Lorde, a heroína de seu próprio melodrama

Lorde, a heroína de seu próprio melodrama

Sob o nome artístico de Lorde, Ella Yellich O’Connor foi responsável por gerar um impacto imenso na música da última década. Suas canções com críticas sociais e tom melancólico resultaram em um sucesso que foi seguido por muitos artistas nos anos consecutivos. Apesar de acabar se consagrando quase como uma diva do pop, o começo de sua carreira na música foi marcado por trabalhos alternativos.

Durante um tempo, a cantora neo-zelandeza formou uma dupla musical com seu amigo Louis McDonald. Juntos, eles performaram covers e chegaram a conceder uma entrevista para o rádio. Em meados de 2011, a cantora já estava estudando tanto música quanto a escrita, o que futuramente resultaria nas letras fortes de suas composições. Nesse ano, ela performou músicas originais pela primeira vez. 

The Love Club: a adolescência de Lorde

Em 2012, Lorde marcou presença no álbum digital Characters, da banda And They Were Masked. Mas seu primeiro lançamento próprio foi o EP The Love Club, em 2013. Desse trabalho sairia a música ‘’Royals’’, que futuramente se tornaria um hit de sucesso no álbum Pure Heroine

 

Capa do EP The Love Club.
Leia também >> O espaço para autoaceitação na música pop

Em The Love Club, Lorde reflete expectativas de sua própria vida. ‘’Bravado’’ é uma das melhores canções do EP, onde a cantora fala sobre encontrar seu próprio grito de guerra para ir atrás de seus sonhos. Também é uma canção sobre aceitação e aprovação, tanto de si mesma quanto das demais pessoas. 

“I was frightened of every little thing that I thought was out to get me down/ To trip me up and laugh at me but/ I learned not to want the quiet of a room with no one around to find me out/ I want the applause, the approval, the things that make me go 

(Eu estava com medo de cada coisinha que eu pensei que estivesse lá fora para me pôr para baixo/ Me derrubar e rir de mim mas/ Eu aprendi a não querer o silêncio de uma sala vazia/ Eu quero o aplauso, a aprovação, as coisas que me fazem seguir em frente) “

Em ‘’Bravado’’, Lorde fala sobre encontrar uma coragem, e essa mesma coragem marcaria seus trabalhos posteriores. Já a música que dá nome ao EP, The Love Club, é um retrato da adolescência. A descrição fisicamente violenta de eventos emocionais apareceria novamente em músicas futuras.

O ‘’clube do amor’’ sobre o qual Lorde fala é repleto de futilidades, e seus membros fazem tudo por um amor que não é real. Enquanto isso, as pessoas que os assistiram crescer estão esperando no final da jornada, para recebê-los ensopados e desorientados. 

Essa pressão para se encaixar em um grupo também apareceria em ‘’Royals’’, que mais tarde faria parte da identidade do Pure Heroine. O clube do amor continuaria a aparecer na vida de Lorde pelos anos consecutivos, de formas diferentes. 

Pure Heroine: uma heroína de sua própria jornada

Pure Heroine foi o primeiro álbum de estúdio de Lorde, e começa com um questionamento ‘’Don’t you think that it’s boring how people talk?’’ (Você não acha chato o jeito como as pessoas falam?, em tradução livre). A música de onde vêm o trecho, ‘’Tennis Court’’, foi alvo de diferentes teorias sobre uma possível analogia com a revolução francesa.

“Tennis Court Oath” (ou Juramento do Jogo da Péla) foi um marco inicial da revolução. Embora a própria cantora, em entrevista, tenha afirmado que a quadra de tênis é, para ela, um símbolo de nostalgia, as ligações com a revolução francesa se encaixam coincidentemente bem. 

Capa do álbum Pure Heroine. 

A canção ‘’Tennis Court’’ foi escrita como um apanhado de eventos recentes da vida de Lorde; sua primeira viagem de avião, uma sensação de que tudo está prestes a mudar drasticamente. Ela reflete sobre sua nova vida, sobre a vida de aparências que a sociedade ao seu redor leva, e sobre a liberdade em meio à fama. As divagações de ‘’Tennis Court’’ são quase um presságio do que seria a vida da cantora após o lançamento de Pure Heroine

Leia também >> Lover: os recomeços sagrados de Taylor Swift

Assim como o “Tennis Court Oath”, a ‘’Tennis Court’’ de Lorde também é o marco inicial de um álbum revolucionário. Nele, a cantora procura ocupar o espaço de um membro da sociedade revoltado com as injustiças e superficialidades da burguesia. Entretanto, ela mesma precisa fugir de se tornar um membro da realeza, em um palco adorada por multidões, sob o risco de ser guilhotinada pela fama. 

