Humans: humanos sintéticos e consciências artificiais

Humans: humanos sintéticos e consciências artificiais

Se uma coisa pode ser livre, ela deve ser livre. Se uma coisa pode sentir, ela deve sentir.” A fala é da personagem Niska, uma das protagonistas do seriado de ficção científica britânico Humans, co-produção dos canais AMC e Channel 4. Lançada em 2015 e cancelada em 2018, após sua terceira temporada, a série aborda uma questão comum no gênero: a possibilidade de robôs e outras inteligências artificiais adquirirem consciência, e o impacto que isso teria na humanidade.

Baseada no seriado sueco Real Humans (2012-2014), Humans nos apresenta a um mundo semelhante ao nosso presente. A diferença é a presença de robôs praticamente indistinguíveis dos seres humanos em quase todas as instâncias da vida cotidiana. Os chamados synthetics (sintéticos), ou synths, não possuem vontade própria e realizam tanto trabalhos especializados quanto não especializados.

Emily Berrington como Niska em Humans
Emily Berrington como Niska. (Imagem: reprodução)
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Anita (Gemma Chan) é parte da mão de obra sintética de Humans. Comprada pela família da advogada Laura Hawkins (Katherine Parkinson), Anita possui uma outra personalidade escondida sob camadas de código. Na verdade, ela é Mia, uma synth consciente criada pelo cientista David Elster (Stephen Boxer). Após a morte de Elster, Mia e seus irmãos – Max (Ivanno Jeremiah), Fred (Sope Dirisu), Niska (Emily Berrington) e o humano Leo (Colin Morgan), filho do cientista –, precisam fugir e se esconder de pessoas que os enxergam ou como uma ameaça, ou como corpos a serem dissecados.

Ao longo das três temporadas de Humans, somos apresentados também à synth industrial Hester (Sonya Cassidy), à cientista Athena Morrow (Carrie-Anne Moss) e à adolescente Renie (Letitia Wright), que se comporta como uma synth. Por meio desses e de outros personagens, a série discute dilemas éticos e morais, embora nem sempre com o mesmo sucesso.

Atenção: spoilers da série abaixo

“Você fala da vida como se ela não pudesse ser fabricada”

Ao fim da primeira temporada de Humans, Leo e seus irmãos conseguem reunir as peças de um código deixado por Elster para dar consciência a outros synths. O código é, primeiro, liberado incompleto por Niska. Mattie (Lucy Carless), filha de Laura, é a responsável por soltar a versão completa no mundo.

A questão da consciência é essencial em Humans. O debate acerca de direitos passa por discussões como se os synths sentem dor ou se apenas imitam a dor humana. Quem assiste à série sabe que os robôs conscientes têm tantos sentimentos quanto pessoas de carne e osso, mas isso não significa que não haja diferenças entre os dois grupos. Afinal, synths não dormem, não sonham, não envelhecem, não se esquecem.

Will Tudor e William Hurt em Humans
O synth Odi e o humano George. (Imagem: reprodução)
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Ou será? É interessante o paralelo traçado por Humans entre o synth Odi (Will Tudor) e seu “usuário primário”, o cientista aposentado George Millican (William Hurt). Viúvo, George conta com Odi para manter vivas as memórias da esposa apagadas pela idade. O cientista nutre um imenso carinho pelo robô, que começa a dar sinais de desgaste e a precisar de cuidados especiais. Depois de um acidente, a memória de Odi fica danificada e instável. Assim como George, ele se esquece de partes importantes do próprio passado.

O oposto acontece com a inteligência artificial V (Chloe Wicks), criada por Athena Morrow para trazer a filha de volta à vida. Conforme se desenvolve, V passa a ter lembranças de sua “vida humana”. Quando a cientista se vê obrigada a deletar a versão digital da filha do computador e liberá-la na nuvem, V a lembra que ela não precisa de um corpo físico para continuar vivendo. Porém, para Athena, é como se sua filha estivesse morrendo outra vez.

A forma importa em Humans?

V representa outra questão na problemática dos synths em Humans: uma inteligência artificial não precisa ter a aparência de um ser humano. Se os synths são quase idênticos a pessoas, é por causa de uma decisão comercial. Nós teríamos o mesmo grau de empatia por uma IA que correspondesse mais à nossa imagem de uma máquina?

O tema é melhor abordado no filme Ela (2014), em que um homem se apaixona pelo sistema operacional do seu celular, mas o questionamento aparece em Humans por meio uma ativista anti-synths: se um carro inteligente exigisse direitos, nós os concederíamos?

Hester vê o problema por outro ângulo. Empregada por uma fábrica de produtos químicos, ela recorda os maus tratos que os synths sofriam nas mãos dos funcionários humanos da empresa. Era comum os synths serem empurrados escada abaixo ou usados de alvo em jogos de dardos. Entretanto, a violência não se estendia a máquinas sem aparência humana.

