A Marie Curie de “Radioactive” e “A ridícula ideia de nunca mais te ver”

A Marie Curie de “Radioactive” e “A ridícula ideia de nunca mais te ver”

O que a jornalista e escritora espanhola Rosa Montero e a escritora e diretora iraniana Marjane Satrapi poderiam ter em comum? Ambas narram a vida e a pesquisa da cientista Marie Curie, vencedora de dois prêmios Nobel, por meio de suas obras, respectivamente: “A ridícula ideia de nunca mais te ver” e “Radioactive”. As perspectivas das duas são bastante diferente e se complementam, ainda que tenham também intenções distintas. E dessa maneira, a leitora e espectadora começa  a construir a imagem de uma mulher que, para além de cientista, esposa, mãe, era isto: uma mulher.

A ridícula ideia de nunca mais te ver”, publicado pela editora Todavia, ao se propor em focar na dor da perda, disseca melhor os sentimentos de Marie Curie como uma mulher. Um elemento marcante em ambas as obras é a importância de Pierre Curie, marido de Marie, para a sua vida. E o livro pretende trabalhar, assim, a forma como Marie Curie, vista como uma mulher séria e pouco sorridente, lidou com o luto. 

“Radioactive”, contudo, foca menos no luto e mais na obra. E ganha pontos – ainda que esta análise não seja uma competição – ao trazer uma abordagem que mescla passado e futuro para mostrar as consequências da persistência de Marie Curie (interpretada por Rosamund Pike). 

O problema do filme, todavia, é que perde em ritmo e em emoção. Parece, por vezes, um documentário quando desde o início se propõe a ser um romance – inclusive com a romantização do próprio relacionamento entre Marie e Pierre.

 A ridícula ideia de nunca mais te ver: a normalidade da dor e a virada do luto

A autora Rosa Montera
A autora Rosa Montera. Imagem: reprodução

Embora o tema central de “A ridícula ideia de nunca mais te ver” seja o luto de Marie Curie, o livro de Rosa Montero traça um paralelo entre a perda da cientista e a perda da própria autora. Assim, como Montero comenta em entrevista, seu livro não se revela por completo uma biografia, uma autobiografia ou mesmo um ensaio. E ao longo da leitura, é impossível defini-lo como um ou outro, pois sua escrita é natural, quase uma conversa com a leitora.

O livro divaga sobre a normalidade e a excepcionalidade do luto. Afinal, nada mais humano do que a morte. O grande ponto, entretanto, não é certeza de que a vida se encerra, mas o impacto disso na vida daqueles que ficam. Como é amar e conviver e, um dia, olhar para a cama vazia, apenas com a ideia do que deveria haver nela. E a ideia de perder alguém é tão inimaginável quando amamos, que parece ridícula. 

Os fantasmas permanecem vivos. E como o “Radioactive” também retrata bem, a imagem de Pierre Curie não abandona Marie. Está presente na continuidade da pesquisa que realizaram juntos, no uso de suas descobertas, na imagem de suas filhas. E ambas as obras confirmam a dor que esta mulher carregou por anos após perder seu amado – atropelado por uma carroça, já doente pela exposição à radioatividade.

Rosamund Pike como Marie Curie em "Radioactive", dirigido por Marjane Satrapi.
Rosamund Pike como Marie Curie em “Radioactive”, dirigido por Marjane Satrapi.

Radioactive e as mulheres na ciência

Apesar disso, Marie Curie nunca se deixou definir pela sua dor. “Radioactive”, inclusive, a retrata em diversos momentos como uma mulher centrada em seu trabalho, por vezes taxada de egoísta. Para Marie, no entanto, a ciência era sua vida. E dedicou-se tanto a ela, que até mesmo o relacionamento com sua família parecia deixado de lado – algo que sempre parece pesar mais para as mulheres que para os homens.

Em “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, essa imposição do peso familiar é mais nítida, embora também seja retratado em “Radioactive”. No livro, fica óbvio como a maternidade se colocava entre Marie e a plena entrega à pesquisa, o que afetou o relacionamento com suas duas filhas, Irene e Eve. No entanto, quem pode julgá-la por perseguir um sonho de longa data?