Já ‘’Royals’’ é uma imersão na juventude simples de Lorde, contrastando com o luxo e a ostentação que advém da fama. Ela se coloca em uma posição de sonhadora, satisfeita com suas próprias fantasias, contando os trocados à caminho da festa. Essa temática suburbana será frequente durante todo o Pure Heroine

Em ‘’Ribs’’, a cantora exprime o medo de crescer, a angústia e a impotência perante a passagem do tempo. A nostalgia característica do Pure Heroine se alia ao dilema cortante de dizer adeus à infância, e ver que o sentimento de insuficiência é a única coisa que ecoa após as súplicas de Lorde ‘’I want ‘em back/ The minds we had’’ (Eu as quero de volta/ As mentes que tínhamos, em tradução livre). 

O Pure Heroine é um tempo que o ouvinte passa dentro dos pensamentos de Lorde, e acaba se surpreendendo ao encontrar um pouco de sua própria mente nas batidas sombrias de cada canção. 

‘’Esse álbum é sobre esperar pelas coisas, e sobre tédio, e análise excessiva, e angústia, e todas essas coisas. Mas também é sobre coragem, confiança, ódio e amor.

Eu derramei minha mente e coração nisso, e talvez eu acabe o odiando em dois anos, porque essa é natureza de ter a minha idade, mas por hora, é a coisa mais poderosa que eu posso entregar.’’

Prólogo do álbum Pure Heroine. 

O fingimento que Lorde critica irá se metamorfosear em alienação. A música ‘’Buzzcut Season’’ narra uma sensação irreal para com a existência, como se vida em si fosse um holograma. Um mundo onde as pessoas ignoram as tragédias em prol do próprio conforto advindo da sociedade de consumo

A descrição violenta de eventos emocionais volta a aparecer em ‘’Glory and Gore’’ e ‘’White Teeth Teens’’. Nas músicas, Lorde descreve a relação da sociedade com as pressões e padrões irreais como uma espécie de clube da luta. O privilégio é representado com características físicas, como dentes e sangue, e essas analogias aparecem com certa frequência nas letras.

Em ‘’White Teeth Teens’’ ela canta ‘’Is something else, it’s in the blood/ their molars blinking like the lights’’ (É algo a mais, está no sangue/ os molares deles cintilam como as luzes, em tradução livre), ao descrever jovens perfeitos, advindos de um grupo que ela nunca conseguiu fazer parte, embora tenha tentado. 

Leia também >> A representatividade feminina na série “Hannibal”
Lorde em fotografia para o álbum Pure Heroine. (Créditos: Charles Howells)

Já em ‘’Still Sane”, Lorde canta sobre uma espécie de ascensão, enquanto novamente questiona o quanto de sua personalidade permanecerá genuína a medida que a fama ocupa um papel importante em sua vida. Durante todo o álbum ela narra expectativas, medos, inseguranças e sonhos, todos embalados por uma nova espécie de coragem que surge em meio às mudanças. Ela finaliza o álbum dando uma resposta à pergunta de ‘’Tennis Court’’, e sobre as palavras vãs das pessoas ao seu redor, responde em ‘’A World Alone’’, ‘’Let ‘em talk’’ (deixe que falem).

Ambientado nos bairros onde as casas não mudam, endereços que ninguém invejaria, o conto de Lorde vai ganhando vida, à medida em que ela ascende como a heroína da história. E esse protagonismo eletrizante em meio ao tédio é tão viciante quanto heroína pura.

Melodrama: a solidão crua

‘’We aren’t caught up in your love affair’’ é uma das linhas icônicas de ‘’Royals’’, onde os relacionamentos amorosos dos famosos parecem tão distantes e desinteressantes para Lorde. O seu segundo álbum de estúdio, lançado em 2017, vai colocar à prova alguns conceitos certeiros do Pure Heroine. Melodrama é um retrato melancólico de como Lorde processa o final de um relacionamento de três anos. 

Capa do álbum Melodrama.

Em Melodrama a falta e a solidão se contrastam e se encaixam, entre festas agitadas e momentos do cotidiano, formando uma aquarela de sentimentos que pintam o novo mundo de Lorde. Se em Pure Heroine, o ouvinte passava um tempo com os pensamentos agitados de uma jovem esperando por algo novo, em Melodrama Lorde lança seu coração partido diante de quem quiser ouvir. 

Na música ‘’The Louvre’’, Lorde reflete a angústia e a expectativa de um relacionamento que está prestes a ruir. O ouvinte espera por um refrão que nunca chega, enquanto a artista exprime toda uma ansiedade pelo fim em uma experiência sonora. O ritmo do coração é o ritmo do melodrama vivenciado, amplificado em um nível que todos os ouvintes podem sentir. 

