Herdeiras do Mar: violência sexual no Oriente entre guerras

Herdeiras do Mar: violência sexual no Oriente entre guerras

Há quem diga que uma vantagem de ser mulher é não enfrentar o alistamento obrigatório e servir ao exército diante da necessidade, sob o risco de morrer no campo de batalha. A guerra, contudo, também chega às mulheres. Senão nas trincheiras reais (e para muitas, nestas também), então nas trincheiras metafóricas. E é sobre essa violência em tempos de guerra que Mary Lynn Bracht tão sensivelmente trata em “Herdeiras do Mar“.

Herdeiras do Mar, a um primeiro olhar, parece um romance histórico da Segunda Guerra Mundial, daqueles que te prometem chorar, mas encontrar um final de esperança. De fato, as lágrimas rolam pela face, porque nada do que a autora descreve pode ser considerado um absurdo. São fatos. É claro que alguns elementos são aumentados, modificados, em criação de protagonismo e antagonismo, para fins da narrativa. No entanto, as situações abordadas são factíveis, infelizmente.

Não se pode dizer, entretanto, que o livro siga o esperado, embora a esperança seja a única coisa que mantenha essa história tão emocionante de duas irmãs em meio a mais de meio século.

As perspectivas de Hana e Emi conduzem a narrativa em dois tempos distintos: uma por volta de 1943, outra por volta de 2011. Os relatos, assim, se estendem entre flashbacks de meados da década de 30 até 2012. E desse modo, repassam não apenas a história de uma família coreana, mas o contexto de guerras do período: a Guerra Sino-Japonesa, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra das Coreias.

Alerta de gatilho: menção a violência sexual

Herdeiras do Mar e a história oculta dos crimes de guerra

O livro desperta emoções diversas, porque é muito rico, tanto em crítica quanto em desenvolvimento.

Primeiro, aborda a história do Oriente pelo ponto de vista de duas personagens muitos diferentes, mas que rompem com o estereótipo da mulher oriental em submissão. E traz, assim, facetas culturais pouco conhecidas. Hana e Emi são haenyeo, uma cultura de mulheres mergulhadoras na Coréia. As haenyeo são conhecidas por proverem parte do sustento da família e por manterem uma tradição mais matriarcal, embora o livro consiga explorar as nuances em face ao momento histórico. E como outros elementos da cultura oriental, também sofreram com a exploração – antes dos países da própria Ásia, depois de outras nações.

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Segundo, como Mary Lynn Bracht comenta após a história, o livro consegue contextualizar bem algo que foi universal. Os crimes cometidos, as atrocidades da guerra, são analisados como parte de um momento histórico. Dessa maneira, não se pode ignorar a participação de diferentes agentes no rumo da história mundial, mas também da vida dos indivíduos. Afinal, para cada episódio narrado dos livros de história, existem as pessoas que estiveram lá e que viveram aquele momento.

Terceiro, Herdeiras do Mar é um livro muito delicado em colocar formas de crimes contra as mulheres e contra uma cultura, da exploração sexual à repressão ao direito de autodeterminação dos povos. Ainda assim, não é um livro recomendado para quem possa ter gatilhos, porque a escrita suave de Mary Lynn Bracht não é capaz de anular o peso dos eventos em progressão: uma agressão atrás de outra agressão a corpos femininos.

“Mulheres de consolo”: a exploração sexual na Segunda Guerra Mundial

Hana tem 16 anos quando o exército japonês a captura. Ou melhor dizendo, quando Maremoto a arranca da praia em que cresceu e onde esperava continuar sua vida de tranquilidade.

O medo tomava a conta da ilha que seria alvo de outras tantas formas de ataque. E muito cedo ela aprendeu o significado da palavra estupro, embora não imaginasse que pudesse acontecer com ela também. Ainda que não se arrependa das escolhas que tomou, como salvar sua irmã de 9 anos, ela se divide entre ter esperança e sucumbir às condições degradantes a que é exposta.

