Mulheres nos Quadrinhos: Beatriz de Miranda

Mulheres nos Quadrinhos: Beatriz de Miranda

A designer, pesquisadora e quadrinista paraense Beatriz de Miranda está com dois novos projetos saindo do forno em 2020, ambos pela Editora Skript, via financiamento coletivo pelo Catarse. Em entrevista ao Delirium Nerd, a artista compartilha seus processos, técnicas, referências — que vão muito além dos quadrinhos — e os detalhes por trás dos projetos mais recentes: a coletânea Emília 100 e a HQ de Saint Saint-Exupéry.

DN – Como surgiu seu interesse por quadrinhos?

Comecei a ler quadrinhos muito pequena, não foi necessariamente o que me alfabetizou, pois meus paisem especial minha mãe sempre optaram por eu e minha irmã lermos mais livros do que quadrinhos. Ainda assim, Turma da Mônica, Calvin & Haroldo, Asterix e Obelix, Hagar e Mafalda eram leituras recorrentes. Depois, na adolescência, comecei a ler as graphic novels e HQs de super-heróis.

Aquarela de Beatriz
A aquarela é uma das técnicas utilizadas por Beatriz em seus trabalhos, quadrinho para o projeto @6degreesofconnection (Imagem: Beatriz de Miranda)

DN – A partir de qual momento você decidiu fazer do interesse profissão e como foi o processo de profissionalização?

Tudo começou em 2017, com a produção de uma HQ no meu TCC, baseada na pesquisa sobre como certos movimentos da Arte criaram a imagem da mulher como objeto, perpetuando essa figura objetificada em outras mídias, como a pornografia, influenciando diretamente os quadrinhos de super-heróis. O trabalho foi orientado pela professora mestranda Brena Renata, alguém que me deu todo suporte no bacharelado em design e vida profissional. Durante esse processo, procurei trabalhar na área e consegui emprego com quadrinistas de referência dentro e fora do Pará, algo que me deixou muito animada, até se tornar o início de um dos piores momentos da minha vida.

Neste ambiente de trabalho, eu sofri assédio moral, sexual, difamação e importunação sexual de quadrinistas e colegas de trabalho, a ponto de eu querer largar tudo, incluindo desenhar. Eu aguentei tudo calada por muito tempo, por questões financeiras e profissionais, até ponderar meus privilégios. Então pedi demissão assim que completei as horas de estágio.

Com a ajuda da minha família, comecei a juntar provas e estudar como denunciar esses homens. Porém, não tivemos sucesso, por se tratar de homens bastante influentes desde o ensino dos quadrinhos até os eventos em Belém, significando o sepultamento da minha carreira aqui.

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Nos meses seguintes, por causa do transtorno de estresse pós-traumático, criar algo tornou-se algo hercúleo, já que eu me sentia morta e todo processo de trabalho causava ataque de pânico. Mas eu precisava continuar e não deixar que aqueles homens decidissem a minha vida. Portanto, comecei a traçar estratégias de trabalhar fora do Pará, investindo nas redes sociais, me educando através de livros e vídeos online gratuitos, sem esquecer da pesquisa acadêmica.

No meio dessa jornada, conheci pessoas maravilhosas que me apoiaram. Ainda assim era difícil, pois quadrinistas locais criticaram negativamente como reagi a violência e diziam o quanto eu deveria ser grata, resultando no meu isolamento. E mesmo afastada da cena local, um dos meus assediadores citou a mim e minha pesquisa em seu livro, sem autorização. Além disso, uma das quadrinistas que zombou de mim, me convidou mais tarde para participar do coletivo de mulheres organizado por ela. Essa comunidade local sofre de desmemória, falta de discernimento e desconhecimento das leis. Queria eu ser tão absorta.

DN – Como é seu processo criativo?

Meu processo criativo é norteado pela metodologia de projeto de design. Quando estava escrevendo meu TCC, precisei escolher uma metodologia projetual e mesclar com o processo de produção de quadrinho. Escolhi alinhar a metodologia do Bruno Munari com o processo do Scott Mccloud, e trabalho até hoje com esse resultado.

Em resumo, vejo a HQ como um projeto de design, que segue processos de produção, desde pré-requisitos até chegar no produto final, o quadrinho em si. Durante esse processo pode parecer absurdo tento não ler, buscar referências ou soluções em HQs, como forma de prevenir que eu não repita discursos. Por fim, anoto tudo em cadernos de projeto, como um diário de bordo, que me auxilia na produção.

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Cadernos de projeto de Beatriz para Emília 100 e para a HQ de Saint-Exupéry (Imagem: Beatriz de Miranda)

DN – O que você busca com as suas criações?