Leia também >> Weyes Blood: soft rock mergulhado em nostalgia
Lorde em fotografia para o álbum Melodrama. (Créditos: Wolrd of Mcintosh Townhouse)

‘’Liability’’, uma das músicas mais densas do álbum, revela uma exaustão para com relacionamentos amorosos. A intensidade de Lorde é vista como um fardo. Ela está ferida, rejeitada e usada. Todo o Melodrama apresenta crueza para narrar uma certa intimidade de uma mulher explorando sua própria melancolia. Mas em ‘’Liability’’, essa tristeza aparece sem máscaras, sem censuras, sem medo de se humilhar diante de si própria. Na verdade, a decepção é um tema frequente durante o álbum, e ‘’Liability’’, como outras canções da obra, também é sobre decepcionar a si mesma ao se submeter a relações tão desgastantes. 

‘’She’s so hard to please/ But she’s a forest fire/ I do my best to meet her demands/ Play at romance, we slow dance/ In the living room, but all that a stranger would see/ Is one girl swaying alone/ Stroking a cheek’’

(Ela é tão difícil de agradar/ Mas é um incêndio florestal/ Eu dou o meu melhor para atender suas exigências/ Finjo romance, dançamos lentamente/ Na sala, mas tudo que um estranho veria/ É uma única garota dançando sozinha/ Acariciando a própria bochecha) 

Em Melodrama, Lorde vai desaparecendo entre os sentimentos difíceis que experiencia. E ironicamente, nessa entrega ela ascende novamente, se perdendo e se reencontrando múltiplas vezes ao longo do álbum. Em ‘’Hard Feelings’’, ela narra o processo de término de um namoro, bem como a decadência de um amor. A música também é sobre superar uma presença em seu coração, de alguém que voluntariamente partiu da vida, mas permanece na memória.

Já ‘’Supercut’’ é a consagração desse rememorar. Na canção, a cantora remói o relacionamento e tudo o que poderia ter sido. E todo o presente também se torna parte desse compilado do passado, onde a saudade rouba as atenções do momento atual. 

Leia também >> Francesca Woodman e a subjetividade como revolução
Lorde em fotografia para o álbum Melodrama. (Créditos: Wolrd of Mcintosh Townhouse)
Ouça >> Artistas que desafiam estereótipos de gênero no meio musical (podcast)

Enquanto processa a finitude de um amor e a inundação de sentimentos irrompem de si mesma, Lorde narra também noites em festas, esvaziando copos e procurando por lugares perfeitos. Há, dessa forma, um caráter de aceitação em toda a jornada do álbum. O único desejo, portanto, é o melodrama, é vivenciar essa experiência como um todo. 

Melodrama também é, tal qual Pure Heroine, o retrato de uma geração. Entre autodescobertas e amores cruéis, Lorde relata uma solidão coletiva. A geração sem amor sobre a qual canta está em sintonia com seu amor fora do ar. O desequilíbrio entre a superficialidade e a intensidade das relações modernas resulta em melodramas particulares, onde a falta e o exagero se mesclam até se tornarem indistinguíveis. 

Lorde em fotografia para o álbum Melodrama. (Créditos: Theo Wenner)
Leia também >> My Brilliant Career: empoderamento feminino e altruísmo

Embora as dificuldades de comunicação dentro do relacionamento de Lorde sejam um tema que se repete nas canções, em ‘’Writer in the Dark’’, a origem de alguns conflitos é explicitada;

‘’Stood on my chest and kept me down/ Hated hearing my name on the lips of a crowd/ Did my best to exist just for you’’

(Se pôs sobre o meu peito e me pôs para baixo/ Odiava ouvir meu nome nos lábios de uma multidão/ Dei o meu melhor para existir só para você)

Em ‘’Writer in the Dark’’, Lorde demonstra que a sua fama e sucesso eram motivo de desavença com seu parceiro. Ele vai embora amaldiçoando o dia em que a beijou, quando ela ainda escrevia suas músicas longe dos holofotes, ao alcance dele no escuro. E ela descobre que é capaz de superá-lo e viver sem ele, apesar de amá-lo. E o mundo vai lentamente ficando melhor a medida que ela se permite mudar. 

Lorde, assim como todas as mulheres, não precisa de um amor que deseja mantê-la cativa na escuridão. Através de sua arte ela se torna constantemente protagonista de suas próprias histórias, mesmo que elas sejam melodramas. Ela sai das sombras para a luz dos holofotes, não apenas da fama mas de sua própria liberdade.


Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

36 Textos

Formada em Jornalismo. Gosta muito de cinema, literatura e fotografia. Embora ame escrever, é péssima com informações biográficas.
Veja todos os textos
Follow Me :