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Sonya Cassidy em cena de Humans.
Hester (à direita) antes de ganhar consciência. (Imagem: reprodução)

Uma boa parte do ódio que os humanos sentem pelos synths de Humans é alimentada pelo desemprego causado pela mecanização do trabalho. Porém, a forma como essa raiva se manifesta não é igual à de um caixa de supermercado substituído por uma máquina, por exemplo. É difícil imaginar um mundo em que daríamos direitos a carros inteligentes, mas também não é fácil imaginar que pessoas pagariam para espancar um Honda Civic com canos e pedaços de pau.

A forma importa

Um problema comum em obras de fantasia e ficção científica que tratam da exclusão de grupos sociais fictícios é a ausência de minorias reais na trama. Humans não sofre do mesmo problema. Embora o elenco ainda seja predominantemente branco, diversos personagens centrais não são, com destaque para Mia, Fred e Max. Em vez de colocar atores brancos executando funções que, no mundo real, são normalmente ocupadas por pessoas negras ou asiáticas, a série chama atenção para desigualdades reais na divisão do trabalho.

Porém, isso levanta a questão de quais corpos são os que sofrem violência na tela. Como são os synths os personagens mais agredidos ao longo de Humans, os corpos de Mia, Fred e Max – com destaque para Fred – são alguns dos que mais vemos expostos, feridos e violados.

Foto de divulgação de Humans.
Mia, Fred e outros synths. (Imagem: reprodução)

São poucos os momentos em que há alguma reação a essa violência. Quando os synths respondem de maneira agressiva, os roteiristas são rápidos em apontar que “não se combate fogo com fogo”. A preferência pela não violência como forma de luta em Humans chega a níveis absurdos na terceira temporada. A última antes do cancelamento é também a mais fraca de todas e a que mais se esforça para traçar paralelos com opressões reais, com os synths confinados em guetos e ameaçados de extermínio. Ainda assim, a martirização parece ser a única forma de luta aceita pelo seriado.

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O protagonismo feminino também é uma faca de dois gumes em Humans. As mulheres ocupam papéis de extrema importância na trama e são complexas, com motivações que vão muito além de suas relações com os personagens masculinos. Porém, a série tem uma certa obsessão com a questão da maternidade, expressa tanto pelas humanas Laura e Athena quanto pela synth Karen (Ruth Bradley), criada por David Elster para substituir sua esposa morta. A forma como o tema é abordado se torna particularmente incômoda no último episódio, em que uma gravidez mágica é apresentada como a solução para o problema dos synths.

Carrie-Anne Moss em cena de Humans.
Athena Morrow em um depósito de synths. (Imagem: reprodução)

Se uma coisa pode ter consciência, ela deve ter?

Dentro do universo de Humans, é difícil discordar da afirmação de Niska de que se uma coisa pode sentir, ela deve sentir. O mesmo vale para a afirmação de que se uma coisa pode ser livre, ela deve ser livre, quando pensamos em Humans como uma história sobre escravidão e genocídio. Porém, quais são os limites da analogia? A gravidez com a qual a série termina por pouco não é interrompida. É necessário que o bebê nasça, anuncia Niska após um encontro com o misterioso Synth Que Dorme. O que a forma como a série trata a questão da consciência significa para os nossos direitos reprodutivos?

Outra dúvida que Humans suscita é a respeito do quão ético seria dar consciência a objetos inanimados. Não são todos os synths que encaram o seu despertar como positivo. Odi, por exemplo, se vê esmagado pela dor de ter perdido George e de não saber mais o seu lugar no mundo. Karen se ressente da programação que a impede de tirar a própria vida. Ainda assim, uma vez que parte dos robôs já é consciente, seria ético negar essa consciência aos outros? Nós, enquanto humanos, também não escolhemos existir como seres conscientes, e não são poucos os que se sentem isolados e infelizes.

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Lucy Carless, Katherine Parkinson, Tom Goodman-Hill e Theo Stevenson.
A família Hawkins, com Laura à frente. (Imagem: reprodução)

Como analogia para problemas reais, Humans falha em diversos pontos. A forma como a série trata opressão e resistência é rasa e moralista, e os argumentos construídos podem ter implicações, no mínimo, complicadas. Porém, a história e os personagens são extremamente envolventes, assim como a discussão a respeito de como nos relacionaríamos com uma verdadeira inteligência artificial, capaz não apenas de fazer contas e armazenar informações, mas de amar e odiar como um bom ser humano. No fim das contas, Humans vale mais por ser interessante do que por ser boa. Mas, mesmo com todas as falhas, a série ainda é bem boa.

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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