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A polonesa Marie Sklodowska desde jovem tinha a certeza de que queria se dedicar a ciência. E não foram poucos os seus esforços para se libertar das expectativas sociais e conseguir os recursos necessários à sua dedicação à pesquisa. Primeiro, pelas condições familiares. Seus estudos, como revela Rosa Montero, apenas se concluíram por conta de uma combinação com a irmã. Segundo, pelo apoio da comunidade científica. Não obstante Marie fosse um entre as 23 mulheres no departamento de ciências – número baixo em comparação ao de homens -, poucos acreditavam em sua pesquisa com o Urânio. Esta mesma pesquisa foi o que a levou à descoberta do Rádio, do Polônio e da radioatividade. Terceiro, pela própria maternidade, a qual, segundo “Radioactive”, a impediu de ir à entrega de seu primeiro prêmio Nobel.

Marie Curie na Conferência de Solvay de 1927
Marie Curie na Conferência de Solvay de 1927. Imagem: reprodução

Marie Curie entre os feitos de “Radioactive” e a experiência de ser mulher

A história tem um papel fundamental na construção de ideais. Afinal, o passado inspira. E é encantador ver o quanto nomes femininos têm aparecido no entretenimento nos últimos anos, ainda que estejamos longe da igualdade negada historicamente às mulheres. Por isso, obras como “Radioactive” e “A ridícula ideia de nunca mais te ver” são extremamente importantes. Em primeiro lugar, são produções femininas. Tanto Rosa Montero quanto Marjane Satrapi (de “Persépolis”) são conhecidas por discutir o papel imposto às mulheres em suas obras. Em segundo lugar, o filme e o livro se propõem a redesenhar a história de mulheres apagadas anteriormente. Veja que muitos livros de ciência ainda não atribuem a Marie Curie os créditos por suas pesquisas. E de Irene Curie, então, quase não se fala senão quando sobre sua mãe. 

Ambas as obras se esforçam, portanto, em trazer essa perspectiva. “Radioactive” mostra, por exemplo, o apoio de outras mulheres a Curie, na relevância de seu reconhecimento também para todas as mulheres. O filme, contudo, traz uma frase que soa estranha, mas que pode fazer sentido por outra ótica. Marie Curie diz a sua filha Irene, em um momento, que sofreu mais pela falta de recursos do que por ser mulher. Contudo, pode-se interpretar que a falta de recursos, na maior parte de sua vida, se deu pelo fato de ser mulher. Afinal, nascer mulher nunca lhe impediu de fazer nada com maestria.

Já “A ridícula ideia de nunca mais te ver” faz o que talvez outros romances inspirados na história de Marie Curie não fizeram: dissecar detalhes de sua vida cotidiana e história que auxiliam na compreensão de quem ela era como pessoa. Ou seja, desconstrói uma idolatria que se poderia construir, mas sem deixar de ressaltar sua importância para as mulheres de modo geral.

Marie Curie: a mulher e pesquisadora que revolucionou o mundo

Marie Curie
Marie Curie. Imagem: reprodução

É inegável o quanto Marie Curie mudou a ciência e o mundo. Suas descobertas foram a base para importantes feitos do século XX, sem juízo de valor. Foram a base para as bombas nucleares, mas também para as máquinas de Raio X e para a radioterapia. Como todas as invenções e descobertas humanas, portanto, transformou-se em um ferramenta para outros feitos, bons ou ruins.

Reconstruir com exatidão quem ela foi ou o processo do legado que deixou é difícil, mas tanto “Radioactive” quanto “A ridícula ideia de nunca mais te ver” cumprem com seu papel. Enquanto um nos mostra, ainda que de forma romantizada, sua vida pela perspectiva da ciência, o outro revela uma faceta mais humana da cientista. Por esse motivo, talvez o livro desperte mais identificação.

“A verdadeira dor é indizível. Se você consegue falar a respeito das suas angústias, está com sorte: significa que não é nada tão importante. Porque quando a dor cai sobre você sem paliativos, a primeira coisas que ela lhe arranca é a #palavra. […]

Falo daquela dor que é tão grande que nem parece nascer de dentro, como se você tivesse sido soterradas por uma avalanche. E está tão enterrada debaixo dessas toneladas de dor pedregosas que não consegue nem falar. Você tem certeza de que ninguém vai ouvi-la.”

Marie Curie, enfim, era uma mulher irreverente. Como Marjane Satrapi comenta em entrevista à Town&Country, o desejo de realizar um filme sobre a cientista partiu também do seu amor pelo fato de que Marie Curie não se importava com o que os outros achavam ou esperavam dela. Ela queria fazer o seu trabalho, e o fez, o fez como uma mulher.


Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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