“Enola Holmes” e o seu feminismo superficial

“Enola Holmes” e o seu feminismo superficial

Na semana passada o nome de Sherlock Holmes entrou nos trending topics do Twitter. A razão de tanto interesse foi a constatação, aparentemente coletiva, de que o famoso detetive inglês era um personagem fictício. Em um mesmo post até comentaram como os ingleses têm o dom de criar heróis tão míticos que se misturam a história. E até nos confundem quanto a sua existência, como a lenda do Rei Arthur e Robin Hood. Mas esse texto não vai falar sobre nenhum homem de meia idade, mas sim de uma garota de dezesseis anos: Enola Holmes.

Lançado no último dia 23 de setembro pela Netflix como produção original, o longa-metragem narra as aventuras da irmã mais nova de Sherlock Holmes. No papel principal nenhum nome seria mais óbvio do que uma das queridinhas da casa, a estadunidense (nascida em Marbella na Espanha e filha de pais ingleses), Millie Bobby Brown. Conhecida por conquistar o mundo e até ser indicada ao Emmy aos treze anos de idade, por sua personagem Eleven da série Stranger Things.

Millie Bobby Brown em cena do novo filme da Netflix
Enola Holmes (Millie Bobby Brown). Crédito: Legendary ©2020 (divulgação)

Em Enola Holmes a atriz também assina como a mais jovem produtora executiva creditada em um longa-metragem. O filme tem a adaptação de Nancy Springer de seu próprio livro: The Enola Holmes Mysteries. A autora veterana, mas estreante no audiovisual, criou em 2006 a série formada por seis livros que narram as aventuras da irmã mais nova de Sherlock Holmes.

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A história de Enola é apresentada pela própria personagem. Além de quebrar a quarta parede para explicar o que acontece na tela, também temos animações e letterings a la Wes Anderson. Tem sido quase que uma marca registrada das produções da Netflix esse tipo de orientação a telespectadora, seja pela narração em off (presente e totalmente desnecessária em O Diabo de cada dia), ou pela quarta parede.

Algumas escolas mais tradicionais de roteiro afirmam que esse tipo de recurso pode ser preguiçoso e subestima o entendimento de quem assiste, considerando que um filme é contato através de imagens. No caso de Enola, esse tipo de artifício junto com a animação, pensando no público-alvo voltado para adolescentes, encaixa bem com a linguagem interativa Tik Toker em voga. Talvez essa audiência tenha mudado e precise de um incentivo extra para ser fisgada pela história? Para nós, pareceu excessivo.

A premiada autora Nancy Springer em sua casa, com seu cachorro Roxy.
A premiada autora Nancy Springer em sua casa, com seu cachorro Roxy. (Imagem: divulgação)

SPOILERS A SEGUIR

Quem é Enola Holmes?

O nome Enola soletrado ao contrário é Alone, do inglês “sozinha”, e nossa heroína nos conta isso logo no início. Enquanto a acompanhamos andando de bicicleta e muito espoleta no meio da natureza, aprendemos que seu pai morreu quando ela era muito jovem e que por isso mal se lembra dele. Bem como mal se lembra dos dois irmãos mais velhos que também partiram há muito tempo.

Na sequência, conhecemos sua mãe, Eudoria Holmes, interpretada pela sempre carismática Helena Bonham Carter. E então acompanhamos a deliciosa jornada de aprendizado entre mãe e filha, pautado sob a base de esportes, ciências e literatura. Entendemos que desde muito nova sua mãe a treina para seguir o próprio caminho, ter senso crítico e até mesmo saber se defender fisicamente. Tudo isso nos prepara para que o desaparecimento da mãe não nos surpreenda no final do primeiro ato de Enola Holmes

Enola Holmes (Millie Bobby Brown) e Eudoria Holmes (Helena Bonham Carter).
Enola Holmes e Eudoria Holmes (Helena Bonham Carter). Crédito: Legendary ©2020 (divulgação)

Do desaparecimento da mãe, vêm os irmãos para cuidar do que eles imaginam ser uma menina frágil de dezesseis anos. Mas eles encontram uma jovem desarrumada para os padrões da época, apesar de ser quase forçado ver Millie Bobby Brown passar por alguém mal ajambrado em qualquer época.

