Ratched: uma protagonista intensa, uma série colorida, um tema obscuro

Ratched: uma protagonista intensa, uma série colorida, um tema obscuro

No mês passado, setembro, a Netflix disponibilizou em seu catálogo a série Ratched. Mais uma produção para a conta de Ryan Murphy, a série se coloca com um prelúdio da história de Mildred Ratched (Sarah Paulson), personagem de Um estranho no ninho, filme de 1975.

Já no trailer temos a impressão que a história será contada ao bom e velho estilo Murphy: as cores, os sons e, principalmente, a escolha de Sarah Paulson como a protagonista.

AVISO: o texto abaixo contém SPOILERS da primeira temporada de Ratched

Primeiro… vamos falar de Mildred Ratched?

No filme da década de 1970, Mildred Ratched foi interpretada por Louise Fletcher, que inclusive ganhou o Oscar pela sua atuação. Segundo relatos, a Mildred apresentada no filme é considerada como uma das maiores vilãs do cinema. Outro ponto curioso a ser levado em conta é que o filme é uma adaptação de um livro da década de 60, portanto, Sarah Paulson é a terceira versão da personagem e, dadas as performances anteriores, não seria uma tarefa fácil.

Louise Fletcher como Mildred Ratched em "Um Estranho no Ninho" (1975)
Louise Fletcher como Mildred Ratched em “Um Estranho no Ninho” (1975). Imagem: reprodução

Na série da Netflix, num primeiro momento, a personagem se mostra focada, persistente e determinada em alcançar seus objetivos. Também mostra que é uma mulher de sua época ao ser levada a um “bar de mulheres” (em suas próprias palavras) por Gwendolyn Briggs (Cynthia Nixon) e ficar chocada. Muito focada em si mesma e em suas metas, se autointitulando como o “anjo da compaixão” ao ajudar as pessoas alcançarem algum tipo de plenitude – seja através do suicídio ou da fuga – Mildred Ratched é uma personagem complexa.

Aliás, se a personagem é complexa, não haveria ninguém para interpretá-la além de Sarah Paulson. Vencedora de alguns prêmios por sua atuação em The People v. O.J Simpson: American Crime Story American Horror Story, a atriz marca presença em vários outros filmes e séries. Sarah não brinca em serviço, inclusive isso pode ser observado já no trailer quando, por incrível que pareça, ela junto com Betsy Bucket (Judy Davis) nos prendem a atenção com um diálogo sobre… um pêssego.

Mildred Ratched (Sarah Paulson) na série de Ryan Murphy. Imagem: Netflix (divulgação)

Além disso, monólogos ocasionais nos fazem questionar a quantidade de prêmios que Sarah irá ganhar por conta de sua atuação. Brincadeiras à parte, talvez nenhum, mas dada a potência de seu trabalho, é merecedora de, pelo menos, alguns.

Se num primeiro momento Mildred Ratched pode nos incomodar, com o passar dos episódios através das revelações sobre seu passado e a sua gradual aproximação com Miss Briggs, começamos a ter uma visão diferente sobre ela. De simplesmente alguém sem escrúpulos, começamos a perceber que Ratched é alguém sem escrúpulos, porém com sentimentos.

O que mais além de Mildred Ratched?

Além da protagonista e da atuação de Sarah Paulson, outros elementos da série também precisam ser comentados. Se o primeiro ou segundo episódios nos passam a impressão de um thriller, com o desenrolar da série o foco muda e, através de grandes personagens e interpretações, começa a nos ser apresentado um drama de terror psicológico.

Por ser uma trama de época, sempre temos aquele medo de acharmos um copo de café no meio de uma cena, porém Ratched não decepciona. A ambientação nos leva diretamente para Lucia, uma cidade qualquer do interior dos Estados Unidos, e o figurino e a trilha sonora nos ajudam a definitivamente a entrar no clima desse thriller psicológico com pitadas de revolução sexual.