Pode ser genérico, mas gostaria de inspirar outras pessoas, principalmente outras mulheres a produzir não apenas quadrinhos, além de questionar as ditas regras.

DN – Quais são suas influências, inspirações ou artistas preferidos? Como isso se reflete em seu trabalho?

Minhas referências, inspirações e influências são reflexo de parte dos produtos artísticos presentes na minha infância nos interiores do Pará, dentre elas: ópera, literatura, dança, música, animação, artistas como a Beatrix Potter, e principalmente musicais. Sempre tive fascínio pela forma que histórias são contadas em musicais, então geralmente estou lendo sobre a produção e tento aplicar nas minhas HQs, em especial a de Hamilton e Natasha, Pierre e O Grande Cometa de 1812.

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Não tenho certeza, mas é provável que essas referências influenciam diretamente em meus enquadramentos, no ritmo da narrativa e nas expressões dos personagens. Fora desta cena, existe uma lista enorme de artistas e quadrinistas preferidos, mas irei me limitar a citar Monique Malcher, Elton Galdino, Paula Chaves, Livia Prestes e Rodrigo Leão são profissionais incríveis, com trabalhos impecáveis e muito a dizer. 

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DN – Você teve algum marco importante na sua carreira ou um momento decisivo? Como isso influenciou sua trajetória?

O marco da minha carreira foi o convite da Dani Marino para compor o livro Mulheres & Quadrinhos (2019) da Editora Skript, pois eu sabia que era a oportunidade de mostrar o meu trabalho fora do âmbito local e finalmente iniciar uma carreira. Acho que consegui.

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Quadrinho “Overture” para o livro Mulheres & Quadrinhos (Imagem: divulgação)

DN – Quais são os trabalhos ou projetos autorais preferidos? Qual o motivo?

Definitivamente Overture (Mulheres & Quadrinhos) e meu quadrinho inédito para Emília 100, também da Editora Skript, ironicamente minhas duas únicas produções até agora. O primeiro, porque além de ser o início, definitivamente causou uma boa impressão, pois mais tarde fui convidada para participar do projeto da Carol Pimentel: Emília 100.

Nunca imaginei que um dia trabalharia com a Carol sou uma admiradora do trabalho dela; lembro de quando recebi o e-mail de revisão dela do Mulheres & Quadrinhos, fiquei perplexa. Meses depois, estou aqui trabalhando diretamente com ela. 

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Estudos para Emília 100, uma nova roupagem para a personagem Tia Nastácia (Imagem: reprodução/Beatriz de Miranda)

DN – Você tem algum novo projeto em andamento?

Como havia mencionado, tenho alguns projetos em andamento, o quadrinho Emília 100 e a HQ do Saint-Exupéry, também pela Editora Skript. Fora dos quadrinhos, fiz dois trabalhos para uma exposição que ainda não aconteceu, por causa da pandemia, além de outros projetos que ainda estão em segredo.

DN – Pode falar mais um pouco sobre o processo de criação da sua Emília? Diferente da tradicional, a sua tem os cabelos azuis. Qual é a história por trás dessa escolha?

A ideia da Emília surgiu enquanto estava passando um tempo na minha cidade natal, Cametá, onde comecei a fazer algumas escolhas técnicas. Gostaria que a Emília seguisse em parte a descrição no livro do Monteiro Lobato, mas sem a utilização da tinta preta no quadrinho, pois preferia que a boneca fosse composta por cores saturadas.

Por estar no interior, a ideia de homenagear as crianças interioranas — que eu já fui, depois de nascer e morar em vários interiores do Pará — tornou-se mais forte, por isso a Emília usa um conjunto de shorts e blusa, que é uma vestimenta mais prática para correr, subir em árvore e se jogar no meio do rio. Além disso, a blusa dela é estampada com papagaios para lembrar que ela fala pelos cotovelos.

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Quanto ao cabelo, resolvi manter o cabelo curto, mas com o corte “à la garçonne”, fazendo uma homenagem a personagem da novela que estava vendo na época: Catarina Batista (Adriana Esteves) da novela O Cravo e a Rosa. A Catarina é uma personagem que fala o que pensa e luta pelos direitos da mulher, bem parecida com a Emília. Como o preto estava fora da paleta de cores, mas a Emília do Lobato tinha cabelos pretos, minha saída foi utilizar o azul, pois lembrei dos cabelos pretos da Mulher-Maravilha, coloridos com essa cor na minha pesquisa acadêmica da super-heroína.

