“A Vida Mentirosa dos Adultos” e o desencanto da puberdade por Elena Ferrante

“A Vida Mentirosa dos Adultos” e o desencanto da puberdade por Elena Ferrante

Difícil ignorar um nome: Elena Ferrante. Esse pseudônimo acabou se tornando uma febre por conta dos quatro livros que narram a história de vida das amigas Lenu e Lila, desde a infância até a velhice. Por esse motivo, não foi sem uma grande antecipação que a cultura pop recebeu o lançamento de seu novo romance: A Vida Mentirosa dos Adultos, publicado recentemente pela editora Intrínseca. Sim, Ferrante transcende as salas silenciosas da literatura mundial, para um nível de fandom de filmes da Marvel.

Neste novo livro, acompanhamos a história de Giovanna em sua construção social como adulta. Criada com certo privilégio em uma família de intelectuais bem estabelecidos na zona alta de Nápoles, ela vê a vida que conhecia até seus treze anos desmoronar quando é comparada com a irmã de seu pai. Vittória, sua tia, vem como o vislumbre do que seria o extremo oposto de seu irmão mais velho, Andréa.

O pai herói de Giovanna, que é uma espécie de self made man, é originário da parte pobre da cidade, ascendendo ao bairro alto e a Academia. Andréa é casado com Nella, e ambos são professores e intelectuais, muito bonitos também, segundo Giovanna, nossa narradora. Aqui, assim como a Lenu da série napolitana, recebemos a visão de mundo da nossa protagonista como uma memória de tempos conturbados do final de sua infância.

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A Vida Mentirosa dos Adultos - Elena Ferrante (resenha)
Capa do novo romance de Elena Ferrante, A Vida Mentirosa dos Adultos. Imagem: Divulgação.

Em A vida mentirosa dos adultos, Giovanna começa a história com treze anos e o termina já com dezesseis. No entanto, é interessante notar como Elena Ferrante vai ajustando a própria linguagem de sua narradora a medida que cresce e aprende novos fatos da vida. Dessa forma, três anos parecem pouco tempo para tantas mudanças, mas essa fase da pré adolescência, principalmente para a mulher, é muito marcante e com certeza muitas leitoras vão se identificar com a protagonista. Ferrante joga com essa imagem do que Giovanna foi criada pra ser em contrapartida ao que ela eventualmente estaria se tornando sem que tivesse uma escolha: sua tia.

A Vida Mentirosa dos Adultos e a educação

Vittória representa a Nápoles que a família precisa deixar para trás, substituindo pelo que é convencionado como a melhor educação: elegância e bons modos. Nesse sentido, abre-se em A vida mentirosa dos adultos o debate também sobre o que seria exatamente uma boa educação. Portanto, lembramos muito do filme Educação (2010), de Lone Scherfig, que rendeu uma indicação ao Oscar para Carey Mulligan. Nele, a colegial Jenny passa a viver um romance e muitas experiências talvez proibidas com David (Peter Sarsgaard), um homem maduro.

No caso do livro tais perguntas surgem: é suficiente todo o suporte que Giovanna recebe dos estudos do colégio? O que ela necessariamente vai buscar em suas origens quando pede para conhecer sua tia? Todo esse suspense criado em torno da tia Vittória, cuja foto de rosto mal consegue encontrar, faz com que a protagonista a enxergue com um ideal inesperado. Entretanto, os pais de Giovanna não sabem, mas como acontece em toda família, eles eventualmente serão decepcionantes.

Carey Mulligan e Peter Sarsgaard no filme "Educação". (Imagem: reprodução)
Carey Mulligan e Peter Sarsgaard no filme “Educação”. (Imagem: reprodução)

Apesar da má vontade inicial de Andréa em relação a irmã afastada, ele dá a Giovanna, como diz carinhosamente Vittória, a permissão de conhecer a famosa tia. E naquele momento de descoberta de um mundo novo para fora de sua infância privilegiada, a menina se encanta com esse mundo de Vittória.

Elena Ferrante nos deixa sentir os cheiros dela, que são os cheiros da periferia de Nápoles, dos modos vulgares, do palavreado chulo, proibido na casa dos pais. Porém, a tia invariavelmente também acaba desapontando a menina, porque enquanto exige que ela enxergue quem são seus pais, faz com que ela também aprenda a enxergar todos a sua volta. Portanto, a autora quebra essa espécie de encanto do olhar infantil.

