crises pessoais de Lorde no “Pure Heroine” são a narrativa de uma jovem no caminho para se tornar a heroína de seu próprio romance. Paralelamente, o ouvinte reflete sobre seu próprio protagonismo dentro da sociedade através das composições da cantora.

I don’t ever think about death
It’s alright if you do, it’s fine
We gladiate but I guess we’re really fighting ourselves
Roughing up our minds so we’re ready when the kill time comes
Wide awake in bed, words in my brain,
“Secretly you love this, do you even wanna go free?”
(Eu nunca penso sobre a morte
Tudo bem se você pensa, tudo bem
Nós digladiamos, mas eu acho que na verdade estamos lutando contra nós mesmos
Endurecendo nossas mentes, então estaremos prontos quando a hora de matar chegar
Acordada na cama, as palavras em minha mente
‘’Secretamente você ama isso, você quer mesmo se libertar?’’)

Seu sucessor, ”Melodrama”, é ainda mais íntimo, e expõe inseguranças da cantora, em músicas arrasadoras como ”Liability”. O estilo de vida desgastante advindo da fama é novamente temática a ser abordada. Há também um empoderamento muito sutil em letras como ‘’I care for myself the way I used to care about you’’ (‘’Eu me importo comigo mesma da forma como eu costumava me importar com você’’).

As letras políticas refletem posicionamentos que não são mistérios para aqueles que já acompanham o trabalho da cantora. Em diversas ocasiões, Lorde reforçou pautas feministas e a respeito da importância da autoaceitação, e de mostrar para os jovens que acompanham sua carreira que o padrão de beleza vendido pela mídia é não apenas irreal, mas também nocivo.

Lorde em ensaio para a divulgação do álbum “Melodrama” (Imagem: Divulgação)

Entre outros nomes conhecidos no mundo do pop que abordam questões relacionadas à saúde mental estão três cantoras que enfrentaram a depressão; Sia, Pink! e Billie Eilish.

Sia é uma artista que, além de versar a respeito de suas batalhas pessoais em suas músicas, também é uma ativista engajada em causas relacionadas à saúde mental. Ela usa a sua influência e seu espaço para ajudar e também informar a respeito de sua luta.

A cantora Pink! também sofreu com a depressão e a ansiedade, e a superação e a autoaceitação são temas recorrentes em suas canções. A música ”Fuckin’ Perfect”, bem como seu respectivo clipe, abordam questões como distúrbios alimentares e automutilação. Em entrevista, a artista ressaltou a importância de falar sobre saúde mental sem tabus.

Aviso: o clipe a seguir possui conteúdo sensível

A cantora Billie Eilish é uma estrela que conquistou fama e reconhecimento mundial ainda muito jovem. Em entrevista a artista revelou o quanto comentários nocivos na plataforma Twitter a afetaram negativamente. Ela também contou como foi difícil enfrentar a depressão e a ideação suicida em meio ao mundo da fama.

Em uma campanha publicitária da Calvin Klein, Billie falou sobre gostar de usar roupas largas pois eram uma forma de evitar comentários sobre seu corpo, a criticando ou sexualizando. Na época em que fez essas afirmações, ela tinha apenas 17 anos. Esse é um dos exemplos de maior repercussão a respeito da objetificação dos corpos femininos, e de como isso afeta adolescentes.

Billie Eilish (Imagem: divulgação)

Outra artista que possui um trabalho voltado para visibilidade de minorias é Janelle Monáe. Em entrevista, a cantora afirmou que seu álbum ”Dirty Computer” é sobre algo maior que ela mesma, é sobre uma comunidade de vozes marginalizadas. Janelle reforçou também a importância da terapia tanto na sua vida pessoal quanto em sua carreira, especialmente quando se trata das relações entre negritude e saúde mental. Ela também é pansexual, e sempre procura dar visibilidade às questões relacionadas à comunidade LGBTQ+.

Janelle Monáe (Imagem: divulgação)
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Esses são apenas alguns dos artistas que usam de sua voz e seu espaço na mídia para destacar a importância da inclusão, da autoaceitação, da diversidade e dos cuidados para com a saúde mental. A lógica do mercado propaga a desigualdade em diferentes âmbitos da sociedade, afetando a saúde 一 esta que, como um todo, é um direito que deve ser defendido e assegurado. Assim, atualmente os debates relacionados à saúde mental estão intrinsecamente relacionados à opressão do indivíduo pela consolidação do capitalismo.

Assegurar o espaço de grupos marginalizados nos meios de comunicação, propagando suas pautas e ideias é um modo não apenas válido, mas essencial de revolução. Reconhecer que os malefícios do capitalismo atingem os aspectos psicológicos da sociedade em geral, é um cuidado e um lembrete de que a luta pela equidade alcança diversos campos do corpo social. Nesse contexto, o individual também é coletivo.

Especialmente em um momento como a atual epidemia do Coronavírus, tanto o confinamento quanto a crise em diferentes setores da sociedade levam à reflexão. Hábitos de consumo precisam ser repensados, e é cada vez mais perceptível que o futuro do planeta depende de uma desaceleração dos mecanismos de produção e exploração de recursos naturais. Entretanto, o confinamento também resulta em questões que cabem (ou não) dentro de quatro paredes. A arte se apresenta como um conforto e uma âncora para as dificuldades, tensões e preocupações que vêm com tempos incertos, mas também revela a subversão de amar e aceitar a imagem no espelho em um sistema que lucra com a insegurança.

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Formada em Jornalismo. Gosta muito de cinema, literatura e fotografia. Embora ame escrever, é péssima com informações biográficas.
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