Eu poderia até ter pintado os cabelos da Emília iguais aos castanhos da Narizinho, mas a boneca perderia um pouco do lúdico da sua própria identidade, além do apelo que as cores saturadas têm nas crianças. Estou ansiosa pelo lançamento da HQ Emília 100 e por saber o feedback dos leitores. Por sinal, o quadrinho ainda está no Catarse.

mulheres nos quadrinhos

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As aquarelas de Beatriz entregam vivacidade ao universo de Monteiro Lobato (Imagens: reprodução/Beatriz de Miranda)

DN – Conte também como está sendo fazer a HQ de Saint-Exupéry, o que você está experimentando nesse trabalho. Como é sua rotina de planejamento e criação? Já existe data de publicação? Acompanhando pelo seu Instagram, tudo está tão lindo.

Muito obrigada! A HQ documentário sobre o Antoine de Saint-Exupéry tem o roteiro escrito pelo Diego Moreau sob orientação da Mônica Corrêa, que é a tradutora oficial do Saint-Exupéry no Brasil, além da representante da família dele aqui. É um projeto enorme, que envolve instituições internacionais e com conhecimento da família do Saint-Exupéry, tornando tudo uma grande responsabilidade para mim.

O cenário é amedrontador para essa mulher vinda do interior do Pará (risos), mas ter embarcado nesse desafio foi uma das melhores coisas da minha vida. Nos primeiros meses, precisei reler O Pequeno Príncipe e ler o livro de análise desta obra, escrito pela Mônica, o que me fez entender tudo com mais profundidade e poder dizer com certeza: O Pequeno Príncipe não foi escrito para crianças e sim para adultos.

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Além disso, conheci as novelas do Antoine como Piloto de Guerra, outro livro com leitura necessária para começar meu trabalho no quadrinho. Após essas leituras, passei algumas semanas vendo documentários, trabalhando nos retratos realistas do Saint-Exupéry e no “concept” do Pequeno Príncipe, para depois iniciar o desenho dos rascunhos das páginas. 

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Os cadernos de projetos de Beatriz são belíssimos, aumentando nossa curiosidade para o resultado final da HQ (Imagem: reprodução/Beatriz de Miranda)

Hoje estou nesse processo de desenho, com uma rotina bem apertada que consiste em: segunda-feira reler o roteiro das páginas que trabalharei na semana, fazer pesquisas das referências da história no mesmo dia e caso não as encontre: entro em contato com a Mônica; passo os próximos dias desenhando as páginas digitalmente, com teste da paleta de cores; no sábado envio tudo para meus colegas analisarem, faço minhas anotações das considerações em geral e monto a rotina da próxima semana.

É um trabalho físico enorme e com temáticas fora da minha zona de conforto — já desenhei uns cinco modelos de avião e nunca tinha desenhado um sequer, muito menos cenários de guerra — mas a equipe me deixou livre para inserir alguns detalhes (ainda segredo), e seguir meu estilo de quadrinho com poucas utilização de quadros, de modo que hoje tudo tornou-se mais fluído. 

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O Pequeno Príncipe não podia ficar de fora da HQ de Saint-Exupéry (Imagem: reprodução/Beatriz de Miranda)

Uma das questões iniciais do quadrinho foi a escolha da técnica dos desenhos, pois existia aquele consenso silencioso que seriam ilustrações digitais, mas como lembra o Diego sempre muito chocado: sugeri fazer todas as 100 páginas em aquarela; pois não imagino de outra forma. Além de um grande símbolo, o Saint-Exupéry foi um homem apaixonado por Arte, que vivia desenhando, então contar sua história, na mesma técnica utilizada em suas ilustrações mais famosas, é uma forma de demonstrar respeito e homenagear sua memória.

Penso que este quadrinho será a introdução para muitas pessoas conhecerem o Antoine de Saint-Exupéry além de seus rótulos mais populares, de conhecê-lo como um garoto sonhador, aventureiro e um homem nos seus melhores e piores momentos. Mas para saber mais desta obra, todo mundo terá de esperar até novembro deste ano, que é quando a campanha do quadrinho iniciará no Catarse!

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Em primeira mão para o Delirium, a segunda página pintada da HQ de Saint-Exupéry (Imagem: Beatriz de Miranda)

Para acompanhar o trabalho da Beatriz de Miranda, você pode seguir o perfil da artista no Instagram.

Escrito por:

Rafaella Rodinistzky é graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC Minas e atualmente cursa Edição na Faculdade de Letras da UFMG. Participou do "Zine XXX", contribuiu com a "Revista Farpa" e foi assistente de produção da "Faísca - Mercado Gráfico". Você tem um momento para ouvir a palavra dos fanzines?
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