Ainda que nova, Hana não era a mais nova daquele navio ou daquele trem lotado de mulheres entregues ao destino de satisfazer tropas em meio à guerra, sem que suas famílias soubessem o que se passava com elas. Mulheres perdidas para as memórias familiares, mulheres reais em apagamento histórico.

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A história de Hana é, assim, uma história de sobrevivência. A adolescente que se conhece nas primeiras páginas muda de tal forma que se torna irreconhecível, senão pela força que mantém até a última página. E a cada parágrafo vem a sensação de dúbia de desejar que algo melhor aconteça a ela, embora se saiba que o futuro não promete tantas alegrias.

As mulheres nas guerras do Oriente do Século XX

Emi, por sua vez, é um contrapeso em Herdeiras do Mar. Segundo Mary Lynn Bracht, ela é sua personagem favorita, porque permite um respiro entre as passagens de Hana. Entretanto, ela também possui sua própria sina.

É interessante acompanhar Emi, porque sua narrativa abarca mais tempo. Então, vê-se o olhar da menina de 9 anos testemunha de um crime. Vê-se o olhar da adolescente de 14 anos cuja casa é queimada em um guerra entre comunistas e capitalistas. E vê-se o olhar de uma mulher em seus 70 e poucos anos que nunca conseguiu se perdoar pelas suas escolhas.

Em uma linha de tempo mais próxima ao presente, Emi possui um filho e uma filha, netos, todos distantes dela. E continua sua vida de haenyeo, seguindo os passos de sua mãe e de sua irmã. Algumas vezes por ano, contudo, ela se obriga a enfrentar o cemitério de corpos que se tornou um aeroporto e a visitar sua família. A justificativa para isso, no entanto, é maior do que ela é capaz de lhes contar.

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A questão da história de Emi é que, em comparação à narrativa de Hana, pode-se pensar que foi menos dolorosa. Mas é difícil medir dores, principalmente quando as dores de Emi foram distribuídas ao longo de anos, em pequenas ações: a morte dos pais, um casamento infeliz, a impotência diante de todo um contexto.

Herdeiras do mar: uma realidade em perspectiva

É difícil, enfim, colocar toda a magnitude de Herdeiras do Mar em uma resenha. Seria preciso, para isso, olhá-lo por óticas distintas. Pela ótica das mulheres sequestradas para exploração sexual durante a Segunda Guerra Mundial, as “mulheres de consolo” como foram chamadas. Pela ótica das mulheres que não foram exploradas, mas que, assim como suas famílias, sobreviveram a uma guerra para enfrentar as atrocidades da Guerra das Coreias. Mulheres que foram obrigadas a se casar e ter filhos e viver vidas sem que nunca tivessem a liberdade de buscar a felicidade. 

Seria necessário, também, analisar pela ótica das próprias guerras, uma cadeia de ações e reações que tiraram famílias de seus lares e entregaram milhares de pessoas a uma violência sem fim. Mas também analisar a participação do Ocidente nas consequências dessas ações. E analisar, por fim, algo que vai além: o direito de ser. De que modo os conflitos ultrapassam a morte na determinação de condições de vida?

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Herdeiras do Mar é um livro angustiante, mas esconde um final que, se não pode ser ao todo uma resposta para o desejo de felicidade, ao menos abre caminhos. A reparação histórica é complexa. A própria autora traz as discussões das decisões controversas tomadas pelo Japão e pela Coréia do Sul na realidade, como forma de reparação às milhares de mulheres exploradas sexualmente. Mas, ao menos na narrativa, ela possui liberdade para conceder uma espécie de reparação. Ela traz o perdão para com as próprias escolhas. E presenteia Hana e Emi com a paz que lhes é possível.


Herdeiras do Mar

Mary Lynn Bracht

Tradutora: Julia de Souza

Companhia das Letras

304 páginas

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Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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