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Mycroft, o irmão mais velho, interpretado por um Sam Claflin quase irreconhecível e envelhecido (na vida real Sam é três anos mais novo que Henry Cavil), é o estereótipo do aristocrata pedante inglês. O Sherlock Homem de Aço, ou melhor dizendo, Henry Cavill, é charmoso e correto. Mas este não é um filme feito para os homens brilharem, de qualquer forma. Aliás, como é esperado, vamos entendendo no decorrer da narrativa que Enola é muito parecida com seu irmão do meio.

Em Enola Holmes acompanhamos sua evolução como uma detetive intuitiva e bem sucedida na busca por sua mãe. Nesse processo ela também acaba salvando a vida de um Lord de sua idade. Ela o encontra no trem, logo no início, enquanto tenta fugir do irmão mal.

Enola, Sherlock (Henry Cavill) e Mycroft (Sam Claflin).
Enola, Sherlock (Henry Cavill) e Mycroft (Sam Claflin). Crédito: Legendary ©2020 (divulgação)

Feminismo e empoderamento feminino x amor romântico

E então ficamos nos perguntando se toda a aventura envelopada de empoderamento feminino precisava realmente de um interesse romântico a la princesas da Disney. O filme realmente vem adaptado do livro que tem como tema central o desaparecimento do marquês, mas resvala para o romântico tradicional que já estamos um pouco cansadas de assistir. Será que as garotas mais jovens da atualidade ainda precisam desse tipo de relacionamento, apesar de não ser central para a história?

Inclusive, ao reencontrar o Marquês Tewkesbury (Louis Partridge), que antes havia conhecido vestida de menino, Enola está com os cabelos soltos, espartilho e um vestido novo, pura Mística Feminina. Falando nisso, os clichês feministas publicitários estão presentes durante todo o filme, que foi claramente lançado para surfar nessa onda já antiga do Fight like a girl. Não que não seja válido o estímulo para um outro tipo de protagonismo feminino, mas será que já não estamos forçando um pouco a mão nessa temática?

Cena de "Enola Holmes", filme da Netflix.
Cena de “Enola Holmes”. Crédito: Legendary ©2020 (divulgação)

Como boa parte dos originais Netflix, principalmente Stranger Things, Enola Holmes é um filme corretamente pensado e executado. Todos os beats estão postos nos tempos corretos do longa-metragem, e com a maior quantidade de referências pop para que a telespectadora tenha uma experiência agradável.

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No principal site que compila críticas de filmes e séries, o Rotten Tomatoes, está explodindo com 91% de opiniões positivas da crítica contra 72% de positivas da audiência. Ficamos nos perguntando se essa produção quase industrial e quase pasteurizada de produtos audiovisuais baseados em algoritmos não esteja deixando nossos filmes limpos demais. Existe beleza na imperfeição. No entanto, será que ainda teremos espaço para isso nas plataformas de streaming?

Controvérsias e copyrights

Segundo o site de notícias do mundo internacional audiovisual, o IMDB, apesar de haver alguma liberdade criativa para a criação de uma suposta irmã de Sherlock Holmes, a obra de Sir Arthur Conan Doyle ainda não pode ser considerada de domínio público. Os representantes de Doyle, falecido em 1930, estão preparando um processo contra Nancy Springer por mal uso dos direitos da obra, também contra executivos da Netflix e até mesmo o diretor do filme, Harry Bradbeer.

Os cinco livros seguintes de Springer têm toda a chance de ser um sucesso estrondoso, assim como a franquia de filmes de Harry Potter, agora resta aguardar os próximos passos dessa disputa judicial.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Jacu metropolitana com mente abstrata, salva da realidade pelas ficções. Formada em comunicação social, publicitária em atividade e estudante de Filosofia. Mais de trinta anos sem nunca deixar comida no prato.
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