Mildred Ratched e Gwendolyn Briggs (Cynthia Nixon). Imagem: Netflix (divulgação)

Bem ao estilo Murphy, a palheta de cores de Ratched é marcante, com cores fortes não só nos aspectos fotográficos, mas também nos aspectos psicológicos, pois em alguns momentos e dependendo da situação da personagem em cena, vemos tons de verde e/ou vermelho tingindo a tela e nos aproximando do que aquela pessoa está experimentando naquele momento.

Outro ponto importante é a contextualização histórica bem-feita. Como estamos falando de uma época que os tratamentos psiquiátricos e/ou psicológicos de alto impacto – por motivos diversos como homossexualidade, hiperatividade, devaneios, entre outros – estavam na moda e com o palco principal da série sendo um hospital psiquiátrico, é óbvio que isso não poderia deixar de ser abordado.

É curioso como o tema é tratado em Ratched aos extremos: de uma cena de uma hipnose malsucedida que nos arranca risos à uma cena de tratamento extremo em banhos de imersão além de, claro, demonstrações “ao vivo” de lobotomias.

Charlotte Wells (Sophie Okonedo) e Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones). Imagem: Netflix (divulgação)

Também é importante falar, muito além do contexto histórico real, sobre a sensibilidade que alguns temas são tratados. Ao construir um passado para Mildred, os roteiristas incluíram temas como abuso infantil – quem não esperaria que uma pessoa abusiva sofreu abuso, certo? – porém, o que é digno de nota é a maneira como isso foi colocado na tela. Num teatro de marionetes, vemos toda uma história incômoda ser contada de uma maneira chocante, mas não a maneira que eles estão sendo retratados. 

Além disso, precisamos falar sobre a abertura da série. Aberta às interpretações através de um fio vermelho, desenrolado por pessoas diversas que trilham o caminho de Mildred Ratched, até que simplesmente ela o corta no final e nos deixa com o  questionamento: Será mesmo que isso é um ato de misericórdia?

Por fim… o fim

É claro que nem só de elogios podem fazer uma crítica. Se nos parágrafos anteriores é passada a impressão de que Ratched não possui defeitos, deve ser a hora de mudar isso.

Gwendolyn Briggs em “Ratched”. Imagem: Netflix (divulgação)

De início, os artifícios usados na ambientação trazem envolvimento, porém, com o passar dos episódios, alguns são esquecidos e/ou mal utilizados. Por exemplo, se a inundação de cores associadas à determinados sentimentos é usada com certa frequência nos primeiros momentos, nos últimos episódios temos a sensação que durante a produção alguém lembrou desse efeito e colocou apenas porque sim, não gerando mais o resultado esperado. Contando com uma narrativa lenta, mais do que o necessário, os elementos alegóricos acabam se tornando um tanto cansativos e nos deixam com o sentimento de “será que não é possível só resolver essas questões?”

Por fim, realmente, o fim. Com o passar da temporada é nítido os motivos de Ratched para ser quem é e fazer o que faz. Porém, mais uma vez, é importante registrar a humanização da personagem conforme vai se relacionando com algumas personagens e seu endurecimento quando se trata de outras e isso, mesmo sendo um ótimo desenvolvimento, deixa um arco fraco e não gera tanta empolgação para as próximas temporadas.

Lenore Osgood (Sharon Stone) em “Ratched”. Imagem: Netflix (divulgação)

Já foi dito, pelo próprio Ryan Murphy, que a ideia da série é que sejam 4 temporadas, com a última sendo contemporânea aos acontecimentos do filme – e para isso foi trazido um dos produtores do filme, Michael Douglas – só que, para isso funcionar, é bom Murphy e sua equipe fazerem mágica, pois estamos longe de ver Sarah Paulson como uma das maiores vilãs de todos os tempos.


Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

25 Textos

Uma adolescente emo virou uma hipster meio torta que sem saber muito bem o que fazer, começou jogar palavras ao vento e se tornou escritora e tradutora. Também é ativista dos direitos humanos. Além disso é lésbica, Fé.minista, taurina. E, principalmente, adoradora de gatos e de café.
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