As dores da adolescência e a nova visão de mundo

A partir desse momento, Giovanna mergulha em uma espécie de auto flagelamento em busca da compreensão de quem está se tornando. A comparação com a tia está presente no livro todo, uma vez física, outras vezes em relação ao caráter. Ela sofre por achar que não é bonita fisicamente, e isso transcende para o seu caráter moral, sendo a feiura essa moeda de dois lados. E então, na luta pelo crescimento dolorido de seu corpo e de seu ego, Giovanna se isola, trata mal as pessoas, ouve músicas altas e acaba repetindo de ano na escola. São os clichês da adolescência revisitados pelo gênio de Ferrante.

Sem entrarmos muito nos detalhes para não atrapalhar a experiência da leitura, as conhecedoras da obra da autora vão encontrar muitos dos ingredientes narrativos presentes no segundo livro da série napolitana, História de um novo sobrenome. Principalmente porque é nele que Elena narra a adolescência de Lenu e Lila, retratando os primeiros encontros sexuais e namorados.

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Entretanto, no caso de A vida mentirosa dos adultos existe também um foco ainda maior na formação ou deformação do corpo da mulher. Ou seja, Giovanna sofre para entender o que está se tornando, além de entrar em conflito em como é percebida pelos homens, principalmente. Neste momento, nos lembramos do trecho da música Creep, da banda Radiohead: “Eu queria ser especial, mas eu sou asquerosa. Uma estranha. O que diabos eu estou fazendo aqui? Eu não pertenço a esse lugar!”, em tradução livre.

Elena Ferrante e sua psicanálise cirúrgica

Quando pensamos em Ferrante, viajamos em primeiro lugar a Nápoles, que se tornou uma personagem recorrente em seus romances, seja pela localização da história, seja pelo napolitano. A partir da simbologia do dialeto, ela também posiciona esse lugar de classe em contrapartida ao italiano originário das rodas intelectuais da Florença de Dante Alighieri.

Para além das origens de suas personagens, o napolitano é o idioma do inconsciente, portanto é a partir dele que normalmente se dizem as palavras mais duras, ou talvez as mais vulneráveis.

Difícil dissociar Nápoles de Elena Ferrante.
Difícil dissociar Nápoles de Elena Ferrante. (Imagem: divulgação)

O romance Um amor incômodo (1992) talvez seja a história mais dura e quase indigesta de Ferrante. Trata-se de uma filha que vai investigar o passado da mãe que acaba de morrer. E esses tipos de investigações acerca do passado são recorrentes nas narrativas da autora. Relações entre mães e filhas são recheadas de conceitos psicanalíticos, como o Complexo de Electra, que aparece também na saga napolitana, principalmente com Lenu e sua mãe. Já no romance A filha perdida (2006 – não confundir com História da menina perdida, quarto livro da tetralogia napolitana), acompanhamos a total desromantização desse papel angelical da maternidade.

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O curioso e extraordinário dos romances de Elena Ferrante, é que ao mesmo tempo em que se apresentam temas clássicos e de alta literatura, há uma linguagem simples e acessível. Sem contar o fator suspense, costurado em suas tramas até o final, prendendo a leitora ao modo de escritoras como Agatha Christie. A experiência de leitura, entretanto, pode ser catártica exatamente por tratar de temas tão profundos quanto universais, como essas relações familiares que nos moldam ou das quais fugimos por toda a vida.

Lila (Gaia Girace), e Lenu (Margherita Mazzucco), como Lila e Lenu na adaptação para a HBO da saga napolitana.
Lila (Gaia Girace), e Lenu (Margherita Mazzucco), como Lila e Lenu na adaptação para a HBO da saga napolitana. (Imagem: divulgação)

Até mesmo o feminismo e o empoderamento feminino estão presentes em suas histórias de maneira orgânica, quase como uma forma de realmente explicitar na vivência das personagens o alcance de ser mulher. Devido a forma como ela escreve os conflitos, conseguimos esmiuçar profundamente de onde vêm as sequelas da construção da feminilidade, ao mesmo tempo em que abarca a masculinidade tóxica de nossos antepassados. Em se tratando de Elena Ferrante, nada chega gratuito, nada é binário ou dogmático.

Como ela mesma descreve através da voz perspicaz de uma das maiores personagens dessa década, Rafaela Cerullo, a Lila de Uma amiga genial, é possível enxergar por muitas vezes o que ela denomina como a desmarginalização das pessoas quando se comportam em sociedade. É como se os nossos limites enquanto indivíduos e tudo o que é construído em uma família, por exemplo, dessem espaço para o que é construído por fora e antes de nós, como modo de vida ou como padrão violento.


Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

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Jacu metropolitana com mente abstrata, salva da realidade pelas ficções. Formada em comunicação social, publicitária em atividade e estudante de Filosofia. Mais de trinta anos sem nunca deixar comida no prato.
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